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ABERTURA DA SEGUNDA PARTE As substâncias psicoativas e as religiões

5. As origens do sincretismo brasileiro

5.3. O relativismo intelectual e os processos de desincretização

5.3.1. O sincretismo “afro-amazônico” Entre Pajelanças, Tambores e Encantados

O ingresso e os processos de sincretismo pelos quais passaram os cultos de matrizes africanas nos Estados da Região Norte brasileira vêm sendo investigados por Furuya (1993; 1994) e Monteiro da Silva (2002). Nas análises de Furuya (1993; 1994), detectamos que os elementos da religiosidade popular negra teriam na Região Norte passado por processos distintos de sincretismo daqueles conhecidos por todo o país. Monteiro da Silva (2002) – seguindo Moreira Neto (1988) e Furuya (1993; 1994) – indicou dois momentos históricos cruciais à interpenetração dos cultos africanos neste território. O primeiro momento teria ocorrido em meados do século XVIII até a primeira metade do XIX. Neste ínterim, os autores identificaram uma tendência de “destribalização indígena” geradora de encadeamentos culturais a engendrar uma “cultura popular amazônica homogênea”, servindo de base para o afloramento das religiões populares nesta Região específica. Uma “massa homogênea” composta por sujeitos a participar de saberes e práticas envoltos, ao mesmo tempo, dos elementos da Pajelança indígena e cabocla, além das crenças nos santos católicos.

O segundo momento, ou melhor, “horizonte histórico” amazonense identificado pelos autores acima citados - como o mais importante perante o sincretismo afro- amazônico - surgiu com o “ciclo da borracha” iniciado em 1845, trazendo consigo um “exército” de nordestinos seringueiros dispostos a trabalhar como mão de obra frente ao extrativismo gumífero. Esta histórica fase replena de impactantes fluxos e contatos interculturais teria sido bastante relevante para a abertura dos horizontes referentes à propagação dos “cultos afro-amazônicos”.

Parte desta massa de trabalhadores vinha do Estado do Maranhão, tornando-se expressiva a introdução na Amazônia de elementos de matrizes africanas cultuados por tradições maranhenses, precipuamente, o Tambor de Mina e a Pajelança. É conveniente ressair, que tudo isto aconteceu no mesmo período alusivo ao expansionismo do espiritismo popular, a dispersar-se pelo Brasil inspirado no movimento sulista e embranquecedor da Umbanda. Em contrapartida, no território amazonense, verificamos tradições africanas se fortalecendo, inspirando-se na emergência de religiosidades procedentes dos processos de migração.

Labate e Pacheco (2002, pp.312-316) ratificam ser o Tambor de Mina maranhense um culto de possessão inspirado em matrizes africanas advindas de várias regiões do país e suas tradições populares, incluindo desde o Xangô, até o Candomblé e

a Macumba. Institucionalmente falando, o Tambor de Mina foi subdividido – tal qual o Xangô pernambucano – em Nações diferenciadas em torno de processos estéticos, mitológicos e rituais remetidos a determinados grupos étnicos, como, por exemplo: “jeje, nagô, cambinda, cachêu e fulupa” (LABATE; PACHECO, 2002, p.312).

Com o passar dos tempos, apenas duas destas Nações - a Mina jeje e a Mina

nagô - auferiram legitimidade, perpetuando-se enquanto identidades étnicas e religiosas

explicitamente demarcadas. Os autores asseveram serem as Minas nagô e a jeje as mais antigas do Estado do Maranhão e atreladas aos Terreiros “puros”, que foram inaugurados ao longo do século XIX. O sincretismo do Tambor de Mina permitiu-se, no passado e no presente, à integração de vários elementos oriundos de folguedos, crenças e religiosidades maranhenses, contudo na atualidade estejam ainda a amalgamar e reconfigurar elementos nagôs, jejes, umbandistas, kardecistas, além da adequação aos sistemas simbólicos advindos da Pajelança, formando um universo denominado por “Mina de Caboclo” (NICOLAU PARÉS, 1997; LABATE; PACHECO, 2002).

A Pajelança maranhense, ou a “Cura da Linha da pena e do maracá”, representa uma dentre várias expressões da religiosidade cabocla local, incluindo em suas práticas componentes propiciados pelo catolicismo rural, pelas culturas indígenas nordestinas, pelo Tambor de Mina e demais tipos de “medicinas populares”. Sua característica seria o direcionamento que é dado ao tratamento tradicional de patologias e demais infortúnios, a partir de uma espécie de transe de possessão capaz de “fazer passar” muitas entidades ao longo dos rituais, quase sempre característicos pelo contínuo uso do tabaco, orações, benzeduras, plantas medicinais e essências para defumação.

Características tais, que fizeram Labate e Pacheco (2002) relacionarem a Pajelança maranhense às já conhecidas Pajelanças não indígenas existentes pelo Brasil, especialmente, nas regiões Norte e Nordeste, como parece ser o caso do Catimbó Juremeiro dos sertões, do Toré das tribos indígenas interioranas nordestinas e da própria Pajelança cabocla emergente em outras áreas do território amazonense, ricamente analisadas por Galvão (1975) e Maués (1990). Curiosamente, no interior maranhense, Labate e Pacheco (2002) – com o auxílio de Ferretti (2002) – identificaram, que as menções referentes à Pajelança maranhense são bem mais antigas do que os próprios ritos envoltos do Tambor de Mina, existindo referências historiográficas da Pajelança datadas do início do século XIX, onde são referenciados os Trabalhos de cura de alguns Pajés norteados pela Linha da pena e do maracá.

Pajelança e Tambor de Mina no Maranhão sempre mantiveram íntimas relações, até certo ponto harmônicas e complementares, uma vez que, a Pajelança representaria um cerimonial público e festivo encenado periodicamente por certas Casas de Tambor de Mina maranhenses. Nestes recintos sagrados, a Pajelança costumava ser aplicada no intuito de fornecer obrigações aos santos e entidades da Linha de cura, que necessitam obrigatoriamente da “passagem” (incorporação mediúnica) para desenvolverem o exercício da caridade através da cura de enfermos e sofredores.

Ao mesmo tempo em que convergem a Pajelança maranhense e o Tambor de Mina divergem, no tocante às performances, vestuários, músicas, canções e espaços físicos onde se manifestam. Contudo, tanto a Pajelança, quanto o Tambor de Mina são enquadrados na categoria “encantaria maranhense”; conceito cunhado por Prandi e Souza (2001) ao observarem a relevância dos Encantados para estas tradições. Em 1900 surgiu na cidade de Manaus o primeiro grupo de matriz africana liderado por uma mãe- de-santo maranhense iniciada numa Casa do Tambor de Mina nagô em São Luiz (NUNES PEREIRA, 1979, pp.61-66; GABRIEL 1985, pp.146-149; PENA PINHEIRO, 1986, pp.142-143; MONTEIRO DA SILVA, 2002, pp.416-419).

Os autores demonstram que na cidade de Porto Velho, por volta de 1917, foi inaugurada a primeira “Casa de Umbanda” dirigida por outra mãe-de-santo maranhense denominada “Chica Macaxeira”. Todavia este pioneiro Centro rondoniano não seria norteado pelos pressupostos da Umbanda sulista fundada nas décadas de 1920-1930, estando mais voltado à tradição do Tambor de Mina maranhense, aliado ao consumo ritualístico da bebida ayahuasca. Em Belém, cultos africanos foram incorporados por intermédio dos migrantes maranhenses no início do século XX (COSTA EDUARDO, 1948; LEACOCK; LEACOCK, 1972; MONTEIRO DA SILVA, 2002).

Goulart (2002, pp.298-299) - norteada pelos escritos de Galvão (1975, pp.144- 145) – atesta a coexistência na Amazônia, até meados dos anos de 1940, de dois sistemas distintos à religiosidade cabocla: as Pajelanças (indígenas e caboclas) e o catolicismo rural. A tensão entre estes sistemas de crença teria tido início a partir desta época, quando os agentes de cura passaram a ser perseguidos pela polícia local. A autora argumenta que o assédio jurídico e moral efetivado contra os curandeiros gerou a interiorização dos elementos simbólicos do catolicismo às práticas curandeirísticas. Com o passar dos tempos, as investidas tiveram por intento desacreditar as crenças das Pajelanças em prol da fé católica atrelada ao exercício “legal” da medicina.

Voltando-nos ao raciocínio de Furuya (1994, p.14) e de Monteiro da Silva (2002, pp.416-419), notamos processos diferenciados e peculiares envoltos da “umbandização amazônica” e da “amazonização da umbanda”. Aqui, a Umbanda teria passado por duas sucessões históricas; uma antes dos anos 1950 e outra ao longo dos anos 1960, quando a Umbanda sulista se expandiu pelo vasto território nacional. Lembrando que paralelo ao alastramento dos cultos umbandistas advindos do Sul do país, a Umbanda em terras amazonenses já vinha adquirindo contornos e conotações culturais próprios, completamente diferenciados dos elementos promulgados pela “Umbanda branca”. Os dois autores demonstram historiograficamente (até a década de 1940) a emergência de múltiplas manifestações religiosas atreladas à matriz jeje-nagô, embora estruturalmente dessemelhantes dos Xangôs e dos Candomblés nordestinos.

Mesmo assumindo designações distintas, Furuya (1994) e Monteiro da Silva (2002) alentam para o fato de que cada Centro afro-amazônico possuía componentes em comum, pois o sincretismo local deu uma “coloração regional” às Casas espiritualistas da Região Norte, na qual os agrupamentos religiosos propendiam-se à crença num plano sincrético espiritual. Existiria nestes cultos uma forte exaltação, no que toca ao envolvimento dos atores para com as entidades cultuadas e consultadas nos rituais. Fora isso, até a década de 1940 os agrupamentos estavam subordinados a um líder xamânico, pois sempre foram justificados em termos de ritos de cura influenciados por elementos ameríndios. A “amazonização da umbanda”, segundo os autores, deu-se dentre as décadas 1950 e 1960, tendo em vista a fundação de novos grupos inspirados na Umbanda sulista, que passaram por reinterpretações e adaptações locais, oras aproximando-se das matrizes nagôs, oras afastando-se, gerando fluxos e contínuas mudanças nas visões de mundo do “povo de santo amazonense”.