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ABERTURA DA SEGUNDA PARTE As substâncias psicoativas e as religiões

5. As origens do sincretismo brasileiro

5.1. O sincretismo reinterpretado à luz dos processos coloniais

As premissas do antropólogo norte-americano Herskovits (1969) estimularam debates dentre os intelectuais brasileiros, agora, conduzidos por uma nova ótica ao lidar com religiões sincréticas, através de seu conceito de “reinterpretação”, além do que, estes estudiosos viram-se obrigados ao exercício da relativização ao observarem a ocorrência de transes de possessão, tidos por muito tempo como eventos “anormais” e relacionados aos sintomas alusivos às “patologias mentais”. Assim, os conceitos de

acreditam ser o Catimbó fruto de intensas interações mantidas entre elementos simbólicos e ritualísticos provenientes das culturas: indígena, negra e católica rural, estando determinados agrupamentos interioranos a reunir-se historicamente em cultos sincréticos realizados em Terreiros, muitas vezes, debaixo de árvores da caatinga, especialmente, a “Jurema Sagrada” (Mimosa hostilis). Apresentando mitos, dogmas, ritos e liturgias peculiares, o Catimbó foi influenciado pelo catolicismo – num processo de sincretismo - devido às proibições e demais perseguições sofridas pelas religiões populares durante o fim do século XIX e início do XX, de modo que muitos adeptos do “Catimbó Jurema” foram presos ou assassinados devido à prática de seus credos. Sendo assim, parte do universo católico, principalmente as rezas, foi acoplada às práticas do Catimbó, no intuito de mimetizar as práticas e saberes dos catimbozeiros juremeiros. Das cascas da Mimosa hostilis, os Mestres juremeiros elaboram o “vinho da Jurema”; bebida psicoativa, cujo princípio ativo é a dimetiltriptamina (DMT), composto químico também presente na beberagem ayahuasca. Voltando-nos a práxis ritualística da jurema, após a ingestão do vinho, os catimbozeiros costumam tocar tambores e cantar para os Encantados, alcançando um estado místico de transe de incorporação. As entidades que “baixam” são tidas como antigos Mestres a habitar um plano divino identificado como o “Juremá”. Este plano é povoado por espíritos de juremeiros ancestrais, que após o desencarne “encantaram-se”. Descendo do Juremá, os Encantados auxiliam os vivos durante os Trabalhos de cura, dando-lhes conselhos e passes por intermédio dos médiuns incorporados.

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A palavra Macumba traz em si uma etimologia ambígua e controversa. De acordo com Lapassade e Luz (1972), Prandi (1991), Negrão (1996), Pordeus (2000) e Amorim (2013), oras a origem da denominação é remetida a um arcaico instrumento percussivo africano, semelhante a um Canzá - outrora empregado em rituais de matrizes africanas no Brasil – oras refere-se genericamente a todos os cultos de matriz nagô, que sofreram influências de outras tradições africanas (angolanas e congolesas), mas também indígenas, católicas, espíritas kardecistas e outras filosofias esotéricas e ocultistas. Em Bastide (1989), a palavra Macumba é utilizada para designar o encontro de sujeitos em determinados rituais africanos, que teriam perdido sua “essência original”, sendo vistos como deturpações do Candomblé baiano. Tamanha distinção da matriz jeje-nagô fez com que os intelectuais distinguissem os macumbeiros, dos xangozeiros, dos candomblecistas e dos umbandistas. Macumbeiros e umbandistas estariam, portanto, mais distantes da “África mítica”, devido à “mistura simbólica” que apresentavam, especialmente, no que toca à aproximação do espiritismo kardecista.

sincretismo e de reinterpretação foram esclarecidos à luz da interação cultural, envolvendo velhos e novos significados contraídos de uma intensa relação sígnica hábil a propiciar novos valores e alterar os princípios daquilo considerado antigo ou tradicional. Um procedimento propulsor de conexões dialógicas entre o velho e o novo.

No que toca ao transe de possessão, em contexto africano, Herkovits (1969, pp.89-90) atestou a “normalidade” destes eventos para os povos estudados, não abrindo mão do relativismo necessário à compreensão dialógica entre velhos e novos elementos culturais. Ele constatou – também como o fez Lewis (1977) – ser o transe modelado pelo contexto sociocultural, sendo atingido por intermédio de uma tradição a demandar dos atores disciplina, aprendizado e comprometimento para seu alcance.

Uma revolução nas ciências sociais brasileiras foi à crítica das premissas da aculturação, tendo a figura de Cardoso de Oliveira (1978; 1979) como precursora. Os questionamentos voltavam-se às pesquisas que não consideravam a particularidade sistemática da cultura, ignorando sociedades e estruturas sociais. O culturalismo e a teoria da aculturação, além de serem inviáveis teoricamente, eram inadequados às realidades dos “países subdesenvolvidos”, que seriam formados por “colônias internas”, estando à aculturação a valorizar a cultura em detrimento da sociedade.

No intento de ultrapassar o culturalismo, Cardoso de Oliveira (1978; 1979) propôs o conceito de “fricção interétnica”, em contraposição ao de aculturação, obtendo êxito ao observar que nas áreas de fricção, ou seja, nos interstícios das estruturas sociais em contato - em tempos de colonização e neocolonização - ocorrem fluxos contingenciais, reinterpretações e reconfigurações simbólicas não apenas por parte do “dominador”, mas também por parte do “dominado”. Na área de fricção existiria movimento, contato e ao mesmo tempo conflito, todavia, nem “dominante”, nem “dominado” perdessem cultura alguma, como imaginavam os teóricos da aculturação.

Ao seguir o caminho dos estudos sobre o sincretismo no Brasil, constatamos a relevância dos trabalhos de Moura (1988) e Pereira (1983; 1984), no que tange à reformulação de determinados conceitos capazes de não mais fomentar o processo neocolonizador, posto que a antropologia – nos tempos coloniais e até mesmo pós- coloniais – parecia ainda representar função de ciência a auxílio do imperialismo. Moura (1988) e Pereira (1983; 1984) delegaram às incursões sobre o sincretismo feitas até então, ao etnocentrismo, sempre ancoradas em juízos de valor, reduzindo a religião e toda a humanidade dos “dominados”, além do que, no caso do culturalismo, propendia- se à exclusão da historicidade dos contatos interculturais. Pereira (1983; 1984) alertou

para o fato de que os estudos sobre a religião e a cultura do povo negro no Brasil estavam ideologicamente desatentos aos aspectos da vida cotidiana dos atores, favorecendo o exotismo e a criação da imagem do “negro espetáculo”95.

5.1.2. Cisões, convergências e divergências

Bastide (1971; 1973; 1974) buscou elucidar o sincretismo mantido entre os santos da Igreja Católica e os Orixás cultuados pela cultura africana. Nestes termos, foi que o sincretismo foi visto a partir da suposta relevância do catolicismo no Brasil, que serviria como meio simbólico para o “disfarce” e a “permanência” das práticas religiosas do oprimido, ressaltando àquilo que Rodrigues (1997) já havia intitulado de ilusão de catequese. Por outro lado, Bastide (1971; 1973; 1974) procurou uma explicação psicanalítica para o sincretismo africano, uma vez que julgava o mesmo como representante da proeminência do “complexo de inferioridade” imposto ao negro durante e após a opressão escravista, estando a “religião oficial” do homem branco (católica) em escala hierarquicamente “superior” aos demais credos tradicionais.

Também criticando os teóricos da aculturação, Bastide (1971; 1973; 1974) lidou com a questão dos contatos culturais, tendo em mente que não eram apenas os agrupamentos sociais e suas instituições os agentes envolvidos nos processos de interação, mas seres humanos reais a encontrar-se, eventualmente ou propositalmente, no decorrer da história, por múltiplas relações cruciais promotoras de intercâmbios simbólicos. Bastide (1971; 1972; 1974), aliás, enaltecia a relevância dessas situações de contato, especialmente, entre povos e civilizações, tentando substituir à obsoleta “antropologia colonial” pelo que designou de “sociologia em profundidade”.

Ele apontou para as falibilidades teóricas e práticas da aculturação, tendo em vista que as inspeções relativas à mesma teriam sido feitas em áreas geográficas diminutas e à luz das teorias culturalistas, embora ele tenha desconsiderado a perspectiva da reinterpretação estipulada por Herkovits (1969), posto que a mesma, para ele, seria incapaz de abarcar a complexa dimensão da vida do negro no continente americano (BASTIDE, 1974). Verificamos que a proposta inicial de Bastide (1974) era

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Noção ressaltada por Holanda (1936) e alusiva à exotização destinada às culturas do negro no Brasil. Como os elementos africanos precisaram adequar-se às conjunturas da identidade nacional, algumas particularidades das culturas africanas foram enaltecidas em detrimento de outras características da vida comum dos negros. Foram evidenciados princípios concernentes à religiosidade, danças, músicas, roupas, línguas e culinária. Ao enaltecerem princípios estéticos os etnógrafos haviam contribuído para erguer a imagem do “negro espetáculo”, tido como um ser exótico e ao mesmo tempo familiar e banalizado. Em outras palavras um sujeito dessemelhante do “nós coletivo”, mas que despontaria exoticamente, ao se pleitear assuntos pertinentes à identidade nacional. Maiores detalhes estão à disposição nos trabalhos de Pinto (1952); Holanda (1936); Ortiz (1985), Schwarcz (1993) e Pinho (2008).

a de substituir a conceituação de Herkovits (1969) de reinterpretação por sua noção de “convergência”96; uma definição – que para ele parecia - mais aprimorada no lidar com as situações de contatos interculturais.

Inspirado por Lévy-Bruhl (1947), Durkheim (1989) e Mauss (2003a), Bastide (1973) elaborou suas inspeções sobre o sincretismo africano brasileiro, chegando àquilo que identificou como “princípio da cisão”, que, delegava o pensamento do subalterno aos cânones a-racionais e “não europeizados”, pois a cognição do negro propendia a oscilar no plano das analogias e correspondências, estimuladas pela participação dos sujeitos em seus ambientes históricos, ecológicos, sociais, políticos e culturais.

No raciocínio de Lévy-Brhul (1947) a lógica dos “povos primitivos” repousava nos princípios da participação social dos atores, sempre a pensar e refletir sobre suas vidas utilizando-se de associações e similaridades. Este seria o alicerce do “pensamento selvagem”, hábil a construir classificações e categorias próprias. Foi a partir destes pressupostos, que Bastide (1971) desenvolveu – para explicar o sincretismo africano brasileiro - o “princípio da cisão”, buscando instaurar uma “sociologia das interpenetrações de civilizações”, tentando chegar a conclusões sobre a sociedade brasileira. Ele compactuava com as premissas de Lévi-Brhul (1947), no tocante à suposta subdivisão compartimentada do universo dos povos tradicionais, cujas participações tendiam a ocorrer no interior destes múltiplos compartimentos.

No pensar de Bastide (1971), o sincretismo representava restolhos desta “arcaica” qualidade cognitiva, não evidenciando fusões ou separações, pois o “verdadeiro sincretismo” propendia-se ao pensamento analógico motivado por semelhanças, convergências e demais paridades, porém, jamais operando pelo princípio da identificação ou da mistura, como parecia clamar o pensamento teórico vigente, ao refletir sobre a relação entre Orixás africanos e santos católicos. Para ele, o sincretismo não passava de um “jogo de analogias”, estimulado pela participação dos atores, raciocinando mediante princípios de correspondência.

Demonstrando preocupação com os contatos entre civilizações, Bastide (1971; 1973; 1974) procurou desviar-se das situações anômicas advindas dos processos de sincretismo derivados dos intercâmbios culturais, enfatizando princípios de cisão,

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Convergência daquilo que era culturalmente divergente antes do contato. No caso da cultura negra no Brasil em contato com outras raças, principalmente a raça branca dominante em tempos de situação colonial, a convergência, para Bastide (1974), teria ocorrido no plano simbólico das associações, tendo como referencial balizador da religiosidade africana os elementos católicos, antes divergentes à realidade do negro, que precisou adequar-se ao contexto da opressão, convergindo-se sincreticamente aos padrões vigentes. Para um melhor aprofundamento deste conceito bastidiano averiguar os escritos de Bastide (1974) e Leal (2011).

separação e continuidade de uma utópica pureza inerente à tradição candomblecista, que havia “sobrevivido” a partir da preservação de seus componentes “originais”, não se permitindo à mistura sincrética na manutenção de sua matriz jeje-nagô. Neste sentido, Bastide (1971; 1973; 1974) criticou outras variações desta matriz vistas enquanto “deturpadas”, inclusive a própria Macumba carioca, que estaria em dissonância com a tradição, por se permitir ao sincretismo, afastando-se da matriz utopicamente pura.

Ferretti (1995) ratifica as posteriores críticas e discordâncias emitidas por alguns intelectuais brasileiros no tocante a certas premissas de Bastide. Ribeiro (1956) açodou para a não validade de sua tese condizente à existência, no Brasil colonial e neocolonial, de dois tipos de catolicismos. Mediante Bastide (1971), a religião oficial brasileira, nestas épocas, estaria subdividida em duas “confrarias”, sendo uma destinada aos brancos e outra aos negros, tendo a religião do escravo surgido como uma subcultura da classe dominante em contexto social escravocrata. Ribeiro (1956) foi de encontro a esta perspectiva, considerando-a reducionista por subestimar os preceitos do conceito herskovitsiano de reinterpretação, além do que, reforçava e legitimava o dualismo opressor da estrutura social do sistema escravista.

As críticas de Ribeiro (1956) estendem-se ainda aos fatores para além do pensamento marxista bastidiano, que teria enaltecido o modelo econômico de época, julgando equivocado seu conceito de cisão, pois toda e qualquer sociedade determinaria padronizações específicas aos papeis sociais dos atores. Ribeiro (1956) também criticou os métodos aplicados por Bastide, considerados por ele de cunho estruturalista, desmerecendo a essência valorativa dos sistemas culturais.

Uma das críticas mais concisas ao pensamento bastidiano teve como foco a questão da criatividade inerente à resistência cultural do sincretismo, mesmo porque, ele acreditava que elementos do catolicismo e componentes africanos se confundiam nestes procedimentos, quando, na verdade, parecia notório aos seus críticos que as religiões de origem africana preservavam suas características originais, completamente distintas do catolicismo, tendo suas unidades simbólicas justapostas e não contrapostas em processos de sincretismo a representarem estratégias de resistência do oprimido.

Bastide (1974) também foi muito criticado ao utilizar o infeliz termo “religião em conserva” 97 diante da definição dos cultos de matrizes africanas no Brasil;

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Ao caracterizar os cultos africanos no Brasil como religiões em conserva, Bastide (1974) referia-se a um suposto antagonismo existente entre estes últimos, em relação àqueles credos tidos por ele como “religiões vivas”, ou seja, “superiores”. Em estado de conserva, estaria uma religião, que seria vivida por seus adeptos, mas não se apresentava “viva” nos sentidos: histórico, transformativo e evolutivo. Bastide filiava-se ao

terminologia inadequada às investigações desse complexo fenômeno religioso, além do que, Bastide teria promulgado a utilização do que chamou de “etnografia congelante”98, o que – para Jorge de Carvalho (1978, p.95) – significava uma falácia sociológica, pois a situação dos credos tradicionais não se restringia aos dados de outrora engessados em livros e artigos clássicos ou contemporâneos. Jorge de Carvalho (1978) asseverou a inoperância da etnografia congelante bastidiana, uma vez, que ela não vislumbrava os artifícios criativos dos povos em mudança nos contatos interculturais, aceitando enquanto incontestes - e aplicáveis a todos os tempos históricos - os dados sobre tais religiões levantados desde a época de Nina Rodrigues e seus seguidores positivistas.