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ABERTURA DA SEGUNDA PARTE As substâncias psicoativas e as religiões

4.1. Ayahuasca A medicina ameríndia do êxtase

A ayahuasca vem sendo referenciada em seu uso milenar devido à relevância que ocupa em torno de mitos e ritos comuns a determinados povos tradicionais, especialmente, àqueles situados no vasto espaçamento geográfico e cultural, que chega a interligar parte do território de seis países sul-americanos, entre os quais o Peru, o Equador, a Colômbia, a Venezuela, o Brasil e a Bolívia; unidos desde as nascentes do rio Ucayali - situado na Cordilheira dos Andes – até as extensões do Rio Negro (na Colômbia, na Venezuela e no Brasil), representando um importante “arco” geográfico, histórico e sociocultural, habitado por agrupamentos que compactuam de semelhantes cosmologias (ALMEIDA, 2002; KEIFENHEIM, 2002; LANGDON, 2002; LUZ, 2002). Luna (1986) indicou a possibilidade da existência de cerca de 72 grupos indígenas usuários milenares da ayahuasca na Amazônia Ocidental, enquanto Naranjo (1983) revelou, ao longo de suas descobertas arqueológicas, que o consumo ameríndio do chá provavelmente teve início por volta do século VI a.C. Do imaginário destes povos somos capazes de observarmos a emergência de práticas, mitologias e cerimoniais voltados à ingestão da ayahuasca, quase sempre com finalidades terapêuticas e curativas, mas também como forma de alçar disciplina e controle, tanto do corpo, quanto do espírito e das sociedades. Grande parte das civilizações tradicionais que compactuam destes saberes está inserida num tipo de religiosidade peculiar, identificada por Andrade (1995), pela característica agrária e andina imersa na concepção de “Pacha Mama” (Mãe Terra), que englobaria três grandes troncos linguísticos locais: Quíchua, Purina e Aimará, estando à tradição de Pacha Mama a se

estender por um vasto território amazônico – antes habitado pelos Incas – em terras colombianas, equatorianas, peruanas, bolivianas, chilenas e argentinas.

Aqui plantas e animais são considerados antepassados desencarnados e possuidores de almas humanas, apesar das aparentes distinções corporais. É desta relação diferenciada com a natureza, que os povos da floresta conseguem alcançar a cura, perante o afastamento da doença, sobretudo, a partir de ritos envolvendo o chá, sempre conduzidos por xamãs historicamente atuantes enquanto médicos e sacerdotes populares, trabalhando na intenção de curar o corpo e a alma dos suplicantes.

Por ser uma “planta mestra”, o chá, além de seu cunho sacro, é considerado um remédio (“la medicina”), ou até mesmo “la madre de todas las plantas”, sendo recorrido nos processos de cura indígena apenas nos “casos impossíveis”; situações nas quais as receitas e os fármacos caseiros não obtiveram resultado. O uso do chá, nestes contextos, parece ir além da cura de patologias meramente físicas, sendo utilizado como fator defensor contra ameaças e ataques do plano metafísico.

Ao nos debruçarmos sobre a tônica da cura ayahuasqueira ameríndia, nos deparamos com uma ampla similaridade simbólica, ritualística e mitológica dentre civilizações locais. Apesar das divergências étnicas e culturais, o âmago das práticas xamanísticas procede, não apenas na restauração do equilíbrio dos processos orgânicos, mas na atenção ampliada aos fatores englobantes da vida, incluindo a psique e tudo àquilo considerado transcendente à condição humana. Saez (2008) observou as várias finalidades do uso do chá dentre indígenas, onde o mesmo adquire função de agente curador, surtindo efeito benéfico nos organismos adoentados, embora os xamãs consagrarem a substância isoladamente e – durante sua viagem astral – consigam diagnosticar as patologias nos corpos, assim como extraí-las da “matéria” do paciente, mediante batalhas performáticas e negociações com as entidades espirituais.

O preparo do chá também nos reporta a uma técnica milenar, sendo reconhecido - e legitimado grupalmente - o poder do xamã curador, a partir da sua capacidade de produzir a própria beberagem visionária. O “vinho das almas”, normalmente é preparado a partir da decocção de duas espécies vegetais distintas; o cipó Banisteriopsis

Caapi pertencente à família taxonômica das Malpighiaceae, junto com as folhas da

Rubiaceae Psychotria, sobretudo, a Psychotria viridis66.

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Pesquisadores, entre eles: Schultes; Hoffmann (1992) e Luna (1986) demonstraram o acréscimo de várias outras espécies de plantas utilizadas como aditivas nos extratos indígenas, entre as quais o Ají (Capsicum

frutescens), a Catahua (Hura crepitans), a Kana (Sabicea amazonensis), a Pulma (Calathea veitchiana), o Sananco (Tabemaemonta sananho), o tabaco (Nicotiana rustica), a folha de coca (Erythroxylum coca), o Rami

Esta bebida tradicional – devido às suas propriedades ampliadoras de consciência – foi, por muito tempo, enquadrada cientificamente na categoria dos “alucinógenos”. Em 1851, o cipó foi pioneiramente identificado e classificado pelo botânico Richard Spruce, inicialmente denominando-o de Banisteria caapi,67 ao longo de suas expedições pelas áreas amazônicas brasileira, equatoriana e venezuelana, durante a segunda metade do século XVII, dentre os anos de 1849 e 1864 (MACRAE, 1992; GROB et al.,1996; 2002; MCKENNA, 1992; LABATE, 2004a).

Os autores afirmam que Spruce teria empreendido grande parte de suas coletas e observações mediante convívio com os grupos étnicos do tronco linguístico Tukano, que habitavam a área geográfica conhecida por Ipanoré, situado no baixo Rio Uapés. A priori, conforme McKeena (1992), o alcaloide identificado no cipó caapi foi denominado de telepatina, embora também tenha sido epitetado ao longo dos tempos por yageína, banisterina e mais recentemente harmina, contendo também harmalinas e outros metabólitos secundários (ESCOBAR, 2012).

Foi apenas no ano de 1970, que o botânico inglês Ghillean Tolmie Prance categorizou taxonomicamente a outra planta que compõe a beberagem, ou seja, as folhas advindas do arbusto Psychotria viridis, ao mesmo tempo em que isolou laboratorialmente das mesmas o alcaloide 4-Metoxi-dimetiltriptamina (a DMT); substância considerada por ele um potente psicoativo68. Envoltos desta temática, logo nos deparamos com a obsolescência de determinados termos científicos, como parece ser o caso das categorias “alucinógeno” e “psicodélico”, pois tais denominações estariam equivocadas, especialmente, no que toca às experiências dos atores com estas e outras plantas e substâncias vistas pelo prisma do sagrado.

Ao falarmos em alucinógenos estamos nos referindo às substâncias que propiciam aos usuários estados desordenados, que, na maioria das vezes, fogem ao controle dos sujeitos, remetendo-os aos planos da consciência semelhantes aos sonhos, delírios, psicoses e devaneios alcançados por uma drástica mudança na percepção da realidade ordinária. Este termo surgiu ao longo das décadas de 1930 e 1950, no intento de enquadrar uma gama de substâncias alteradoras da consciência. Ele resulta da área psicopatógica e seu conceito de “alucinação”; identificado por disfuncionais estados de

(Lygodium venustum), dentre muitos outros vegetais acrescentados ao chá, no intuito de manifestarem propriedades específicas almejadas pelos xamãs, como, por exemplo, cantar melhor, fortalecer o corpo, reduzir ou aumentar visões, promover desintoxicações, servir como estimulante e outros fins.

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Porém a planta foi reclassificada posteriormente, chegando-se à nomenclatura atual Banisteriopsis Caapi.

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É conveniente ressaltar que este alcaloide – de acordo com as investigações de Prance e de outros botânicos e farmacólogos – encontra-se presente como metabólito natural noutras espécies vegetais.

perturbação mental, que fazem com que o paciente enxergue a “realidade” de forma distorcida. Em se tratando de substâncias sacramentais utilizadas para fins religiosos esta conceituação vem sendo criticada por seu cunho moralizante e reducionista.

Gordon-Wason et al. (1980) propuseram a denominação “enteógeno” para designar substâncias psicoativas visionárias ingeridas pelos atores com o propósito de experienciarem contatos com o “plano divino”, atingindo uma complexa percepção das coisas em contínua relação no mundo e no universo. Em grego arcaico o prefixo “entheos” pode ser interpretado como alguma coisa (neste caso um corpo) inspirado ou incorporado por um deus ou entidade extra-humana, enquanto a desinência “geno” remeter-nos, em português, às expressões: gestação e produção de alguma coisa, de modo que enteógeno reporta-nos à expressão “deus dentro de si”. Aplicando-se o termo enteógeno, acreditam os autores, seria possível positivar as sensações compactuadas pelos sujeitos antes, durante e após o consumo de certas plantas e substâncias especiais.

Além da DMT, das harminas e harmalinas (presentes na ayahuasca69) encontramos por todo o mundo variadas espécies vegetais e animais ricas em metabólitos secundários (quase sempre alcaloides, flavonoides e terpenoides) que, quando administrados, tendem a propiciar sensações místicas, tidas como visionárias e transformadoras de consciência, até mesmo de vida, dos sujeitos, que as consagram.

Dentre tais “substâncias especiais”, podemos listar rapidamente: a mescalina, encontrada em algumas espécies da família Cactaceae entre elas, o peiote (Lophophora

williamsii, ministrado por etnias e religiosidades na América do Norte e América

Central70) e o watchuma (Echinopsis pachanoi, também conhecido por San Pedro, planta utilizada milenarmente por civilizações tradicionais da América do Sul71); a ibogaína, substância psicoativa presente na planta Tabernanthe iboga (da família Apocynaceae consumida em cerimoniais da religiosidade Buiti, em continente africano, especialmente, por etnias do Gabão72); a psilocibina presente nos fungos do gênero Psilocybe (principalmente a espécie Psilocybe cubensis, ancestralmente venerada por

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A DMT também é encontrada na planta Jurema, pertencente à família Leguminosae, basicamente, a Jurema

hostilis, que há tempos vem sendo consagrada ritualisticamente por índios e caboclos no Nordeste brasileiro.

Maiores informações constam nos escritos de Grunewald (2005), Motta (2005) e Mota (2007).

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Informações sobre o cacto peyote e sua utilização em ritos de cura do povo Navajo e nos rituais da Native

American Church (NAC) podem ser obtidas nos trabalhos de Perrine (2001), Halpern et al. (2005), Castañeda

(2006), Montenegro (2006) e Csordas (2008).

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Dados sobre o wachuma são encontrados em Labate (2004b), Henman (2005) e Montenegro (2006).

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civilizações tradicionais das Américas do Sul e Central73); a planta trombeta, datura ou “erva do diabo” (Datura metel e Datura stramonium), comum aos indígenas mexicanos74; o muscimol, comum aos espécimes do gênero Amanita (singularmente o cogumelo Amanita muscaria, antigamente ingerido pelos Vedas e demais xamãs em território europeu e siberiano75); o tetrahidrocanabinol ou THC comum aos vegetais da família Cannabaceae (particularmente a espécie Cannabis sativa historicamente utilizada por hindus, islâmicos, antigos zoroastros, africanos, japoneses e chineses76); os rapés amazônicos à base de virola (princípio ativo encontrado em vegetais da família Myristicaceae, precipuamente, a Virola Calophylla) e yopo (comum às plantas da família Fabaceae, principalmente, a espécie Anadenanthera colubrina77), além das secreções extraídas do sapo Phyllomedusa bicolor, conhecido pelas civilizações ameríndias como Kambô ou “vacina do sapo”78.

Já o termo psicodélico ganhou amplitude por volta da década de 1960, no intento de classificar estas substâncias sui generis, cujo consumo adquiriu grande significância frente aos movimentos contraculturais emergentes nesta época. Porém, tal denominação foi estipulada no ano de 1953 a partir dos estudos do psiquiatra Humpry Osmond denominando àquilo capaz de revelar potências metafísicas e espirituais. Uma expressão também estipulada a partir de duas palavras do vocábulo grego, onde “psyché” representa o espírito ou a alma, enquanto o étimo “delic” designa, em português, algo ou coisa, que se torna explícito e manifesto.

Contudo, ao tratarem de substâncias sacramentais - como é o caso da ayahuasca consumida não apenas por povos tradicionais, mas por religiões e grupos místicos inseridos em diversos centros urbanos – a laicidade e amplitude do termo psicodélico o inviabiliza frente às análises qualitativas, estando grande parte dos pesquisadores propensa à utilização da terminologia enteógeno, por considerarem-na mais oportuna e respeitosa, no que tange às experiências místicas narradas unanimemente, tanto pelos homens da floresta, mas também por caboclos ribeirinhos e habitantes das megalópoles contemporâneas (LABATE, 2004a). Outros autores não abrem mão das expressões “plantas de poder” ou “plantas professoras” por considerarem-nas eficazes, mediante 73

Os vários tipos de “cogumelos mágicos” foram amplamente estudados por Singer; Smith (1958), Gordon- Wason (1968), Heim (1972), Schultes (1998) e Escobar (2008).

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Informações relativas à datura estão disponíveis em Castañeda (2006).

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Como mencionado no primeiro capítulo e discorrido por Gordon-Wasson (1968) e Lévi-Strauss (1976c.).

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Pormenores referentes aos usos ancestrais e contemporâneos do cânhamo consultar Robinson (1999). 77

Dados relativos aos rapés amazônicos estão disponíveis em Wright (2005).

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Detalhes sobre a vacina do sapo Kambô - atualmente interdita pela ANVISA no Brasil - estão acessíveis nos trabalhos de Martins; Machado (2007) e Lima; Labate (2008).

uma maior aproximação das “categorias nativas”, assim como dos significados atribuídos pelos atores pesquisados às substâncias cultuadas e experienciadas em seus efeitos visionários (LUNA, 1986; MOURE, 2005; CASTAÑEDA, 2006; LIRA, 2009a). As tradições dos povos ameríndios de língua Pano, Aruák e Tukano foram estudadas por alguns etnógrafos e etnólogos, que chegaram a conclusões fortuitas, no que tange às semelhanças compactuadas por estes agrupamentos étnicos, especialmente, em relação às suas perspectivas e concepções de mundo. O uso da ayahuasca - e a importância da bebida na vida destes povos - parece surgir como elo crucial de inter- relação simbólica referente às mitologias, filosofias e visões de mundo direcionadas ao convívio do humano com a natureza (ALMEIDA, 2002).

Aqui os atores veem à natureza e seus elementos como algo animado, repleno de espíritos antropomorfizados a vagarem pelo mundo dos vivos, na intenção de incorporarem-se em plantas, animais ou pessoas. Os xamãs ayahuasqueiros figuram hábeis personagens, mediante o vislumbre e a posterior negociação com estas almas extra-humanas, sendo, muitas vezes, capazes de – após o consumo da beberagem – transformarem-se em diferentes seres da floresta, assumindo a perspectiva dos mesmos.

Autores como Weiss (1969), Siskind (1978), Arhem (1981), Towsley (1988), Lagrou (1991), Mendes (1991), Olschewsk (1992), Langdon (1994), Ott (1994) e Luz (2002) nos revelam o mérito sociocultural assumido pela bebida nos povos dos troncos linguísticos Pano, Aruák e Tukano, onde o cipó Banisteriopsis caapi mostra-se presente em praticamente todos os mitos, ritos e cosmologias, fomentando, ao mesmo tempo, o dinamismo inerente a estas culturas tradicionais, que trazem consigo uma teoria plausível sobre a natureza, o homem, o mundo, o cosmos e a cultura.

Lagrou (1991, p.28) e Luz (2002, p.38), por exemplo, nos mostram que dentre os

Kaxinawá de língua Pano – onde a bebida é denominada nixi pae – a concepção de

natureza chega a ser semelhante ao conceito grego de physis, posto que os elementos naturais seriam possuidores de vidas e intenções próprias, sendo a cultura uma extensão da natureza e de suas ordens imperativas, refletidas na vida e nas sociedades dos humanos, das plantas e dos animais. Assim procedendo, o homem Kaxinawá consegue vislumbrar naturalmente um tipo de “força vital”, sempre a unir e fazer-se circular em todo e qualquer fenômeno vivo, incluindo, o homem na categoria natureza.

Nos planos não ordinários da consciência alcançados pela ingestão do nixi pae o homem comum - em especial o xamã Kaxinawá - adentra nos encantos “do outro lado”, interagindo com os yuxins, entidades incorporadas em animais e plantas, que logo

passam a serem identificadas como huni kuin, ou seja, “gente como a gente” (LAGROU, 1991; LUZ, 2002). Nos instantes do êxtase místico, é possível compactuar na prática o sentimento de igualdade entre criaturas vivas e não vivas, estando às visões provocadas pelo nixi pae relacionadas aos sonhos, que na mente do homem Kaxinawá representam formas não ordinárias de relacionar-se com o plano metafísico e natural.

A purgação vomitória provocada pelo nixi pae, conforme observado por Keifenheim (2002), adquire formas diferenciadas, de modo que o bebedor pode vislumbrar em sua vomição insetos, sangue, excrementos, fogo, vísceras e penas. Ao serem surpreendidos pela purga – e suas visões imagéticas - os sujeitos têm a sensação de serem remetidos para dentro destas imagens, assim como tais imagens adentram no corpo do indivíduo, havendo uma espécie de fusão sinestésica entre imagens e corpos, considerada um estado momentâneo de falecimento ou morte simbólica.

Entre os Yaminawá – também de língua Pano – a ayahuasca, ou shori, permite que entidades extra-humanas manifestem-se nos corpos dos xamãs, fazendo-os cantar e dançar (TOWSLEY, 1988). A melodia é promotora de cura, pois o próprio shori e a música dos Encantados estão associados ao recobro da saúde física e espiritual. Aqui, cantos, incorporações, danças, doenças, saúde e visões mantêm relações dialógicas, pois as visões promovidas pelo shori estão relacionadas à dinâmica do mundo espiritual, esfera da existência constantemente visitada e vigiada pelos xamãs.

Atinando-se à origem dos infortúnios – remetida ao plano metafísico – o xamã

Yaminawá precisa exercitar um tipo de visão seletiva do plano espiritual, no intento de

enxergar certas coisas em detrimento de outras. Daí a importância crucial dada às canções, sempre essenciais ao assegurar as visões e guiar os feiticeiros por certos caminhos específicos na busca por recobro. O êxtase representa o momento ideal para aquisição de sabedoria para a diagnose terapêutica, momento no qual se obtêm conhecimento sobre o funcionamento de corpos e espíritos. Ação que permite ao xamã

Yaminawá fornecer aos seus pacientes remédios precisos e dietas específicas.

Siskind (1978), Schultes; Hoffmann (1992), Ott (1994) e Luz (2002) constataram o papel da ayahuasca (ondi) nas cosmologias Sharanawá, também pertencente ao tronco linguístico Pano, onde os ritos de cura têm o poder de sintonizar as visões dos xamãs com os elementos advindos dos sonhos dos pacientes, estando também os cantos relacionados com as terapias indicadas pelos feiticeiros.

Weiss (1969), Gow (1991; 1996) e Mendes (1991) ratificam a relevância da bebida kamarampi – como o chá é conhecido entre o povo Ashaninka de língua Aruák –

cujas propriedades vomitórias apresentam-se como características cruciais aos processos de cura dos corpos, que expelem secreções referentes ao resto de alimentos de caças, provocando no infortunado moléstias e demais patologias. Parece existir entre os

Ashaninka uma relação direta entre consumir ayahuasca e reter-se moralmente no

continuar de suas vidas ordinárias, havendo aversões ao abuso de fermentados alcoólicos. Os Machiguenga de língua Aruák nutrem a concepção de que os estados de consciência induzidos pelo chá promovem a secessão entre corpo e espírito, contudo tal fenômeno também possa ocorrer nos estados patológicos e nas situações de falecimento. Olschewsk (1992) certifica-se de que a cultura do povo Airo-pai de língua

Tukano propende-se ao consumo ritualizado da ayahuasca (yagé) acompanhado pelo

vislumbre das plantas enquanto possuidoras de espíritos animados, com características antropomorfizadas, cujas realidades só podem ser acessadas por meio do yagé. Entre os

Makuna, também do tronco linguístico Tukano, percebemos o uso da ayahuasca

(denominada aqui de kahi ide) coadunar-se com “concepções nativas” sobre o corpo, a saúde e a doença (ARHEM, 1981). Inebriados pelo kahi ide, os xamãs conseguem proceder em suas diagnoses e curas místicas, porém também são capazes de açodar o fadário pós-morte dos humanos desencarnados, pois acreditam que as visões remetem aos planos espirituais percorridos pela alma dos sujeitos após suas mortes.

Langdon (1994) verifica que o uso da ayahuasca (iko) dentre o povo Siona de língua Tukano interfere na vida e na organização agrupamentos influenciados pelos entes “do outro lado”. Assim, os planos metafísicos e materiais se complementam, apresentando-se como imagens especulares, de modo que todas as coisas que acontecem aqui deste lado repercutem no plano astral e vice-versa. Há forte ênfase no tocante ao poder das forças sobrenaturais capazes de interferir no funcionamento de organismos e sociedades, podendo trazer discórdias, doenças, falecimentos, catástrofes naturais, anomalias, escassez alimentar e demais fenômenos “anormais”. Consagrar o iko representa um ato ritual, que auxilia o xamã Siona frente à suas visões, sempre hábeis a evocar os poderes da cura, assim como a manufatura de remédios e poções singulares.

Segundo Luz (2002, p.63), outro aspecto semelhante relativo ao uso da ayahuasca dentre estas populações apresenta-se no caráter pedagógico conferido à beberagem tida como possuidora e transmissora de conhecimentos e saberes fundamentais à vida destes povos ameríndios, especialmente, no tocante às questões morais e comportamentais dos atores frente às relações sociais mantidas com outros sujeitos, mas também com os ancestrais, os seres da natureza e os espíritos. Aqui,

parece existir uma forte convicção nos propósitos terapêuticos do chá, sendo o mesmo evocado como um agente ativo frente ao auxílio xamanístico da diagnose dos males e infortúnios, além de representar um potente remédio prescrito para o alcance do recobro da saúde em praticamente todos os grupos étnicos acima citados.

Langdon (1994), Wright (1998), Almeida (2002) e Keifenheim (2002) observam que o consumo terapêutico da bebida - nixi pae, yagé, kamarampi ou caapi - não se restringe enquanto algo exclusivo aos xamãs, posto que atores não xamãs também costumam entrar em contato com os mistérios da ayahuasca, cujas propriedades teriam o poder de atuar sobre corpos, mentes e espíritos, facilitando a circulação dos sujeitos entre planos sobrenaturais e realidades ordinárias, porém deixando bem claro que a “verdadeira realidade” repousa no plano metafísico, onde habitam os entes extra- humanos. As visões da ayahuasca são tidas como semelhantes aos estados de sonho e morte, contudo – contrariamente ao sonho – as alterações perceptivas sejam controláveis pelo bebedor, que mantem-se continuamente consciente. Neste sentido, os psicoativos ameríndios, ou melhor, os enteógenos, assim como os cantos, os sonhos, as danças e demais nuances performáticas configuram técnicas hábeis à modificação