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Uma das ferramentas primordiais para captação de dados qualitativos em território ayahuasqueiro utilizada quase que unanimemente por pesquisadores que se propuseram ao estudo deste peculiar fenômeno místico e religioso é a “auto- experimentação” dos autores, que costuma ser propulsora, antes de tudo, do encontro dos mesmos com a fenomênica ontologia do chá, sem contar que o ato de consagrar a bebida nestas unidades representa condição sine qua non à imersão e aceitação dos analistas no mundo dos interlocutores (MACRAE, 1992; MABIT, 2002; LABATE, 2004a; LIRA, 2009a). Esta estratégia também favorece ao etnógrafo poderosos insights, não apenas na condução das pesquisas e posteriores sistematização de dados e escritos, mas também mediante contato direto com certas “realidades não ordinárias” capazes de impactar os sujeitos, “afetando” profundamente o antropólogo em campo e fora dele (FAVRET-SAADA, 2005). Nada obstante, devemos lembrar que tais experiências não podem e nem devem ser encaradas como indícios de conversão do pesquisador, que pode ou não acontecer, a depender de suas predisposições e “necessidades biográficas”.

No meu caso particular, venho consagrando a ayahuasca esporadicamente em algumas novas unidades nordestinas – com objetivos etnográficos - ao longo de quase

uma década de descobertas e novas experimentações. Posso certificar que fui e sou afetado toda vez que entro em contato com a experiência mística, de modo, que consegui registrar uma gama de informações sobre minhas experimentações pessoais, hoje contidas nas contínuas páginas de meus cadernos de campo. Entretanto, pelo menos por enquanto, não me considero um ayahuasqueiro, primeiramente, por não ter me filiado a nenhuma unidade por mim visitada ou pesquisada no decorrer de minha trajetória biográfica e profissional, mesmo fazendo questão de deixar claro às lideranças e adeptos dos Centros pesquisados meus objetivos científicos, que não se coadunavam com os princípios de conversão e filiação. Esta estratégia metodológica de “relativo afastamento” foi ao mesmo tempo construtiva e penosa.

Apesar de tudo, minhas imersões totais ou parciais - nesta e noutras unidades - não deixavam de ser, naturalmente, confundidas com “necessidades de conversão” de um “espírito curioso e rebelde”, que precisava ser “doutrinado”, no intuito de saber quem é o “verdadeiro doutor”. É verdade que estas ambíguas condições, nada confortáveis, de “não convertido”, “novato” ou “adventício” me conduziram a diversas “situações liminares” - como refletidas por Turner (1974) e Van Gennep (2011), no referente aos ritos de passagem – pois nestes espaços o sujeito visto como “incrédulo” precisa crer e para crer ele tem que tomar o Daime. No CAFJ as doses do sacramento a mim servidas – e jamais negadas pelo “Antropófago cabeção” – foram particularmente “fortes”. De início, fui acometido por densas “purgações” 26 e poderosas visões, que deveras vezes remetiam ao meu estilo de vida, incluindo pensamentos, ideias, lembranças, relacionamentos sociais e familiares, atitudes e novas possibilidades profissionais. Posso mencionar que nestas auto-experimentações fui acometido por experiências de clarividência e projeção astral; antes não sentidas em outros grupos.

Muitas vezes – sob o efeito do Daime - eu não conseguia sequer manter-me de pé, quiçá concretizar entrevistas, observações e preenchimentos do caderno de campo. Por horas a fio, as observações foram feitas internamente – deitado isolado em redes mata adentro - a partir de “mergulhos visionários” dentro do meu próprio ego; desestruturado, reestruturado e em contínuo movimento de fragmentação e refragmentação mística, nestes momentos singulares, onde o antropólogo não precisa

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As náuseas, vômitos e diarreias sentidos por alguns atores após o consumo do Daime são denominadas em campo por “purgações”. Detalhes sobre a propriedade purgativa da substância e sua função terapêutica no universo da ayahuasca serão esmiuçados nos capítulos que compõem a segunda e a terceira partes da tese.

crer na magia – ou crer que a magia só existe porque as pessoas nela acreditam - posto que, agora, a magia passa a atuar na corporeidade do próprio antropólogo.

Por alto, o que posso dizer das coisas vivenciadas em minhas experiências com o

Daime- neste campo específico- foi que senti muita luz, paz e tranquilidade durante

todas as experimentações, por mais “viscerais” e “drásticas” que as mesmas pareçam ter sido. Curiosamente a tônica de minhas experiências em muito se assemelhavam a dos interlocutores acessados. Sem medo ou preconceito, acredito ter conseguido adentrar nas múltiplas lógicas deste grupo, sendo bem aceito e acolhido como um “irmão”.

No decorrer das retomadas aos estados ordinários de consciência, em campo, eu consegui gravar depoimentos riquíssimos por meio de entrevistas semiestruturadas e previamente acordadas com os interlocutores. Busquei nestes momentos exercitar o olhar, a escrita e as escutas seletivas. Para a compreensão quantitativa dos sujeitos que frequentam o Centro, estipulei um pequeno Sourvey 27sócio demográfico – disponível em nosso Anexo 03 - aplicado em momentos oportunos, ao longo desta pesquisa, cujos dados obtidos também serviram como base empírica para o entendimento do comportamento de toda a clientela, especialmente, no tocante à busca de tratamento para diversas patologias. Foi possível – com a utilização deste instrumento – detectar o fluxo contingencial referente à participação, ou não, dos atores em outras agências inerentes ao "itinerário terapêutico" sejam as mesmas oficiais ou paramédicas.

Em gabinete, com o auxílio de planilhas estatísticas - inseridas nos softwares

Microsoft Excel e SPSS - eu obtive gráficos ilustrativos referentes ao perfil geral dos

frequentadores do CAFJ e que serão demonstrados no decorrer de nossa tese. As entrevistas foram direcionadas, tanto aos “visitantes”, quanto aos “adeptos”. Decidi – acordado previamente com Janaína - categorizar os sujeitos nestas categorias, tendo em vista o grau de participação dos mesmos nos Trabalhos da Casa, estando os adeptos incluídos entre os que participam do Flor de Jasmim há mais de um ano e os visitantes, que abrangem desde sujeitos que conhecem o grupo pela primeira vez, até frequentadores esporádicos ou contínuos há poucos meses, desde que os mesmos não estejam participando dos Trabalhos há mais de um ano como os demais (Tabela 01).

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As informações fornecidas pelo sourvey foram sigilosas e preenchidas pelos próprios participantes (42 pessoas), que não puseram seus nomes nos formulários.

Tabela 01. Interlocutores consultados no CAFJ durante a pesquisa de campo nos anos de 2013 e

2014. Neste território, acompanhamos processos e trajetórias biográficas de sujeitos, que se disseram em tratamento no Terreiro devido à dependência em psicoativos. Os outros interlocutores foram relevantes para a

compreensão da cosmologia do grupo, assim como seus preceitos simbólicos, ritualísticos e institucionais.

Para preservar a integridade de alguns atores decidi manter os apelidos recebidos pelos mesmos no Terreiro, uma vez que os interlocutores principais trazem consigo depoimentos que envolvem pretéritas situações consideradas “perturbadoras” e “complicadas”, tendo em vista sua imersão no “mundo outsider”, envolvendo uso e abuso de substâncias psicoativas, grande parte delas “ilícitas”. Já os atores essenciais ao histórico e sustentabilidade do Centro, como é o caso das lideranças e colaboradores – apesar de alguns também trazerem casos de anteriores uso, abuso e dependência - tiveram seus nomes preservados, após concordância prévia dos mesmos. As entrevistas seguiram um norteamento básico para todos os atores, sendo as questões adaptadas ao perfil dos entrevistados, especialmente, àqueles que assumiram terem – ou ainda estarem - recebendo tratamento para dependência em psicoativos no Terreiro.

No caso de sujeitos “curados” ou “em tratamento” no CAFJ as perguntas do protocolo qualitativo voltaram-se às suas trajetórias biográficas referentes aos acontecimentos passados e atuais, no intento de compreendermos o papel do modelo terapêutico estabelecido pelo Flor de Jasmim e, consequentemente, do Daime, para os encadeamentos de mudança e transformação na condição de vida e pessoa daqueles que se afirmaram usuários ou ex-usuários problemáticos de psicoativos. Aqui, analisamos casos que “deram certo”, mas também nos atemos às eventuais “ineficácias” do modelo, onde detectamos recaídas e o abandono do tratamento por parte de alguns. Também não deixamos de ouvir e gravar os depoimentos, assim como observar o comportamento de outros interlocutores, que encontraram no CAFJ acolhimento e recobro para outros problemas de saúde, para além de casos envolvendo dependência em psicoativos.

Mas nem só de entrevistas direcionadas, observações in loco, planilhas, gráficos e auto-experimentações compuseram a base empírica dos dados tratados, catalogados e categorizados em diálogo constante com os atores. Uma das fontes de dados consideradas mais relevante na análise veio de escutas informais – previamente autorizadas – sempre concretizadas em momentos de descontração, no qual os sujeitos conversavam sobre coisas simples da vida e dos seus cotidianos. Muitos frisavam suas experiências durante as Sessões, narrando àquilo que queriam e podiam lembrar.

Na cozinha comunitária fui capaz de gravar inúmeros depoimentos advindos destas conversas mantidas entre pessoas que iam e vinham. Houve momentos em que meu gravador permaneceu ligado durante horas seguidas, posicionado estrategicamente no centro da mesa das refeições, ao redor da qual todos os participantes costumavam se reunir. Os sujeitos chegavam, conversavam, eram avisados sobre a gravação, deixavam algum tipo de mensagem ou depoimento e depois retornavam às suas atividades na mata. Neste sentido, o fluxo de informações obtidas foi imenso; quase infindável! Neste ir e vir dos atores eles sempre paravam na cozinha, tomavam café, faziam lanches, preparavam refeições ao mesmo tempo em que falavam abertamente sobre suas vidas, conquistas, problemas e da eventual busca por soluções, além de suas expectativas para com o futuro, cujas narrativas espontâneas giravam em torno de experiências biográficas reveladas uns para os outros de modo bastante natural.

Penosos foram os tempos de “gabinete” reservados às transcrições e qualificações destes áudios, que variavam de quarenta minutos a quatro horas seguidas, onde as conversas, às vezes, iniciavam-se com uma ou duas pessoas, terminando por englobar cinco, seis ou até mais atores. Juntando entrevistas e escutas – que passaram

seis meses para serem completamente transcritas e catalogadas – obtive, no geral, o depoimento de mais de trinta atores, sendo as informações depuradas conforme os objetivos da tese. Terminadas as transcrições, categorizações dos dados (feitas a partir das recorrências de certos conteúdos oriundos destas oratórias) e digitalização das observações inscritas no caderno de campo, eu consegui obter uma base considerável de elementos empíricos, que pareados às leituras teóricas balizaram tais escritos.