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ABERTURA DA PRIMEIRA PARTE

2. Psicoativos e contatos culturais nas modernas cidades industriais

3.1. Categorias patologizantes e rotulações morais Tornando o desvio uma doença

Seguindo a história dos “vícios” em substâncias psicoativas, Carneiro (2002) cita Margaret Mead, ao comparar o “vício” com a virtude, mesmo porque, para esta antropóloga cultural e interacionista, o sujeito virtuoso, cristão por natureza, sentiria primeiramente a dor para então, no futuro, alçar o êxtase ou o prazer. Em contrapartida, o indivíduo “viciado” atingiria o prazer seguido do suplício e da dor. Carneiro (2002) demonstra o poder da medicina ocidental na medida em que aponta os erros e as posteriores falibilidades técnicas de muitos conceitos e categorias médicas, incluindo as questões relativas à dependência; a concepção mais controversa dos últimos séculos.

Ele alude para a história de certos conceitos “criados” pela medicina, que teriam essência política, sempre associada às questões de poder e interesses pessoais ou institucionais, que se estenderiam dentre todas as classes, camadas e grupos sociais. Sendo a história da medicina uma história de cunho político, Carneiro (2002) debruça- se sobre o significado atual do termo “dependência em drogas”; utilizado tecnicamente por ter sido padronizado pela Organização Mundial de Saúde no ano de 1993.

Antes deste conceito surgiram outras denominações para o “uso patológico” de psicoativos e que foram historicamente construídas, dentre as quais “adicção”, “hábito”, “transtornos da vontade” e até mesmo “insanidade moral”. Mota (2008) nos apresenta outros termos mais atuais, entre eles: “toxicomania”, “abuso de drogas”, “drogadição”, “farmacodependência” e “uso indevido de drogas”. Devido à complexidade do termo atual (dependência), que sempre leva às contradições acompanhadas por inúmeras dúvidas e confusões científicas perante sua aplicabilidade, coube aos analistas algumas perguntas cruciais, dentre as quais: o que é a dependência em psicoativos? Quando e como um simples hábito, vontade ou desejo transformou-se em “necessidade viciosa”?

O conceito ocidental de dependência ganhou consistência social já no início do século XIX. Antes disso – como vimos no primeiro capítulo – o fenômeno não era visto

pelo prisma patológico, estando o sujeito apenas a mercê de julgamentos morais, que apontavam para sua falta de caráter e controle sob as substâncias.

A embriaguez não suprimia a vontade, aliás, não se distinguia entre desejo e vontade de beber, não havia um vocabulário que expressasse a existência de uma compulsão, de uma escravidão à bebida ou alguma outra droga (...) A doença do vício será uma construção do século XIX. A concepção da embriaguez como doença pode ser datada de 1804, quando Thomas Trotter publicou o Essay

Medical Philosophical and Chemical on Drunkenness, que seria considerado um

marco na “descoberta” (ou na criação?) de uma nova entidade nosográfica na medicina. Para Trotter, o hábito da embriaguez seria “uma doença da mente” (CARNEIRO, 2002, pp.02-03).

Csordas (2008, p.166) observa que a criação dos transtornos psíquicos durante os séculos XIX e XX teve ampla significação moral. Nestes séculos observamos a amplitude dos movimentos e esforços estatais para disciplinar, vigiando, punindo e corrigindo corpos e mentes, inclusive – também no que tange à embriaguez e ao uso de psicoativos – com a aplicabilidade técnica e social de práticas eugênicas de caráter higienista e racista, cujos alvos primordiais seriam sujeitos desviantes, dentre os quais “bêbados” e “viciados” (ORTIZ, 1985; SCHWARCZ, 1993; CARNEIRO, 2002).

Carneiro (2002) apresenta este período como a época da prevalência das análises estatísticas, dos modelos epidemiológicos comprometidos com o higienismo e a profilaxia moral e social. Uma época em que se tentou mundialmente evitar a “degeneração da raça” (branca), procurando-se extinguir àqueles que comprometiam o futuro e a identidade das nações, entre os quais “mestiços”, “bêbados”, “deficientes”, “viciados em drogas”, “pervertidos” e portadores de “patologias contagiosas”. Os disformes passaram a ser vigiados e seus corpos controlados, estando os Estados preocupados com seus possíveis descendentes, que herdariam suas “características

grotescas”, além dos “hábitos imorais”, que também seriam transmitidos geneticamente. Assim, todos os desviantes passaram a sofrer intervenções institucionais, por meio da clausura e da castração, no intuito de coibir suas procriações.

Foi no século XX, que o conceito de “vício” tornou-se mundialmente consensual, no momento em que o “modelo orgânico” - utilizado para explicar esta doença - foi superado pelo “modelo psicológico”. De acordo com Carneiro (2002), o autor pioneiro deste pensamento teria sido Willian Collins, que por volta do ano de 1919 abandonou as explicações organicistas dos “vícios”, passando a defender uma noção mais coerente e visionária, para a época, de “doença da vontade”, identificando-a

futuramente pelo termo “adicção”50. Esta concepção vislumbrava o fato de que apesar do alcoolismo provocar patologias organicamente visíveis, ele em si não representaria uma doença orgânica, mas uma “patologia aditiva”, pois o hábito de “beber em excesso” poderia trazer consequências à saúde, uma vez que era capaz de adicionar e acumular no corpo do usuário vários problemas orgânicos, psíquicos e sociais.

Carneiro (2002) analisa o que seria uma das maiores contradições do século XX – e também do XXI – onde observamos o aumento na produção e no consumo de psicoativos, ao mesmo tempo em que concepções de “vício”, tristeza, fraqueza e doença impregnam o imaginário destas épocas, nas quais vivenciamos “uma passagem para o

paraíso através da felicidade em pílulas e, ao mesmo tempo, de um paradigma do vício, da escravização extrema a uma mercadoria” (CARNEIRO, 2002, p.06).

Mota (2008) demonstra que a nomenclatura “dependência” tem sua origem histórica ainda no século XVIII, todavia, contrariamente a Carneiro (2002), ele afirme que o termo surgiu primeiramente na obra de Benjamim Rush publicada em 1819 e intitulada “An Inquiry Into The Effects of Ardent Spirits”, tratado que teria servido de base para o autor Magnus Huss, que já em 1849 passou a usar pioneiramente o termo alcoolismo para descrever os estados de intoxicações crônicas promovidos pelo uso excessivo, que poderia levar a prejuízos individuais e sociais. Mota (2008) afirma que o termo “adicção” teria surgido – como sugere Carneiro (2002) – no século XX, por volta da década de 1910, sendo considerado como adicto o paciente “escravo de seu hábito”.

Carneiro (2002) e Mota (2008) concordam com a hipótese de que a dependência vista como doença surge como produto histórico, sempre inspirado por contextos e processos políticos. Nomear a dependência como doença amplia a legitimidade do poder médico; o que tende a retroalimentar uma concepção higienista e medicalizada dos fenômenos. Ao longo do século XX a conceituação do alcoolismo como doença foi resultante da militância de algumas instituições americanas, entre elas: “Alcoólicos

Anônimos, Yale Research Center of Alcohol Studies, National Council on Alcoholism e National Institute of Alcohol Abuse and Alcoholism” (MOTA, 2008, p.140). Talvez, se

não houvesse este engajamento político, o alcoolismo nunca tivesse sido categorizado enquanto uma “doença mental”. A partir desta concepção, o alcoolista passa a ser visto como uma “vítima do alcoolismo”, não sendo – em teoria – mais julgado moral ou

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De acordo com Carneiro (2002), a palavra adicção (addiction) deriva de uma expressão de origem latina, que, na Roma Antiga, era utilizada para denominar a condição de um sujeito livre e que teria sido escravizado, tendo em vista o não pagamento de suas dívidas.

criminalmente, tendo em vista o infortúnio tratar-se de uma “enfermidade compulsiva”, “progressiva” e “incurável”, desenvolvida ao longo dos anos de uso e abuso da substância, cujo único tratamento se pretende à promoção exclusiva da “abstemia”.

Em 1948 a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu o alcoolismo na lista da Classificação Internacional de Doenças em sua oitava revisão (CID-8), contudo foi apenas em 1956, que a Associação Médica Americana considerou o fenômeno uma patologia. Em 1960, após a publicação da obra “The disease concept of alcoholism” de autoria de Jelliek foi que a “doença do alcoolismo” tornou-se globalmente padronizada, sendo seu principal sintoma caracterizado pelo uso disfuncional, ou seja, descontrolado de determinados sujeitos perante o consumo desta substância (MOTA, 2008, p.141).

Uma doença imersa em diversas matrizes comportamentais, sociais e sintomáticas, que acomete determinados sujeitos por uma espécie de “predisposição orgânica”, que os incapacitaria a praticar um “consumo seguro” de derivados etílicos. O uso tende a aumentar com o tempo, pois o usuário em “estado patológico” passará a consumir quantidades cada vez maiores no intuito de “saciar sua vontade”. O final deste processo, quase sempre culminaria com a total perda do controle do sujeito frente ao uso abusivo do álcool, que passa a ser considerado enquanto “distúrbio clínico”.

A décima revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da OMS – também a partir de pressões políticas advindas dos movimentos sociais e ideológicos formados por instituições, ex-usuários de psicoativos e profissionais da área de saúde, psicologia e assistência social – incluiu no ano de 1989 a dependência em outros psicoativos, além do álcool, na “Lista Internacional de Causas de Morte”, estipulada, inicialmente por Bertillon em 1893 e que vem sendo atualizada conforme as necessidades históricas emergentes ao longo de várias Assembléias Mundiais de Saúde (OMS CID-10, 1996; NUBILA, 2007) 51. As atualizações e categorizações do CID-10 entraram em vigor apenas no ano de 1993, após a 43ª Assembléia Mundial de Saúde.

Agora categorizada mundialmente pelo CID-10 a dependência em psicoativos, no geral, passou a apresentar ao todo sete critérios básicos para identificação dos casos de “compulsão” e “uso abusivo” de substâncias, de modo que, a partir dos critérios da OMS, o sujeito que apresente apenas três, dentre os sete tópicos abaixo descritos pode ser diagnosticado como um “doente aditivo”:

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A OMS atualmente dispõe de duas classificações ao descrever os estados de saúde: a CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde) e a CIF (Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde). Maiores detalhes consultar a tese de Nubila (2007).

(1) Manifestar desejo compulsivo para utilizar o psicoativo;

(2) Não controlar o uso, assim como o comportamento antes, durante e após o consumo; (3) Demonstrar abstinência ao suspender o consumo e sentir alívio após retornar o uso; (4) Apresentar tolerância orgânica ao psicoativo, ingerindo doses maiores da substância; (5) Desenvolver padrões de recaídas frente à tentativa de alcance da abstinência;

(6) Empregar tempo demasiado ao adquirir, consumir ou recuperar-se de seus efeitos; (7) Persistência no uso, apesar das consequências prejudiciais adquiridas devido ao “hábito patológico” (OMS CID-10, 1996).

Consequentemente, três modelos técnicos de prevenção atuantes em distintas frentes de ação também foram estipulados e denominados pela OMS (NEWCOMB et

al., 1986; NOTO; GALDURÓS, 1999; GIGLIOTTI; BESSA, 2004; SCHENKER;

MINAYO, 2005). Nestes termos, encontramos inicialmente a “prevenção primária” ou “universal”, cujo público alvo passa a ser os sujeitos que nunca utilizaram substâncias psicoativas ou delas fizeram “uso experimental”. Este modelo primário preventivo costuma atuar a partir de mensagens fomentadas por programas e campanhas midiáticas e sociais, tentando prevenir ou retardar o eventual “uso patológico” de substâncias52.

Sequencialmente nos deparamos também com a “prevenção seletiva” ou “secundária”, agora destinada a grupos específicos de sujeitos que já consomem psicoativos de forma “lúdica” ou “compulsiva”, podendo ou não estarem imersos em “situações de risco” devido ao uso de substâncias. Já o modelo de “prevenção dirigida” ou “terciária” visa os atores imersos em condições de uso abusivo, manifestando ou não o estágio da “dependência”. Aqui nos deparamos com programas que tentam diminuir o uso das substâncias, assim como seus “danos” na tentativa de resgatar a “qualidade de vida” destes usuários para promover sua “reinserção social”.

Os modelos de prevenção encontram nos sujeitos e nos meios sociais, onde vivem os atores, inúmeros fatores de risco e ou proteção53capazes de influir diretamente nas suas condições de vida, incluindo a incidência de consumo ou abstemia de certas

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Os modelos de prevenção primária vêm sendo criticados por não conseguirem atingir suas metas principais, tendo em vista o modelo pedagógico escolhido e tido criticamente como inadequado por, muitas vezes, utilizar- se de procedimentos inspirados na “pedagogia do terror”, procurando demonstrar o lado extremo do uso abusivo de psicoativos, apelando às tragédias sociais e pessoais, que possam vir a acometer os sujeitos, caso um dia cheguem ao estágio da dependência. Por muito tempo este modelo de prevenção teve como base norteadora os ideais da “guerra às drogas”, encarando esta temática como algo socialmente obscuro e marginal. Dentre tais procedimentos, determinadas substâncias e usuários são ainda mais demonizados e caricaturados, assim como divulgadas suas imagens deturpadas pela opinião pública. Tais procedimentos pedagógicos inadequados, além de tudo, tendem a aguçar a curiosidade e estimular, mesmo que involuntariamente, o abuso e a dependência em psicoativos. Outros pormenores estão disponíveis na dissertação de Petuco (2011).

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substâncias psicoativas. As medidas de prevenção buscam, em teoria, atuar diretamente na diminuição de incidências de fatores de risco numa determinada população, uma vez que pretendem enaltecer os fatores locais de proteção. Como fatores de proteção podemos identificar rapidamente a família, a comunidade, a escola, a religião, além das práticas de esportes, cultura e lazer.

Já os fatores de risco são tidos como circunstâncias individuais e sociais capazes de ampliar a possibilidade dos sujeitos consumirem psicoativos de forma abusiva e dependente, levando-os, muitas vezes, aos estágios da “vulnerabilidade social” 54. Dentre inúmeros fatores de risco podemos destacar o uso, abusivo ou não, de psicoativos por parte dos pais, familiares e amigos; os variados tipos de violência física, simbólica, institucional, doméstica, sexual e social; condições insalubres de moradia e existência; falta de oportunidades profissionais; baixo índice de escolaridade, dentre tantas outras mazelas comuns aos modernos processos urbano-industriais.

Foi a partir da década de 1980, que o termo dependência estendeu-se para além da temática do uso abusivo de psicoativos, no intuito de definir outros comportamentos tidos como desencadeadores de processos aditivos ou compulsivos, dentre os quais o sexo, os jogos de azar, compras, trabalho, exercícios físicos, comidas em excesso, a

internet entre tantas outras modalidades possíveis em tempos contemporâneos. Apesar

da amplitude do conceito, a essência de todas as questões envolvendo a adicção repousaria na incapacidade encontrada pelo sujeito de controlar sua vida em decorrência da relação turbulenta mantida com tais processos repetitivos.

É neste ponto, que os termos dependência e abuso precisam ser compreendidos; pelo prisma da relação disfuncional mantida entre o(s) usuário(s) e sua(s) substância(s) de preferência. Outros autores buscam definir sociologicamente a dependência, enquanto uma dentre várias modalidades de uso de psicoativos. Um padrão considerado patológico de utilização de substâncias, cuja busca pelo prazer quase sempre vem acompanhada da perda e do sofrimento por parte dos usuários:

(...) enquanto o uso controlado de tais substâncias proporciona relaxamento, prazer e cura, nos casos de dependência o indivíduo é possuído pela droga, sucumbindo a um ritual obsessivo que finda por conduzi-lo a uma condição de sofrimento que a próxima dose é incapaz de aliviar. No uso controlado, a dor é seguida de contentamento, enquanto no vício, o tênue prazer é seguido de dor (MOTA, 2008, p.222).

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O conceito de vulnerabilidade indica o fato de alguém ser mais sujeito a alguma coisa, podendo estar relacionado a determinadas circunstâncias e condições que podem ser revertidas e diminuídas pelos programas de prevenção ao levar em consideração tanto os aspectos sociais, institucionais e familiares, quanto os encadeamentos individuais. Outros detalhes sobre risco e vulnerabilidade consultar Ayres et al. (2009).

Helman (1994, p.182), ao lidar com o que ele denominou de “dependência psicológica em drogas” - um fenômeno caracterizado por uma forte compulsão sentida pelo “paciente” dos efeitos químicos e psicológicos fornecidos pelo consumo de psicoativos - refletiu que o adicto poderia usar “cronicamente” sua(s) substância(s) preferencial (is) por vários motivos, seja na tentativa de mudança repentina de humor (causando estados de euforia ou diminuição de tensões), mas também pode consumi-la para livrar-se dos sintomas advindos da síndrome de abstinência55.

Helman (1994) conseguiu avançar nas análises quando sinalizou para o fato de que a personalidade dos sujeitos e os fatores socioculturais, nos quais estão imersos são tão importantes quanto a farmacologia das substâncias consumidas. Por outro lado, o significado da substância para o usuário seria um – se não o mais importante – elemento inerente ao processo da dependência. Mediante as premissas de Helman (1994), somos atinados a vislumbrar o movimento dos dependentes, que tendem a formar uma espécie de “subcultura”, oriunda de uma cultura maior, representada pela “cultura do uso de drogas”. Neste meio cultural determinadas regras pontuais e funcionais determinam - e chegam até mesmo a controlar e mediar - o consumo, definindo a participação de sujeitos, lugares e ações desenvolvidas antes, durante e após o uso de psicoativos, sejam os mesmos considerados “leves” ou “pesados” (ZINBERG, 1984; HELMAN, 1994).

“A subcultura dos adictos” surge como uma “subcultura marginal”, compartilhando uma visão de mundo própria e particular. Longe de também representarem focos de reciprocidade, proteção e saberes comuns a todos os processos intersubjetivos, a “subcultura adicta” é vista por Helman (1994) pelo viés da disseminação de doenças relativas ao “uso indevido” de psicoativos. Fora isso, ele ainda acredita na remota e utópica possibilidade de se conseguir interromper o fenômeno da “adicção” diante da imediata “dissolução” de um grupo de usuários.

Curiosamente, ele cita - quase que se contradizendo - o exemplo de um grupo de heroinômanos, que passaram por um denso período de escassez da substância, substituindo-a pelo consumo da metanfetamina. Contudo, estes usuários continuaram comportando-se tal qual estivessem utilizando sua substância de preferência; a heroína. Mesmo ambos os psicoativos sendo compostos por elementos químicos distintos, gerando efeitos metabólicos e psicológicos diferentes em seus usuários, àquele grupo de

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Uma gama de reações orgânicas e psicológicas sentida pelo usuário dependente na ausência do(s) seu(s) psicoativo(s) de preferência. Tais crises parecem cessar apenas após o consumo da substância. Outros detalhes podem ser acessados nos trabalhos de Newcomb, et al. (1986), Noto; Galdurós (1999); Gigliotti; Bessa (2004), Schenker; Minayo (2005), dentre muitos outros.

heroinômanos que “substituíram” o psicoativo preferencial por metanfetamina mantiveram a “subcultura heroinômana”, agindo sob o metabolismo da metanfetamina. Helman (1994) atribuiu este fenômeno a uma espécie de “magia poderosa” imanente à subcultura dos adictos, porém bastante comum em outras subculturas afins.

As reflexões de Helman (1994) são construtivas, pois reconhecem na dependência um fenômeno não apenas químico, mas físico (biológico), psíquico e sociocultural. Ele apenas nos pareceu ter-se esquecido de desenvolver melhor a ideia relativa ao fato de que mesmo que a substância falte, a “magia da subcultura” tem o poder de alterar a propriedade das moléculas substituintes em consonância com o social, que direciona regras, efeitos e comportamentos (ZINBERG, 1984). Caso falte o grupo, a subcultura tende a se formar logo em seguida, com ou sem o psicoativo de preferência. Caso saia do grupo, o sujeito leva consigo símbolos, sentimentos e idiossincrasias compartilhadas intersubjetivamente, mediante uma contínua construção identitária premente nas subculturas dos dependentes (LIRA; ESCOBAR, 2011).

Pelo que sabemos, nos estágios da dependência, as sensações iniciais, devido à resistência adquirida pelo organismo ao psicoativo, recusam-se a repetir, tornando-se cada vez mais escassas ou inexistentes, independente da quantidade e da qualidade das doses consumidas. O que ficou, portanto, foi o sentimento nostálgico dos tempos de outrora, onde o humor era modificado de modo extasiante, capaz de até mesmo fazer “flutuar a alma”. Ao sujeito em condição de dependência resta uma posição liminar da “alma em tumulto” (ESPINHEIRA, 2009). Condição, inclusive, norteada por uma necessidade, decorrente da compulsão, de buscar aquilo que não mais se sente.

A persistência, os significados e as motivações do uso nesta fase ambígua são compreendidos frente à busca de um escape e, até mesmo, alívio para uma vida vista pelo usuário, como insuportável, pois dela não se é mais capaz de obter prazer sem ser acometido pelo infortúnio do sofrimento. Nesta condição o sujeito vivencia a vida enquanto dilacerada, tendo em vista os sentimentos de culpa e inferioridade por tudo de “ruim” que lhe aconteceu e acontece, incluindo eventos patológicos ou criminosos decorrentes do consumo exagerado e que culminaram em perdas pessoais e sociais.

A rotulação pejorativa do hábito em excesso estipula uma identidade desviante premente, dentre tantas outras possíveis aos atores nos processos sociais. Agora, frente à opinião pública, o sujeito acometido pela dependência não é mais visto como um cidadão comum, ou seja, um pai, uma mãe, um(a) filho(a), profissional, homem ou mulher, mas um(a) viciado(a), alcoólatra, maconheiro(a), cocainômano(a),

heroinômano(a), drogado(a) ou noiado(a) 56. Tais denominações estigmatizantes conduzem o dependente ao estágio marginal por excelência, pois tais sujeitos personificam o temor ocidental, no que tange às possíveis consequências promovidas