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Nada obstante sabemos que certos conceitos como, os de “drogas”, “licitude”, “ilicitude”, “marginalidade”, “doença”, “dependência”, “compulsão”, “corpo”, “saúde” e “tratamento” não surgem exclusivamente no Terreiro do Flor de Jasmim, sendo suas construções erigidas histórica e socialmente por determinadas agências e agentes, que se propõem a estipular “representações” e “ações” sociais para determinadas “problemáticas”, entre elas o uso, o abuso e a dependência em psicoativos. Tampouco a prática intitulada em campo por Umbandaime, assim como experiências de êxtase, incorporação e transformação propiciadas pelo uso ritualístico da ayahuasca e outros “enteógenos” 37, sejam exclusivos desta Casa afro-ayahuasqueira alagoana. Julgo injusto lidar com estas temáticas como se as mesmas representassem “coisas dadas”, “verdades absolutas” e, por isto, “indiscutíveis”. Neste sentido, não abro mão de revisões e discussões iniciais nos campos sociológico, antropológico e também historiográfico, no intento de refletir sobre a complexidade e a lógica destes conceitos, averiguando criticamente seus alcances atuais, reformulados por este saber local.

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A terminologia enteógeno também será debatida no quarto capítulo da segunda parte, uma vez que esta denominação aparece mais condigna às representações e experiências sentidas pelos atores com determinadas substâncias vegetais, que fazem seus usuários nutrirem a sensação de interiorização divina, momentos nos quais se afirma que a divindade está dentro dos próprios sujeitos.

Acredito na possibilidade de uma construção textual e hermenêutica hábil à “desnaturalização” e “desmistificação” de alguns conceitos essenciais à seguinte análise, almejando, na medida do possível, a manutenção de um diálogo crítico e construtivo com outras ciências. Por conseguinte, antes de debruçar-me sobre as explicações de campo, por meio da interpretação dos dados etnográficos concernentes à análise do Terreiro, julguei necessário trazer algumas revisões historiográficas e ensaísticas, que serão apresentadas no decorrer da tese. Para tal estipulei um desenho epistemológico audaz e enriquecedor, que, acredito, auxiliará ainda mais para o enriquecimento da discussão de certas tônicas encontradas em campo (Figura 01).

Figura 01. Símbolo “Ouroboros”, representando o “infinito” e o “eterno retorno”. Artista desconhecido.

Obtida em:http://mythologian.net/wp-content/uploads/2013/10/Ouroboros-dragon-serpent-snake-symbol.jpg Acesso 02 Jun. 2015.

Compartilhado por diferentes culturas e civilizações o símbolo “Ouroboros”, mormente, representa os ciclos da vida, incluindo o nascimento, o crescimento, o desenvolvimento e a morte dos seres em contínua interação com o infindável universo. Costuma, a depender da cultura, ser personificado na figura de dragões e serpentes, que engolem as próprias caudas, figurando, assim, o ininterrupto movimento vital entre vida, morte e recriações, sempre em consonância com o cosmos. Nas culturas e práticas antepassadas - especialmente dentre antigos egípcios, chineses, hinduístas, nórdicos, astecas, mas também dentre alquimistas mouros – o símbolo ensejava o fenômeno do “eterno retorno” (ELIADE, 1985). Regresso infinito das coisas ao ponto de partida inicial, numa “dança cósmica” e “hologramática”, onde as fases podem ser isoladamente vistas e previstas pelos seres que “bailam” nesta “cósmica sinfonia”.

A figura foi escolhida como desenho fenomenológico para a tese, tendo em vista vários motivos. Primeiramente, em virtude de ser capaz de ilustrar com precisão a estrutura textual, por mim adotada, na qual os capítulos - que compõem três partes principais - podem ser lidos e apreciados isoladamente, embora estejam implicitamente interligados em perspectiva hologramática, onde as partes contêm o todo e o todo, até

certo ponto, contêm suas partes. A preferência por esta produção literal em hipótese alguma se mostra aleatória, havendo um sentido implícito para sua concretização.

Ao assim proceder, logicamente, tenho ciência de que alguns leitores podem julgar, que eu “quebrei o encanto do campo” e, por conseguinte, “violei” os “dogmas” e “princípios” antropológicos, dado que, após esta introdução, o campo ficará momentânea e propositalmente “em suspensão”, até ser retomado na terceira e última parte. Para estes “leitores apressados” na busca de uma objetividade imediata e local, aconselho – sem maiores comprometimentos literais – avançarem daqui para a terceira parte, onde os dados etnográficos são apresentados com maior clareza. Caso queiram, podem ainda “retornar” à “cabeça da serpente” (representada por esta “introdução”), percorrendo as partes iniciais em sequência, ou não, a depender dos seus interesses.

Àqueles que se dispuserem à compreensão crítica da lógica de certos conceitos podem percorrer o “corpo da serpente”, partindo para as primeiras partes, onde encontrarão capítulos envolvendo tônicas particulares. Acredito que esta experiência será mais construtiva, de modo que ao chegarem à “cauda da serpente” (nas “considerações parciais”) os leitores terão adquirido subsídios frente à compreensão de que o entendimento dos processos culturais e sociais continua, e sempre continuará “em aberto”, tanto no que toca ao conhecimento científico, quanto às coisas da vida, uma vez que nenhum saber é capaz de encerrar as verdades em si, estando os conhecimentos e as culturas – tais quais os seres e as coisas no mundo – em constantes interações, construções e engajamentos (INGOLD, 1990; 1991; 2000; 2002; 2004; 2006; 2012).

A escolha do Ouroboros como estrutura textual também é justificável, quando percebemos que estas noções de “infinidade”, “relação com o cosmos” e “eterno retorno” mostram-se conteudisticamente presentes nas experiências ayahuasqueiras como um todo, assim como em seus mitos e sistemas de crenças, que não se restringem às religiões brasileiras, que fazem uso deste enteógeno. Histórias cosmogônicas envolvendo “serpentes cósmicas”, que criaram o mundo e o universo representam metáforas comuns aos mitos de quase todos os povos ameríndios, que fazem ou não o uso tradicional desta substância (KEIFENHEIM, 2002; LUZ, 2002; SHANON, 2002).

Seguindo a descrição de nossa “serpente textual”, logo na primeira parte encontraremos três capítulos pontuais, cada qual, lidando com temáticas distintas, embora interligadas. No primeiro capítulo entraremos em contato com a história das substâncias psicoativas e da mente humana rememorada, desde tempos mais remotos em suas várias modalidades de usos, incluindo, consumos para fins alimentícios,

terapêuticos, mágicos, religiosos, estéticos, lúdicos e imagéticos. Nesta oportunidade vislumbraremos as relações históricas e culturais mantidas entre o uso de psicoativos e as estruturas sociais, demonstrando agências e agentes tradicionais e ocidentais, que se propuseram a manipular, consumir e distribuir estas “substâncias especiais” nos tempos antigos, tanto no “Velho”, mas também no “recém-descoberto Novo Mundo”.

Nas sociedades tidas como tradicionais indicaremos como tais elementos eram cercados por poderosos tabus, arcanos e precauções, embora não observemos o surgimento de “proibições globais”, tampouco a emergência da patologia da adicção nos contextos históricos, sociais e etnológicos, antes do contato entre os dois Mundos, estando tais substâncias “controladas” efetivamente por ritos, mitos, “regras compulsórias” e sanções sociais formais ou informais, cujo modo de produção, consumo e distribuição de substâncias repousava em sistemas de dádiva e reciprocidade. O aflorar da “secularização” no mundo ocidental e seu modo de produção capitalista - operante por meio de agências norteadas pelo biopoder - serão temáticas discorridas no segundo capítulo, onde acompanharemos o histórico de conceitos como os de “crime”, “desvio”, “estigma” e “patologias” ideologicamente associados ao consumo de psicoativos. Trarei, nesta oportunidade, diálogos e críticas direcionadas às internacionais conversões e políticas “proibicionistas”, que, a meu ver, acentuam os danos referentes ao consumo de psicoativos, estigmatizando historicamente substâncias e usuários classificados como desviantes ou “outsiders” pela sociedade majoritária.

Desviantes que pela desídia moral são rotulados, acima de tudo, como “doentes mentais”; assunto que finaliza nossa primeira parte com o terceiro capítulo relacionado às questões envolvendo saúde, doença, corpo, usuários, abuso, dependência, danos, riscos e prevenções. Tônicas, aliás, estipuladas homogeneamente por agências biomédicas, em especial, pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Primordialmente este capítulo propende-se aos debates críticos sobre certas “categorias patologizantes”, no intento de revelar a rigidez destas categorizações, ao mesmo tempo em que trarei implícita a relevância dos achados sócio antropológicos referentes aos usos e usuários de psicoativos, mas também discorrerei sobre a condição corpórea, ou melhor, a “corporeidade” dos atores acometidos por “patologias morais” no Ocidente, assim como os processos sociais e culturais em torno do adoecer, do tratar e do se curar; encadeamentos manifestos pelo princípio da intersubjetividade.

Durante a segunda parte – formada por quatro capítulos - faremos uma imersão profunda no universo da ayahuasca e da espiritualidade popular brasileira, momentos

nos quais convido os leitores a visitarem, mesmo que rapidamente, alguns seguimentos culturais que fazem uso deste chá. Abrindo esta parte, no quarto capítulo apresentarei algumas questões relativas às perspectivas ameríndias, onde os saberes sobre esta bebida encontram-se historicamente enraizados. Aqui teremos a oportunidade de conhecermos o fenômeno do uso da ayahuasca entre povos indígenas locais, mas também dentre vegetalistas urbanos e rurais, contextos os quais as práticas de cura, magia e feitiçaria coadunam-se ao cristianismo rural em modalidades específicas de consumo do chá e de outras “plantas de poder” 38. Neste capítulo ainda testemunharemos como estes saberes vêm sendo “utilizados” no aflorar de modelos contemporâneos sul americanos e que se permitem ao diálogo entre conhecimentos médicos, psicológicos e espiritualistas voltados ao recobro da saúde, em especial da recuperação da dependência em psicoativos.

No quinto capítulo trarei breves reflexões sobre a noção de “sincretismo religioso” dos cultos espiritualistas populares, posto que ao se tratar de religiões brasileiras da ayahuasca vemos este termo surgir na bibliografia especializada como condição “dada”, sendo, algumas vezes, substituído pela noção de “ecletismo”, sem maiores contextualizações históricas, filosóficas e antropológicas. Aqui julgo essenciais explicações que forneçam reflexões sobre o pensamento social a respeito das práticas religiosas dos “subalternos” no Brasil, incluindo o Xangô, o Candomblé, a Macumba, o Catimbó, a Umbanda, a Pajelança, o Tambor de Mina e os cultos ayahuasqueiros emergentes em contexto amazônico, sendo balizados pela ideologia republicana do “embranquecimento”, que vislumbrava no espiritismo kardecista um norteamento simbólico e referencial. Questões envolvendo os ilusórios ideais de “pureza” e “impureza” de certas tradições também serão abordadas neste capítulo, que, além disso, se pretenderá ao esclarecimento sobre a “criação” dos crimes de “charlatanismo” e “exercício ilegal da medicina”, inseridos no Código Penal brasileiro desde 1890.

Convidamos os leitores a empreenderem reflexões sobre os processos de “desincretização”, “sincretismo afro-amazônico” e “ecletismo”, para então podermos chegar à compreensão de como se deram os processos simbólicos, históricos e institucionais diante do surgimento das religiões brasileiras da ayahuasca, cujas vidas dos fundadores serão revisitadas no sexto capítulo, no qual buscarei partir de suas biografias, trazendo as trajetórias dos mesmos enquanto agentes históricos de cura e

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Os termos “planta de poder”, “planta professora” e “vegetal doutor” são comumente utilizados por usuários da ayahuasca e de outros enteógenos, cujos detalhes constam no quarto capítulo.

transformação social, que, por intermédio do chá e suas doutrinas, tratavam e cuidavam de vários infortúnios e condições desfavoráveis em inóspitas terras amazônicas, durante os ciclos do extrativismo gumífero nacional, que se estendeu por todo o século XX.

Iniciarei este capítulo abordando o papel do uso da ayahuasca dentre os seringueiros, continuando a narrativa com a fundação das matrizes ayahuasqueiras do Santo Daime (Alto Santo e ICEFLU), da Barquinha e da União do Vegetal, cujos históricos serão revelados. Aqui, paralelamente, teremos acesso à parte da lógica destes sistemas simbólicos, assim como as respectivas questões institucionais, que se fizeram pertinentes após o falecimento dos fundadores e posteriores processos de expansionismo, quando algumas destas tradições conquistaram centros urbanos nacionais e estrangeiros. Concomitantemente, neste capítulo, tentarei demonstrar os movimentos de proximidade e ou afastamento mantidos por algumas destas religiões, no concernente aos elementos advindos de matrizes africanas e vegetalistas, tendo em vista a preocupação mantida por alguns centros mais tradicionais – “racionais” e “burocráticos” – operantes em termos ortodoxos e legalistas, buscando afastar suas práticas religiosas das práxis subalternas e curandeirísticas.

Finalizando esta segunda parte histórica e revisional, os leitores se depararão com o sétimo capítulo, onde descreverei os principais modelos de tratamento emergentes no campo religioso da ayahuasca no Brasil, assim como seus transcursos históricos e legais referentes à “relativa legitimidade”, porém sem esquecer-me dos processos que levam ao surgimento das novas unidades e seus consequentes modelos de terapia, que buscam assistir não apenas atores dependentes e abusadores de psicoativos, mas todas as patologias, que assolam os sujeitos em suas condições citadinas e contemporâneas. Neste momento pretenderei discorrer a respeito do histórico da legalidade da ayahuasca em terras brasilis, num cenário bastante conflituoso, onde observamos as irmandades usuárias do chá em disputa de poder, trocas de acusações, desmembramentos, desentendimentos e dissipações; fatores que surgem como cruciais para o sectarismo diante da fundação de novas unidades emergentes no cognominado “campo ayahuasqueiro brasileiro”, onde a identidade religiosa aparenta estar sempre em jogo e negociação, assim como questões alusivas às práticas envolvendo a cura mística.

Devido a retrógados processos legais e institucionais, ainda prementes no país, observamos certos grupos “omitirem publicamente” o exercício do recobro promovido

pela ayahuasca, enquanto outros39- especialmente algumas novas unidades dissidentes - atuam em várias frentes assistencialistas, sendo muitas vezes suas terapias revestidas de caráter ritualístico e simbólico; condições, aliás, inerentes à legalidade da substância.

Continuando com a descrição de nossa metafórica “serpente textual”, encontramos a terceira e última parte da tese, na qual os achados de campo serão destrinchados ao longo de cinco capítulos etnográficos e descritivos. No oitavo capítulo, os leitores terão acesso ao histórico institucional do Flor de Jasmim; uma antiga filial do ICEFLU, hoje liderada por Janaína, que decidiu romper com a instituição oficial, seguindo um “caminho próprio”, ao reinterpretar antigas tradições, estabelecendo novos cultos e visando o diálogo de práticas umbandistas e daimistas, mesmo estando o sistema simbólico “aberto” a outras influências, como o espiritismo kardecista, filosofias orientais e técnicas vegetalistas destinadas ao recobro da saúde, especialmente, da população local, vista enquanto desassistida e bastante necessitada. Veremos a importância de certos personagens no histórico deste Centro, ao mesmo tempo em que pretenderei demonstrar o perfil socioeconômico dos frequentadores do Terreiro, cujo cotidiano é absorto de conflitos e turbulências intrínsecos e extrínsecos.

Durante o nono capítulo, eu explanarei algumas concepções locais sobre magia, feitiçaria e contra magia, tendo como base empírica os dados elencados em campo e a literatura especializada referente ao recente fenômeno da Umbandaime, uma vez que, no Terreiro verificamos conjuntamente o aflorar de êxtases de excorporação (tidos como “Mirações”) e incorporação (vistos como “Aparelhamentos”). Eventos performáticos, que possuem forte representação para o saber local, que busca hierarquizar entidades, coisas e sujeitos, tendo em vista os comportamentos dos mesmos na condução de suas vidas, dentro e fora do Terreiro. Verificaremos a lógica do conceito de “rede aborígene”, que é visitada diante do consumo do Daime, momento no qual os sujeitos acessam o “plano espiritual”, permitindo-se ao “recebimento” de entidades “do

bem”, enquanto as “do mal” são exorcizadas dos Aparelhos, caso se manifestem.

Quando “baixam” as “entidades do bem” as mesmas são apreciadas em suas mensagens, aparições, conselhos e passes destinados àqueles que mais precisam destas “dádivas celestiais”. Na construção e posterior mapeamento das ações dos sujeitos que acessam o plano da imagética rede aborígene, os “bemcumbeiros” conseguem proteger a si e aos outros dos ataques místicos dos “malcumbeiros”, que continuamente 39

Embora verifiquemos o exercício pleno das práticas de cura nos sistemas doutrinários daimistas do Alto Santo e do ICEFLU, além da Linha da Barquinha.

emitiriam “setas malignas” contra o povo deste Terreiro, protegido por lideranças e colaboradores inseridos no mundo animista de uma peculiar “magia ayahuasqueira”.

Os cerimoniais ritualísticos comuns ao CAFJ serão demonstrados no décimo capítulo. Vistos pelo prisma da performance, da corporeidade e da pedagogia religiosa buscarei descrever: os Trabalhos do Fogo, ritos direcionados ao recobro de vivos e mortos e que ocorrem quinzenalmente no Terreiro, onde os preceitos simbólicos da Umbanda e do Santo Daime, até certo ponto, se coadunam; os Ritos de Feitio, sempre destinados aos santos e Orixás louvados pela Casa, entre eles, Iemanjá, Ogum, São Miguel e Iansã, onde o chá obtido – considerado “ouro do chá” - é fornecido às entidades, de modo que os tradicionais “sacrifícios de sangue” são, aqui, substituídos pela “libação vegetal”, destinada às entidades em seus respectivos dias comemorativos. Por fim, o décimo capítulo termina por descrever a “Missa de Finados”, ritual fúnebre, que ocorre durante todas as primeiras segundas feiras de cada mês. Este rito é visto localmente pela ótica da assistência e da “caridade extrema” aos desencarnados. Paralelo à descrição dos cerimoniais, busquei trazer a experiência dos atores com ayahuasca em cada um destes ritos; estratégia que acredito ter enriquecido ainda mais a compreensão da lógica destes encontros, que têm em comum a consagração do Daime, imersa num poderoso sistema de dádivas compactuado por humanos e não humanos.

O décimo primeiro capítulo desta última parte é dedicado à descrição e análise do modelo terapêutico compactuado localmente e que se pretende assistir as mais variadas formas de patologias e sofrimentos, estando Janaína em contínua comunicação com os seres astrais, tidos como “verdadeiros doutores”, que – por meio de Mirações, mensagens ou Aparelhamentos - a auxiliam no fabrico artesanal de remédios, utilizando-se de plantas encontradas na própria mata, conquanto todas as medicações manufaturadas artesanalmente levem o Daime (ou as “plantas mestras” que o compõem) em sua composição. Refletiremos sobre os conceitos locais de saúde, doença, corpo, espírito, cura, abuso e dependência em psicoativos.

Verificamos claramente o Terreiro funcionando 24 horas por dia a receber desditosos de múltiplas localidades, estando grande parte dos assistidos situados na cidade de Japaratinga e seus arredores. Veremos também como os “chumbrosos” (dependentes em psicoativos) recebem atendimento no Terreiro, descrevendo os processos de alguns com o Daime, quando os mesmos aceitaram participar da “terapia

Por ter demonstrado na prática como o modelo funciona para casos gerais de doenças, tomei a liberdade de encerrar esta terceira parte com o décimo segundo capítulo, no qual busquei remeter os leitores diretamente aos casos e recorrências encontrados nas trajetórias biográficas dos chumbrosos, que encontraram assistência no Terreiro e que, consequentemente, trazem consigo históricos semelhantes, quando o assunto gira em torno dos pretéritos e atuais problemas com psicoativos. Neste instante nos debruçaremos respectivamente sobre quatro casos atendidos pelo CAFJ considerados como “exitosos” e mais três outros casos tidos como “não exitosos”. Analisarei cada caso em particular e no conjunto, para o entendimento de algumas questões envolvendo eficácia e frustração do modelo, diante de suas possíveis falibilidades. Verificaremos, por último, a relevância das redes sociais construídas em torno daqueles em tratamento e que - assim como os últimos – protagonizam papeis ativos na recuperação e reinserção social dos que são considerados curados no Terreiro.

Na “cauda da serpente” os leitores se depararão com as “considerações parciais”, onde demonstrarei outras possibilidades de estudo destas práticas ainda desmerecidas por serem desconhecidas empírica e academicamente, conquanto permaneçam operantes nos interstícios de nossas estruturas sociais a historicamente socorrer desditosos não contemplados pelos sistemas públicos de saúde, que ainda destinam estas práticas à lógica da irracionalidade, cujo raciocínio preguiçoso aufere unicamente suas eficácias ou ineficácias às propriedades químicas e biológicas da substância.

Preconceito tal, que faz com que certas terapias sejam marginalizadas e não “aproveitadas” diante do atendimento estatal àqueles que realmente padecem com uma doença “criada” por sistemas sociais, mas nem por isso deixada de ser sentida na pele,