• Nenhum resultado encontrado

ABERTURA DA PRIMEIRA PARTE

2. Psicoativos e contatos culturais nas modernas cidades industriais

2.1. O saber sobre o poder do puritano proibicionismo

2.1.3. Eram os usuários outsiders?

Buscamos neste capítulo relativizar determinadas “certezas globais”, dentre as quais as ações proibicionistas frente à compreensão desta contínua e peculiar formação de outsiders, conduzindo nossos leitores a um “mundo desviante” heterogêneo e ativo permeado por fluidez e criatividade. Ao mesmo tempo refletimos sobre o alcance e o cumprimento das leis, concluindo que seus agentes costumam interpretá-la de modo distinto, atuando seletivamente diante da vigilância e da punição de certos extratos sociais. Observamos no campo das substâncias psicoativas, que o movimento global para o fomento de políticas e legislações tem origem nos ideais puritanos, xenofóbicos e republicanos estadunidenses. Vislumbramos assim, o fomento mesmo que falido dos ideais “antidrogas”, reforçando o sonho americano de “guerrear” na tentativa ilusória de exterminar todos os psicoativos considerados ilegais, ao mesmo tempo em que almeja perseguir etnicamente seus usuários ideologicamente identificados enquanto elementos minoritários, párias, e destoantes do processo civilizador.

Sabemos que crenças coletivas são imunes a qualquer tipo de dado ou informação que as contradiga, revelando seus limites ou sua falsidade, justamente, pelo fato de serem compartilhadas historicamente por vários atores sociais em contato. O caráter coletivo e temporal faz com certas “verdades” sejam configuradas como absolutas e únicas, renegando suas eminentes falhas e contradições. Quanto mais antiga for uma crença coletiva compartilhada na forma de “herança sociológica”, mais inabalável ela se apresentará, mesmo que os sujeitos avaliem racionalmente a sua falsidade ou incertezas. Nestes termos, certas crenças distorcidas formuladas por preconceito são dignas de investigação sociológica, todavia este mesmo preconceito não

possa ser estudado isoladamente, sendo necessário ao analista manter-se cada vez mais atento aos diversos contextos nos quais ele ocorre, preocupando-se em desnaturalizar e criticar tais preceitos através de um novo arcabouço teórico.

O proibicionismo causa um mal global evitável, sendo também representado por uma crença distorcida formulada em contextos de preconceito. Torna-se, atualmente, um mal considerado por muitos inevitável, porém é notório que ele agrava as questões que envolvem o uso, o abuso e a dependência em substâncias psicoativas, gerando um sofrimento considerado normal, contudo, quando observado criticamente, vemos que além de evitável, a postura proibicionista torna determinadas situações ainda piores.

Ao refletirmos sobre os repetidos danos históricos e jurídicos causados pela ideologia proibicionista, aludimos para a necessidade de críticar este fenômeno, a partir do rompimento com obsoletas premissas num movimento epistemológico de “desentorpecimento da razão”, tal qual foi indicado por Karam (2008). Ela observa que os danos identificados nas questões jurídicas, envolvendo determinadas substâncias ilegais no Ocidente, não advêm diretamente de seus efeitos farmacológicos, estando todas as legislações proibicionistas diretamente atreladas às situações de periculosidade. Assim, tomamos ciência de que conversões e legislações proibicionistas criminalizaram o consumo, a produção e a distribuição daqueles psicoativos considerados ilegais, conquanto o verdadeiro perigo pareça residir na expansão do poder punitivo, que parte para o enclausuramento como consequência da negação de direitos fundamentais das minorias, em ações totalitárias emergentes em “Estados democráticos” atuais. Enquanto ação juridicamente totalitária, o proibicionismo cria ao mesmo tempo a violência e a doença, pois como foi visto o uso de qualquer substância, quando passa a ser considerado ilícito escapa dos controles oficiais, ampliando-se a possibilidade do mesmo vir a se tornar indevido, por ser danoso e trazer riscos à saúde:

(...) o proibicionismo oculta também o fato de que a proteção da saúde pública (...) é afetada por esta mesma criminalização das condutas relacionadas às drogas qualificadas de ilícitas, é afetada por esta mesma criminalização, que impede um controle de qualidade das substâncias entregues ao consumo, impõe obstáculos a seu uso medicinal, dificulta a informação e a assistência, cria a necessidade de aproveitamento de circunstâncias que permitam um consumo que não seja descoberto, incentivando o consumo descuidado ou anti-higiênico propagador de doenças como a Aids e a hepatite (KARAM, 2008, p.118).

O proibicionismo oculta, acima de tudo, seus danos à democracia uma vez que munido da cumplicidade do sistema penal estimula e fomenta a violência, ao mesmo tempo em que apresenta substâncias inertes como agentes responsáveis pela desestruturação social. As substâncias e seus efeitos não são capazes de provocar, por si,

tamanhos distúrbios observáveis de modo que a violência representa um subproduto das atividades clandestinas envolvidas numa rede paralela de produção econômica frente à distribuição e produção dos psicoativos imersos no mercado ilícito.

O narcotráfico, a corrupção, a doença e a violência surgem como fatores derivados dos princípios proibicionistas, estando o narcotráfico, por sua vez, adquirindo representações maléficas e diabólicas, esquecendo-se da condução de seu “pai fundador”; o proibicionismo. Neste caso, também não se relaciona o modelo econômico e sua atuação para com as desigualdades de renda e no posterior fomento de massas de sujeitos desprovidos de recursos e expectativas de vida. Estas e outras contradições mais aparentes costumam ser imputadas a determinadas práticas rotuladas enquanto ilegais, construindo-se, para a sua total coibição, ainda mais prisões para o encarceramento de supostos traficantes e usuários, porém com o posterior esquecimento acrítico de que a inteligência estatal - incluindo as próprias polícias - e as máfias criminosas “andam de

mãos dadas” (HENMAN, 2008, pp.372-373). É neste sentido que o narco comércio -

devido à sua invisibilidade epistemológica - vem se tornando agente dos mecanismos corruptores, uma vez que, enquanto instituição mantém-se ativo desde o ato original da proibição. Tido criticamente como um mal evitável, porém mantido ideologicamente, o narcotráfico se perpetua na atualidade, onde adquire status de um demônio.

Ao “satanizar” certas substâncias a lógica proibicionista também impede que as mesmas sejam vistas e estudadas em suas eventuais possibilidades terapêuticas, posto que o rótulo da ilegalidade as transforma em objetos de “pavor” e “impureza”, por supostamente afetarem a estabilidade do convívio social. O desprezo pelas substâncias proibidas e, consequentemente, por seus usuários, atinge esferas jurídicas, médicas, morais e políticas, de modo que a eficácia das proibições só aparece efetivamente favorável àqueles que proíbem. A proibição estipula um grandioso tabu no Ocidente, apresentando-se como um “entorpecente político” e epistêmico, cuja visão de mundo ofuscante, obscurece a reflexão da sociedade sobre si mesma.

A possibilidade do consumo – e até mesmo do estudo científico - de psicoativos ilícitos, como toda quebra de tabu, gera na sociedade majoritária uma atmosfera de pânico e desconfiança, que permeia a vida dos atores. Sobre os “aventureiros desgarrados”, que se atrevam a adentrar em tais “domínios obscuros”, supostamente “desordenados”, “diabólicos” e “perversos”, cabe à identificação, classificação e prováveis punições sociais dos desviantes, que passam a ser rotulados enquanto loucos, viciados, vadios ou marginais. Entes que - apesar das aparentes

divergências - compactuam de laços comuns ao estado liminar da “marginalidade”, entre eles, o caráter insocial dessa condição específica.

Diante dessa lógica alarmista, as substâncias revestem-se animicamente de portentosas subjetividades, uma vez que transubstanciam todos os males sociais conhecidos. Aquele que ouse envolver-se direta ou indiretamente com este mal, ou seja, o usuário de psicoativos ilícitos oferece risco de “contaminar” toda a sociedade. A forma “mais eficaz” de coibir determinados comportamentos indevidos reverte-se, em grande parte, na imagética da contaminação e da doença, posta em ação no Ocidente, no intuito de isolar os sujeitos em “instituições totais” (GOFFMAN, 1974), como manicômios ou clínicas mais sofisticadas e contemporâneas para desintoxicação e possível recuperação dos atores problemáticos.

Becker (2009) nos mostra como fatalmente os desvios - de maneira geral - são vistos patologicamente através de visões biologizantes e psicologizantes, pois a noção de doença sempre pareceu ser utilizada na descrição de comportamentos estranhos aos paradigmas dominantes, que comumente enquadram o desvio como produto de uma doença mental. Conforme estas concepções reducionistas “um viciado em drogas é visto

como o sintoma de uma doença mental” (BECKER, 2009 p.18). Ele critica

assiduamente os sociólogos, que pensavam os desvios sociais ancorados nos pressupostos médicos e psicológicos de saúde e doença, identificando e destacando os fenômenos outsiders enquanto sintomas de anomia e desorganização social.

Para Becker (2009, pp.44-45), o senso comum, e até certo ponto a ciência, costuma identificar os sujeitos desviantes como se os mesmos fossem “desviantes totais” – ou, segundo Mota (2009, p.166), “desviantes globais” - e não “parciais”. Esta identificação pejorativa movimenta inúmeros mecanismos, que moldam o “sujeito marcado” - ou, nas palavras de Goffman (1982) “estigmatizado” - perante a imagem que os outros atores constroem a seu respeito. Assim é que são criadas as fronteiras, impedindo o sujeito estigmatizado de participar dos ciclos sociais normais, restringindo contatos e reforçando diferenças. Ao desviante é destinado o isolamento e, no que tange ao usuário de psicoativos ilegais, o estigma parece ser ainda maior.

O dependente em substâncias ilícitas passa a ser tratado de maneira repressiva, mesmo porque é sabido que toda proibição gera atividades clandestinas e cria situações sociais de risco e violência; fenômenos que não se coadunam com os princípios gerais e democráticos, que envolvem a liberdade humana. Representações sociais são acionadas na tentativa de lidar com este sujeito, de modo que ele passa a ser visto, antes de tudo,

enquanto desprovido de força de vontade, devido ao fato de ser incapaz de se abster dos “prazeres” fornecidos por determinadas substâncias psicoativas ilegais e também legais, como é hoje o caso do álcool, do tabaco e de medicamentos farmacêuticos.

Em se tratando das nuances relativas à construção do estigma de “doente mental”, Goffman (1974; 1982) observa que caso o sujeito receba o rótulo referente a tal condição, os outros atores passarão a considerá-lo como “um ser à parte”; isolado e marcado socialmente. Goffman (1974, pp.295-296) traz importantes observações de Szasz (1958) sobre o papel da rotulação, do estigma e dos desvios nos processos de manutenção ou perda da saúde mental. Para Szasz (1958) o senso comum constrói uma definição de saúde mental relacionada à capacidade que os sujeitos adquirem, ou não, para “jogarem bem” os “jogos da vida social”.

Perante Szasz (1958) ficamos cientes de que caso algum ator “recuse-se a jogar” ou até mesmo “jogue mal” determinadas “partidas sociais” pode ser enquadrado na categoria de “doente mental”. Ele alude para a relatividade conceitual, envolvendo certos rótulos atribuídos a determinados sujeitos, sendo quase impossível delimitar fronteiras e diferenças entre o simples desvio ou inconformismo do sujeito “mau jogador” e a doença mental a ele atribuída por terceiros. Szasz (1958) deixou momentaneamente de lado os referenciais técnicos fomentados pela psiquiatria, analisando duas categorias principais, que parecem oscilar funcionalmente conforme um

continuum representado pelas expressões: “ele está errado” e “ele está mentalmente doente”. Ele conclui não haver um padrão capaz de distinguir o simples erro e

inconformismo da doença mental propriamente dita, sendo culturalmente diferentes as respostas dadas pelas sociedades no trato com os sujeitos assim identificados.

Os autores nos aconselham a levarmos ontologicamente a sério estes sujeitos, fazendo questão de lembrar suas dignidades e direitos, sendo preciso que os consideremos como mais ou menos semelhantes a nós. Apenas esta tentativa de humanização, ou seja, a preocupação de trazer todos os sujeitos - desviantes ou não - à condição igualitária de humanidade nos permitiria estipularmos categorias precisas como, por exemplo, as de “vício”, “discordância”, “crime” e “doença”. O distanciamento destes sujeitos delega-os acriticamente à “inferioridade da espécie humana”, fazendo com que sejam nivelados em categorias pejorativas, tais quais, a de “louco”, “psicótico”, “insano”, “viciado”, “mentalmente afetado” e etc.

Capítulo 03

“Que droga de doença?” Reflexões socioculturais sobre os fenômenos da saúde, da doença e da corporeidade diante do uso, do abuso e da dependência em psicoativos

“O processo de discriminação repousa no exercício preguiçoso da classificação: só dá atenção aos traços

facilmente identificáveis (...) e impõe uma versão reificada do corpo. A diferença é transformada em estigma. O corpo estrangeiro torna-se corpo estranho. A presença do outro se resume à presença de seu corpo: ele é seu corpo” (DAVID LE BRETON, 2006, p.72).

3. “Navegando em águas turbulentas”. Qualificando patologias físicas e mentais

Antes de procedermos qualquer escrito envolvendo a temática sociocultural e histórica de qualquer doença, principalmente, a doença mental (incluindo a dependência em substâncias psicoativas) é importante trazermos algumas considerações referentes às principais correntes intelectuais voltadas ao assunto, entre as quais destacamos o interacionismo simbólico (com sua teoria da rotulação e a antipsiquiatria, que encontram em Goffman e Szasz seus interlocutores principais, assumindo postura crítica frente à medicalização e institucionalização da patologia mental) e a filosofia histórica e social foucaultiana (que acentua o poder da medicina frente à normatização da vida).

O interacionismo simbólico, por sua vez, nos ajuda a refletirmos sobre a criação dos desviantes crônicos, trazendo para este entendimento noções oficiais de terapia e tratamento e como, apesar da existência institucional dos mesmos, o paciente (mental) não é capaz de retornar ao estágio da “normalidade”. Estas instituições não seriam capazes de curar os suplicantes, muito pelo contrário! Elas mostram-se condicionantes, educando o paciente à permanência em seu estado patológico de “eterna desviância”. A rotulação não levaria em conta o papel temporário dos atores “mentalmente afetados” nos setores especializados, admitindo sua completa alienação promovida pelas forças institucionais, mesmo porque “uma vez doente mental, sempre doente mental”.

A rotulação via o desditoso mental como um sujeito passivo, aprisionado em “gaiolas” mentais e institucionais de onde jamais conseguiria sair. Para o interacionismo simbólico a doença estigmatizada incapacitaria o retorno do sujeito à vida normal, pois os poderes institucionais lhe enfraqueceriam ao ponto de tirar-lhe suas forças e, consequentemente, suas vozes perante a luta pela redefinição identitária. Apesar de lidar com as relações sociais, a rotulação acabou destituindo as pessoas “mentalmente afetadas” dos recursos e processos sociais intersubjetivos, mesmo Goffman (1974) tendo alentado para a recorrência das chamadas “histórias tristes”, porém, tais histórias representariam nada menos do que “fagulhas ao vento”, uma vez que se originariam do

discurso de atores desacreditados, estando à subjetividade comprometida e a se dissolver nos rótulos e nas relações dos sujeitos com as estruturas medicalizantes.

Todavia, o interacionismo simbólico, a antipsiquiatria e a teoria da rotulação assumiram papel militante em oposição aos modelos médicos, ao nos mostrarem a medicina pelo prisma político, moral e excludente, sempre na busca por controle e correção de comportamentos indevidos ou indesejados. A rotulação nos diz que a noção de doença no Ocidente é definida conforme os interesses das classes médicas e outras agências a serviço do controle social (SZASZ,1958; 1992; GOFFMAN, 1974; 1982).

Foucault (1977a; 1977b; 1978), além de analisar os processos sociais em longa escala, possuía a tendência de relacionar toda experiência humana ao âmbito das relações institucionais. Ele não buscava compreender a ação dos atores em sociedade, revelando estruturas, eventos históricos e condições específicas dos quais emergiam os processos sociais. Neste pensamento fatalista, o indivíduo surgiria como produto das estruturas institucionais, sendo incapaz de possuir um self reflexivo. Não obstante, os homens viveriam suas vidas inconscientes das causas e dos princípios relacionados com as suas experiências existenciais, sendo a subjetividade apenas um produto histórico, cuja relevância seria analiticamente nula frente à compreensão do mundo social.

Foucault, apesar de demonstrar o processo desumano da medicalização, tendeu a referenciar e enaltecer a agência biomédica em seu trabalho de “colonização” dos corpos pelo biopoder; na forma de correntes filosóficas normatizadoras e padronizadoras de corpos submissos (dóceis) aos sistemas estatais.

As duas correntes acima citadas - no lidar com a patologia mental no Ocidente - revelam algumas questões pertinentes envolvendo a medicalização da vida e o controle social. Porém, precisamos ter em mente que Foucault situava a ação médica – e a de todas as ciências humanas – na essência da racionalização burocrática ocidental, enquanto que Goffman e os seus companheiros da rotulação criticavam este tecnicismo burocrático médico e seu poder de ditar quais doenças eleger como “leves” ou “graves”, “físicas” ou “mentais”, “dignas” ou “amorais”. O sujeito portador de um problema mental nas duas perspectivas não deixava de apresentar-se enquanto vítima isolada, muitas vezes desprovida de perspectivas ou recursos para conseguir sair de sua situação, precipuamente, se levarmos em conta as premissas normativas de Foucault.

Contudo, novas perspectivas analíticas surgiram no intento de lidar com as patologias do corpo e da mente devido à emergência do “paradigma da experiência”, representando um verdadeiro retorno ao mundo existencial dos atores; como

possibilidade de finalmente conseguirmos captar algumas “fagulhas” daquilo que foi e é vivido, experenciado e sentido pelos sujeitos em constante interação uns com os outros. Neste sentido, noções universais e idiossincráticas de alegria, tristeza, prazer, dor, “vício”, cura e doença surgem como fenômenos legítimos do conhecimento científico capazes de ampliarem nossas percepções antropológicas, assim como o surgimento de uma nova compreensão da relação mantida entre corpos e mundos.