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ABERTURA DA SEGUNDA PARTE As substâncias psicoativas e as religiões

5. As origens do sincretismo brasileiro

5.2. Um gradiente mediúnico dentre as religiões espiritualistas brasileiras

5.2.1. Entre umbandistas, macumbeiros e antropólogos na busca de uma “África mítica”

É preciso ratificar os esforços de Ortiz (1978, pp.10-15) ao discordar das premissas culturalistas e funcionalistas incrustadas no pensamento nacional sobre a religião dos subalternos, permitindo-se à investigação estruturalista da possível inter- relação existente entre a Umbanda e a sociedade industrial brasileira subdividida em classes sociais. Contudo, Ortiz (1978) não necessariamente enxergou na Umbanda um fenômeno sincrético religioso, tal qual pensavam os seus antecessores. Apropriando- se do conceito herkovitsiano de reinterpretação, Ortiz (1978) empreendeu uma análise comparativa da entidade Exu102 no Candomblé e na Umbanda, preocupando-se em

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Ortiz (1978) dedicou-se à análise estrutural referente às ambiguidades envoltas da entidade Exu na Umbanda e no Candomblé. De acordo com ele, nas cidades brasileiras em processo de industrialização, os adeptos da Umbanda teriam identificado os Exus como “espíritos da esquerda”, cujo “habitat natural” seriam as ruas das cidades, pois sempre estariam a vagar por entre esquinas, cemitérios e encruzilhadas. Na forma de mulher foram identificados enquanto “Pombas-Giras” (espíritos de prostitutas ou de “mulheres vulgares”), enquanto que na forma masculina personificam o papel do “malandro brasileiro” a trapacear, tirando pequenas vantagens de suas astúcias e contravenções. As discussões sobre estas e outras entidades do panteão africano no Brasil serão melhor aprofundadas no próximo capítulo, quando traremos discussões sobre o contato da Umbanda com o Santo Daime, em território amazonense. Essa tônica será retomada na terceira e última parte de nossa tese, na qual procuraremos descrever e analisar etnograficamente as nuances institucionais, simbólicas e fenomênicas emergentes do Centro Ayahuasqueiro Flor de Jasmim – situado no município de Japaratinga

entender o “embranquecimento” das tradições de matrizes africanas no Brasil, mas também refletindo sobre o suposto “empretecimento do Kardecismo” 103, ambos movimentos culturais condizentes às mudanças pelas quais passava nossa sociedade urbano-industrial durante o século XX. Neste sentido, o cosmos umbandista figuraria um reflexo especular das contradições da sociedade nacional, levando em consideração, que nas urbes contemporâneas e industriais brasileiras a Umbanda teria maior adesão e funcionalidade do que o Xangô e o Candomblé, tendo em vista os altos custos financeiros104necessários à manutenção destes últimos.

(AL) - no qual desenvolvemos trabalho de campo. O CAFJ identifica-se como uma “nova irmandade ayahuasqueira”, sendo seguidora da “Linha da Umbandaime”; fenômeno recente no “campo religioso da ayahuasca” e que se propõe, como veremos, ao diálogo cultural entre elementos daimistas e umbandistas no mesmo processo mítico e ritual. Por ora, basta mencionar que nos Xangôs e Candomblés, Exus são considerados mensageiros ou até mesmo policiais a mando dos Orixás. Nos tempos da opressão, estas entidades foram alvo de estigmatização e marginalização, precipuamente, por parte dos adeptos da Umbanda, embora bem antes disso – já no período colonial – Exu tivesse sido atrelado à figura do diabo cristão, personificando tudo aquilo de mais impuro, imoral e perigoso. Os primeiros umbandistas – conforme o raciocínio de Ortiz (1978) – tinha-os identificado como espíritos desencarnados de escravos africanos revoltosos e insurgentes. O fato é que por muito tempo o Exu foi rejeitado pela Umbanda e visto pelo prisma da negatividade, pois estaria a serviço da Quimbanda, ou seja, da “magia para o mal” feita por “gente que meche

com o submundo”. Por outro lado, representações hodiernas na Umbanda identificam os Exus dentro do contínuum concernente à evolução espiritual kardecista, classificando-os de entidades “menos evoluídas”,

porém portadoras de potencialidades frente ao alcance da evolução espiritual. Muitas Casas de Umbanda ainda discernem “Exus pagãos” (quiumbas) de “Exus batizados”. Nesta lógica, os batizados são os Exus, que se renderam à doutrinação em prol do exercício da caridade; uma atitude que os faz adentrar na escala da evolução

espiritual. Segundo Ortiz (1978), Góis Dantas (1988), Negrão (1996), Júnior (2007) e Mizumoto (2012) o

batismo de Exus foi inicialmente estudado pelo prisma da aculturação, onde os intelectuais acreditavam que a Umbanda procurou “domesticar o mal”, protegendo a tradição, a sociedade e o sagrado dos perigos externos, incluindo o caráter ambíguo, imoral e perigoso dos Exus.

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Análogo ao processo de “embranquecimento das tradições africanas no Brasil (como lhe parecia ser o caso da Umbanda e de outras tradições “misturadas”), a partir da adequação dos pressupostos kardecistas, Ortiz (1978) identificou o movimento de “empretecimento do Kardecismo”, advindo das insatisfações de alguns antigos kardecistas descontentes com o grau de cientificação almejado pela doutrina espírita. Sendo assim, símbolos e entidades do panteão da Macumba foram adotados por grupos kardecistas dissidentes, dispostos a Trabalhar com Caboclos e Pretos-Velhos, porém abstendo-se de certos elementos não coadunáveis ao conceito de evolução espiritual. A reconfiguração dos elementos da Macumba pelo Kardecismo – o que para Ortiz (1978) teria gerado a Umbanda - deu-se de maneira seletiva e asséptica, uma vez que teve por objetivo a tentativa de depurar certos elementos africanos considerados “animistas” e “fetichistas” capazes de repelir as mentalidades “mais esclarecidas”, dentre os quais podemos citar os ritos envolvendo sacrifício de animais, o uso de aguardente e de tabaco, além das demais oferendas de alimentos e bebidas consagrados às entidades, mas também distribuídos dentre os adeptos e clientes dos Terreiros. Ortiz (1978) nos auxilia na compreensão de que, por um lado, o Kardecismo forneceu às matrizes africanas brasileiras uma estrutura simbólica e doutrinária hábil a reconfigurar antigos mitos e ritos “primitivos”, enquanto que do outro lado veríamos a manutenção de alguns elementos ancestrais justificados por intermédio do discurso científico. Dito de outro modo, as representações desta ordem não abriam mão de noções e conceitos cartesianos inspirados, por exemplo, na química, na física, na matemática, na filosofia e na astrologia frente à legitimação da persistência dos símbolos e das entidades africanas em contextos kardecistas e umbandistas. No início do século XX, os cultos umbandistas estimularam a continuidade entre magia popular e ideologia espírita cartesiana, sempre estando a Umbanda a depurar e reinterpretar os elementos das culturas africanas em cenário de industrialização.

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Os trabalhos de Motta vêm constatando os altos custos financeiros intrínsecos aos cultos do Xangô e do Candomblé perante a manutenção de festas e banquetes, momentos ideais para dádiva e distribuição de bebidas e alimentos. As festas são mantidas pelos fiéis, enquanto obrigações anuais, de modo que seguem um poderoso sistema de reciprocidade dentre filhos de santo, sacerdotes, santos e clientes das Casas nagô. Maiores detalhes consultar Motta (1979; 1982; 1991a; 1991b; 1993; 1995; 1988; 1999; 2003; 2004; 2009; 2011).

Esta observação econômica, fez com que Ortiz (1978) previsse um maior expansionismo umbandista em detrimento à manutenção e propagação dos cultos jeje-

nagô, além do que, as práticas umbandistas seriam mais propícias à aceitação da

sociedade moderna brasileira. Os esforços de Ortiz (1978, pp.91-108) foram significativos ao tentar definir o sincretismo encontrado nas religiões populares e espíritas brasileiras; fenômeno que para ele estava longe de ser explicado pelo prisma da simples mistura simbólica analógica e da incoerência cognitiva e filosófica supostamente imanentes à raça negra, como refletido por Bastide (1971; 1973; 1974).

Para Ortiz (1978, p.100), o sincretismo residia no princípio da unificação, ou seja, da união fenomenológica de elementos dispersos e em suspensão advindos de duas, ou mais, matrizes simbólicas e místicas distintas, formando uma totalidade a conservar-se ordenada pelo mesmo sistema aglutinador. E assim Ortiz (1978) prosseguiu, verificando ambivalências e contradições emergentes nos processos sincréticos por ele encontrados, propendendo-se à evidência da Umbanda como uma “síntese social”, sempre em busca da aceitação por meio do ajustamento cultural.

Lapassade e Luz (1972), noutra análise pioneira no campo acadêmico, enalteceram o papel social da Macumba e da Quimbanda105, vistas por muito tempo, como “contraculturas religiosas” oprimidas; insurgentes da dominância exercida de uma cultura branca englobante. Estes autores reforçam o erro de Nina Rodrigues e seus companheiros ao exacerbarem a suposta “pureza cultural” do Candomblé, deixando-se de lado o entendimento de outras manifestações populares, como foi por muito tempo o caso da Macumba, tida como uma “variação misturada” e por isto “deturpada”.

Lapassade e Luz (1972, pp.14-22) expuseram a diversidade das manifestações religiosas sincréticas, nutrindo a percepção dos empréstimos culturais, além da defesa

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Quimbanda ou Kimbanda figura um conceito bastante ambíguo no vasto universo umbandista. Por vezes, verificamos a conotação desta expressão, sendo utilizada para designar uma religião independente da Umbanda, embora muitos intelectuais contemporâneos tenham ressaltado ser tal terminologia uma categoria acusatória criada no interior do próprio campo religioso umbandista. No sentido acusatório, a Quimbanda é associada a grupos que supostamente fariam trabalhos de “magia negra”, enquadrados na categoria de “baixo espiritismo”. Nesta perspectiva, o “quimbandeiro” seria sujeito poderoso e perigoso, por ser conhecedor do mundo espiritual, envolvendo-se, ao mesmo tempo, com forças “do bem” e “do mal”. Àquele identificado enquanto quimbandeiro costumaria venerar o “povo da rua”, ou seja, entidades que habitam matas, cemitérios e encruzilhadas, principalmente personificados nas figuras de Exus e Pombas-Giras. O cosmos umbandista delega a estas entidades poderes e forças malévolas, porém não necessariamente considerem estes espíritos essencialmente malignos. Dentro do panteão da “Linha da Esquerda”, os espíritos obsessores são considerados mais perigosos e denominados de Quiumbas, ou Kiumbas, sendo identificados enquanto Exus não batizados e, por isto, situados no “plano inferior” da hierarquia espiritual. Na Umbanda Exus e Pombas-Giras batizados costumam Trabalhar em prol da caridade e do desenvolvimento espiritual e proteção de seus médiuns (“cavalos”). Devido ao fato dos Exus estarem mais próximos da “faixa vibratória” dos humanos - em termos de vontades e comportamentos- aos mesmos são atribuídas características antropomórficas e fornecidas oferendas, tais quais bebidas alcoólicas, cigarros, velas, perfumes e charutos.

sobre a impossibilidade de se classificar qualquer forma religiosa de matriz africana – ou outro elemento cultural – pela lógica da “pureza”. Para eles, a única e verdadeira contracultura negra existente no Brasil seria representada pela Quimbanda, pois a mesma, devido ao seu caráter “primitivo” e “visceral”, insurgia-se contra a Umbanda, tida como mais pacifista e embranquiçada. Eles ainda se propuseram ao diálogo entre a sociologia marxista e a psicanálise freudiana no intento de relacionar o fenômeno da Macumba com as rebeliões dos escravos em tempos coloniais.

Desde os anos 1970 as análises antropológicas no tocante ao universo africano no Brasil deixaram de priorizar àqueles grupos considerados tradicionais ou “mais puros”, mesmo porque as críticas impostas, especialmente, a Bastide, representavam o descontentamento de certos antropólogos com a perspectiva vigente de só importar-se com os supostos resquícios de uma africanidade ancestral, no intento ideológico de revelar a “pureza africana” de determinados agrupamentos, em detrimento aos “misturados”. Sendo assim, iniciam-se na Academia debates contrários ao “mito da pureza africana” (BIRMAN, 1980; FRY, 1984a; 1984b; 1986; GÓIS DANTAS, 1988).

Diante desta reflexão, os pesquisadores passaram a enaltecer os cultos “iorubanos” em contrapartida às suas despreocupações concernentes aos outros agrupamentos religiosos de origem “banto”, além das variadas combinações sincréticas e ritualísticas encontradas noutras Casas, como parecia ser o caso da Umbanda, que – na lógica de Ortiz (1978) – tendia à rápida disseminação por todo o território nacional. As averiguações antropológicas promulgadas a respeito dos Xangôs e dos Candomblés inclinaram-se às explicações em termos de “genética cultural”, categorizando Casas e Terreiros de origem iorubana como os mais antigos, e por isto, “legítimos”, quando comparados às práticas propiciados pela tradição banto106e suas variações.

Fry (1984a; 1984b; 1986), um dos críticos dessa abordagem purista, afirmou que o mito da pureza africana para categorizar Casas espiritualistas no Brasil emergia em contextos específicos replenos de conflitos e disputas de poder. Neste cenário, os antropólogos deveriam abrir mão das perícias filogenéticas do fenômeno, tendo em vista o enaltecimento das genealogias acompanhado pela busca de ilusórias origens arcaicas, visto que tal perspectiva desconsiderava os processos históricos imanentes ao contato.

Birman (1980) ao debruçar-se sobre os elementos ideológicos do movimento umbandista chegou à conclusão de que a “imagem congelante” do negro africano vinha

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Para Ferretti (1995), a categoria banto não teria acepção no tocante ao contexto religioso, pois refere-se a um grupo linguístico e não cultural.

sendo perpetuada pela sociedade e intelectualidade brasileiras desde os tempos de Nina Rodrigues e grande parte de seus sucessores, para quem, assim como para os adeptos da Umbanda, o sujeito africano era visto pelo prisma da “inferioridade primitiva”. A autora localiza na sociedade brasileira um sistema de representações sociais a respeito do africano enaltecido pelos esforços acadêmicos e absorvido pelo senso comum. Os adeptos da Umbanda, em contrapartida, aceitariam o pressuposto da inferioridade de sua religião, favorecendo a manutenção do status quo, ao contribuir ainda mais para o ordenamento da sociedade, pois validariam a ordem social vigente. Na sua lógica, os africanismos empreendidos pelos pesquisadores ao estudar Terreiros, representariam meras estratégias ideológicas frente ao encobrimento dos princípios da dominação.

Góis Dantas (1988) chegou à conclusão de que tais conceitos, neste campo religioso brasileiro, articulavam-se às disputas de poder, sempre dispostas a identificar a “superioridade” e a “inferioridade” de certos sujeitos e formas sociais. As oposições mantidas entre “puro” e “misturado” seriam um dos meios eficazes frente à identificação de si perante os outros, num poderoso jogo de forças sociais. Aliando-se a Birman (1980) e Fry (1984a; 1984b; 1986), Góis Dantas (1988) atestou o suposto papel dos intelectuais mediante a perpetuação da hegemonia brasileira do modelo jeje-nagô.

Ao assim proceder, os antropólogos teriam assumido o papel de juízes, continuamente a avaliar, contestando ou não a “pureza” dos cultos, ao mesmo tempo em que contribuíam para uma questionável hegemonia nagô brasileira. Os “nagôs puros” e “mais autênticos”, na maioria dos casos àqueles localizados na Bahia pela denominação de Candomblé foram apontados como “religiões verídicas” opostas às “práticas impuras” da magia e da feitiçaria propiciadas por cultos de origem banto. Ao mesmo tempo em que os antropólogos enalteciam os Terreiros “puros”, àqueles considerados “misturados” por muito tempo foram alvos constantes de incursões policiais, perante intensas acusações de prática de bruxaria, feitiçaria, curandeirismo e charlatanismo.