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ABERTURA DA SEGUNDA PARTE As substâncias psicoativas e as religiões

4.2. A magia ayahuasqueira dos vegetalistas

4.2.1. Saberes médicos e vegetalistas no tratamento da dependência em psicoativos

Na atualidade, o conhecimento de xamãs e vegetalistas ayahuasqueiros vem sendo “aproveitado” diante do estabelecimento de modelos terapêuticos fomentados por algumas instituições situadas em países sul-americanos, encarregadas no acolher e no tratar de sujeitos acometidos pela dependência em psicoativos82. Os pesquisadores vêm demonstrado interesse nas características destas medicinas tradicionais capazes de manifestarem nos sujeitos estados de consciência ampliados e controlados hábeis à cura

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Segundo Luna (1986) e MacRae (1992) esta expressão em quíchua significa “assoprar fumaça para curar”.

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Trata-se de uma cruz com dois braços transversais; o de baixo mais comprido do que o de cima (MACRAE, 1992). O símbolo é comum entre as populações camponesas da América Latina, assim como o livro “La Santa

Cruz de Caravaca”, contendo preces medievais espanholas (LUNA, 1986). 82

Veremos nos próximos capítulos a existência de alguns centros e comunidades terapêuticas brasileiras ayahuasqueiras, tendo em vista que os mesmos, preliminarmente, vieram das religiões ayahuasqueiras e seus modelos curativos, que também serão apresentados com mais detalhes nos capítulos procedentes, onde também entraremos em contato com a legalidade do chá em território nacional e os procedimentos que fazem com que muitos Centros e Igrejas desenvolvam seus Trabalhos de cura revestidos de uma atmosfera mística e religiosa.

das modernas adicções. Em contexto peruviano, Chiappe et al. (1985), há tempos, constataram a ocorrência de tratamentos relativos à recuperação de alcoolistas - que vêm sendo desenvolvidos por grupos da Costa Norte peruana - inspirados no uso da mescalina encontrada in natura no cacto San Pedro (wachuma).

Em solo peruano detectamos comunidades terapêuticas diversas, em especial os Centros: Takiwasi83, Sonccowasi e Situlli84 – que também se utilizam das práticas vegetalistas para o recobro de sujeitos dependentes da pasta base de cocaína e de outros psicoativos, associando estes saberes com os procedimentos da psicologia e da medicina contemporâneas (MABIT, 1995; BÖSCHEMEIER, 2012; RICCIARDI, 2013). Estas terapêuticas específicas estendem-se por outros países da América Latina. Palma (2010, p.48) indicou a existência do Centro Ayllu Tinkuy – dirigido pelo psicólogo Sacha Domenech em terras argentinas – cujos procedimentos terapêuticos também giram em torno do tratamento de toxicomanias, através do consumo ritualizado do wachuma.

Em se tratando de comunidades terapêuticas sul-americanas e seus “trabalhos de

desintoxicação” concretizados mediante uso da ayahuasca, Volcof et al. (2012) aludem

para a existência da Fundación El Emílio85 (situada na cidade argentina de Rosário), a

Fundación Mesa Verde86 (localizada também na Argentina; na cidade de Córdoba) e o

Instituto Espiritual Chamânico Sol de La Nueva Aurora87(em Montevidéu no Uruguai). Entidades, onde há forte relação entre práticas xamanísticas e oficiais, principalmente, das áreas de saúde, da psicologia e da terapia ocupacional. Os pesquisadores vêm dando ampla atenção ao Centro Takiwasi – situado nacidade peruana de Terapoto – fundado pelo médico francês Dr. Jaques Michel Mabit no ano de 1992, após longo período de iniciação e aprendizado junto aos curandeiros locais, onde elaborou um modelo capaz de incluir em sua pragmática múltiplas práticas de cura. Pouco tempo após sua fundação, a Takiwasi passou a receber apoio financeiro dos órgãos responsáveis pela saúde coletiva local. Inicialmente obteve subsídios da União Europeia e do governo Vasco, sendo até os dias atuais auxiliado pelo Ministério de Educação do Peru e do

Centro de Información y Educación para la Prevención Del Abuso de Drogas .

O modelo Takiwasi, em conformidade com os autores, figura um meio psicoterápico singular, tendo em vista que esta agregação de elementos advindos da

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Maiores detalhes encontram-se disponíveis em:http://www.takiwasi.com/Acesso 21 out. 2015.

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Sobre o Centro Situlli consultar:http://www.centrositulli.com/index.php/es/.Acesso 22 Out. 2015.

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Para obter outras informações acessar:http://fundacionelemilio.com.ar/Acesso 21 Out. 2015.

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Outros detalhes podem ser acessados em:http://www.fundacionmesaverde.org/Acesso 23 Out. 2015

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medicina mestiça peruana com os conceitos biomédicos e psicológicos - no tocante ao tratamento de dependências - traz implícita a concepção de que o uso, o abuso e a própria dependência em psicoativos representariam problemas secundários, sendo suas raízes detectadas nos casos envolvendo caos e turbulências nas “esferas espirituais”, condições, aliás, levadas seriamente em consideração no desenrolar dos tratamentos.

Em quíchua, a palavra Takiwasi pode ser traduzida para o português como a expressão “casa que canta”. O paradigma desta comunidade repousa num tripé, cujas bases estão ancoradas nas dietas (isolamento e manutenção de jejuns), nas purgações (propiciadas pela ingestão de plantas depurativas) e nas consagrações paulatinas da ayahuasca. O cotidiano da “clínica” é repleto de dinâmicas de grupo, oficinas e sessões psicanalíticas grupais ou individuais (RICCIARDI, 2013). Os pacientes ficam internados durante 09 meses seguidos, em parcial estado de reclusão, onde há ingestão controlada da ayahuasca e de outras plantas depurativas, como é o caso da Yawa panga (Aristolochia didyma). Os Trabalhos feitos com estes vegetais de poder complementam- se às psicoterapias, oficinas e à própria rotina dos internos.

A ingestão inicial de plantas vomitórias – dias antes da consagração da ayahuasca - por parte dos pacientes tem como objetivo a limpeza do corpo do sujeito devido ao anterior uso de psicoativos, cujas toxinas são expelidas quase que instantaneamente. A função secundária dos vegetais eméticos estaria ainda – conforme os terapeutas da Takiwasi – relacionada à redução, ou, até mesmo, extinção dos sintomas das síndromes de abstinência, pois, após as purgações, os sujeitos afirmam sentirem-se aliviados no tocante aos quadros de ansiedade, irritação, compulsão e depressão devido à ausência de sua(s) substância(s) problema.

Os vegetais professores podem ser administrados individualmente ou em grupos, porém sempre sob a condução e o acompanhamento de uma equipe de médicos, curandeiros, enfermeiros, psicólogos e terapeutas ocupacionais, sem contar com o fato de que outros saberes e práticas também se coadunam com o tratamento, dentre os quais se destacam a ergoterapia, o yoga, a biodança, certas terapias transpessoais, oficinas artísticas e esportivas, além da concretização de ritos e preces católicas88 (BÖSCHEMEIER, 2012; RICCIARDI, 2013). A atuação dos vegetalistas durante as Sessões de cura com ayahuasca ocorre de maneira performática, por meio da entoação

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Böschemeier (2012) reflete sobre a importância do imaginário católico para os membros da comunidade, tendo em vista a existência de uma Igreja nas suas imediações, onde ocorrem missas, orações, confissões, penitências e até mesmo exorcismos.

de ícaros, sopladas (sopradas) de fumaça de tabaco ou de essências aromáticas nos corpos dos pacientes, além das chupadas (retiradas) dos corpos patológicos, que porventura estejam atormentando os organismos infortunados (LABATE et al., 2009).

Böschemeier (2012) e Ricciardi (2013) sinalizam para a relevância do modelo

Takiwasi frente à ampliação do imaginário antropológico, especialmente, no que se

refere à relação mantida entre pacientes e xamãs, uma vez que aqui encontramos vários agentes - incluindo os pacientes e as próprias plantas - atuando nos processos curativos. Quando se permite ao diálogo com outras áreas, conhecimentos e profissionais, o modelo elabora uma crítica contundente ao modus operandi das instituições destinadas ao tratamento oficial de dependentes e outras patologias mentais, nas quais os sujeitos – como vimos no terceiro capítulo – seriam excluídos da participação terapêutica, estando passivos e dependentes dos terapeutas e das suas instituições e psicofármacos prescritos. Os terapeutas desta instituição fomentam uma representação específica a respeito dos usuários de psicoativos, uma vez que delegam o consumo e o abuso de substâncias, por parte dos indivíduos, a um suposto vazio por eles experienciado no decorrer de suas vidas. Na verdade, há uma concordância dentre estes atores da cura, principalmente os psicólogos, de que todos os seres humanos sentem naturalmente uma forte necessidade de “alterar” suas consciências, buscando noutros psicoativos “indevidos” o alcance de um êxtase “ilusório” e “descontrolado”.

Em seu estado de uso problemático de psicoativos, o dependente buscaria, antes de tudo, auferir uma ordem e um comando - na maioria das vezes - inexistente no decorrer de suas vidas, tendo em vista a suposta ausência de uma ordem familiar, sobretudo, de cunho paterno. Ao ter acesso aos tratamentos propiciados pela casa que

canta e suas plantas mágicas - afirmam os terapeutas - os internos conseguem acessar

uma “ordem universal” encontrada dentro do próprio sujeito e que passa a norteá-lo, fazendo com que o mesmo assuma uma nova identidade por meio do acesso a outras perspectivas para além do abuso de substâncias. Ao atingir o “verdadeiro êxtase”, por meio dos enteógenos de forma controlada, o antigo abuso de substâncias, na lógica de pacientes e terapeutas, inclinar-se-ia a uma profunda perda de sentido.

Böschemeier (2012) e Ricciardi (2013) afirmam ser o Takiwasi, e outros modelos semelhantes, a representação de um movimento de hibridismo cultural, que desafia concepções médicas, psicológicas, antropológicas, além da imaginação do senso comum. Atualmente a Casa funciona como um albergue exclusivo aos sujeitos do sexo masculino, cuja faixa etária varia dos 20 aos 40 anos. A maioria dos pacientes – cerca

de 77% – vem de países da América Latina, enquanto 13% são estrangeiros europeus e norte-americanos. 10% dos pacientes vêm de outros países e continentes.

Além do tratamento direcionado aos dependentes, a Takiwasi oferece alguns serviços - destinados aos sujeitos não acometidos por esta patologia e que não precisam de uma internação prolongada - como parecem ser os casos das dietas e dos seminários propostos aos atores na busca de outras curas, por meio da medicina ameríndia. As dietas isoladas, ou seja, não destinadas aos “toxicodependentes”, costumam custar cerca de US$ 1.000, ficando o sujeito resguardado por 10 dias consecutivos, praticando jejuns e ingerindo Yawa Panga e ayahuasca. Já os seminários são voltados ao público composto desde pacientes da clínica até cientistas europeus, sendo realizados em média cinco vezes ao ano, aonde, em cada encontro, os participantes se reúnem por 12 dias seguidos, chegando o evento ao custo de cerca de US$ 1.500 por pessoa.

O tratamento para dependentes representa o eixo crucial da comunidade, onde permanecem os pacientes em recuperação ao longo de 09 meses considerados como período de gestação fetal, uma vez que passados os processos individuais, os sujeitos afirmam terem adquirido uma nova vida como se estivessem encubados dentro da casa

que canta. O tratamento completo gira em torno de US$ 900,00 mensais, porém existam

chances de a instituição propiciar tratamentos gratuitos, especialmente, em se tratando de atores “menos favorecidos” e de nacionalidade peruana.

O modus operandi desta “clínica enteogênica” baseia-se no diálogo promovido entre os vegetais professores com os próprios pacientes absortos em estados ampliados de consciência. Neste contexto terapêutico, a ayahuasca favorece uma experiência unificadora, que gradualmente vai conduzindo os pacientes a ensinos e conhecimentos sobre si mesmos, posicionando-os numa realidade mais ampla para além da materialidade física. Ao longo das experiências não ordinárias o chá não é meramente consumido, posto que suas propriedades visionárias e curativas são integralmente sentidas no corpo, que deixa a “sabedoria da natureza entrar”, até porque – como em todo contexto ameríndio – a bebida é vista como uma entidade norteada por uma agência, ou seja, uma perspectiva e um ponto de vista próprio.

O modelo Takiwasi tende à mudança na concepção de pessoa, sentida não mais pelo prisma reducionista da organicidade, onde o corpo antes era visto como mero objeto instrumental pertencente ao homem, mas, justamente o contrário; o sujeito (alma ou consciência) passa a ver-se como possuído num corpo material, que, em seu âmago encarna uma espiritualidade iminente. Daí a relevância dos procedimentos condutores

de transcendência, na tentativa de dissolução do ego e ajustamento do sujeito a um todo mais amplo, que lhe é apresentado ao longo das Sessões com o chá(MABIT et al., 1992; MABIT, 1995; 2002; BÖSCHEMEIER, 2012; MERCANTE, 2013; RICCIARDI, 2013).

O preparado extraído pelo cozimento de folhas e cipós nativos – de acordo com Mabit (1995) – visa atingir uma concentração máxima de potência visionária, de modo que possam ser visíveis, no sobrenadante das infusões, coloides ou cristais dos alcaloides especiais. O objetivo dos potentes preparados é o de fazer com que o sujeito chegue ao êxtase mais rapidamente, acessando seus corpos físicos, mas também psíquicos e espirituais. Momentos de extrema importância terapêutica, nos quais lhe é possível localizar a origem de seus infortúnios, e que fazem com que os pacientes tomem decisões importantes sobre o rumo e o sentido de suas vidas.

É desta maneira que o Centro Takiwasi vem trabalhando há mais de 22 anos na recuperação de dependentes, propiciando contínuas vivências de dissolução do eu, onde os sujeitos dizem-se renovados ao enxergarem a vida por outro prisma com o auxílio de plantas, curandeiros, psicólogos, padres e médicos, que atendem suplicantes a vagar por diversos itinerários terapêuticos na busca por transformação, alívio e cura, encontrando na terapia como um todo e, mais especificamente, na experiência com a ayahuasca uma harmonia entre os planos astrais, físicos, psíquicos e sociais.

O uso controlado e ritualizado da beberagem, de acordo com os terapeutas da

Takiwasi, não seria capaz de provocar nenhum tipo de dependência, já que, no decorrer

do tratamento, os pacientes tendem a consumir doses menores do enteógeno, além do fato de que eles não sentem compulsão pela ausência da substância, ao saírem recuperados do Centro. Este fenômeno, para muitos especialistas, é visto pelo prisma da “tolerância cruzada”, propiciada pelo consumo de substâncias enteogênicas ou psicodélicas. Halpern (2007, p.07) e Labate et al. (2009, p.26) aludem para a suposição de que estes “psicoativos especiais” teriam propriedades “anti-aditivas”, sendo a ayahuasca considerada, por muitos, como uma “anti-droga”.

Contudo, nunca é demais ter em mente a importância de fatores como o pertencimento dos atores a grupos religiosos e comunidades terapêuticas, assim como o grau de motivação, adesão e compromisso dos pacientes e dos terapeutas para com o tratamento. A adesão a uma comunidade religiosa ayahuasqueira, como veremos nos capítulos procedentes, garante uma forma eficaz de terapia, mesmo que tal instituição não promova Trabalhos voltados aos dependentes, como parece acontecer em muitos grupos e religiões ayahuasqueiros espalhados pelo Brasil e parte do mundo.

Capítulo 05

A espiritualidade popular brasileira e seus processos de sincretismo e ecletismo "Este povo tão importante na nossa formação e que tem sua inegável marca em nossa constituição cultural e

identitária, na maioria das obras a que a eles se referem, são vistos e observados somente no contexto religioso" (IVAN DA SILVA POLI, 2011 p.02).