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ABERTURA DA PRIMEIRA PARTE

2. Psicoativos e contatos culturais nas modernas cidades industriais

2.1. O saber sobre o poder do puritano proibicionismo

2.1.2. Os danos da proibição num mundo de fluxos e fronteiras

Analisando os eventos da Lei Seca chegamos à conclusão de que toda forma de proibicionismo jurídico cria um novo crime. Inicialmente a Lei tinha enquanto meta “eliminar” uma substância (o álcool) como se a mesma nunca tivesse existido, consumida ou desejada pela humanidade. Como resultado de sua aplicabilidade foi fomentado um mercado ilícito, cuja clientela, também clandestina, foi inserida nas vias do crime, do desvio e das demais contravenções penais. Nesta época, nos Estados Unidos, “inventou-se” um novo crime, porém, em contrapartida o álcool não deixou de ser consumido, mesmo com o desenvolvimento de estruturas repressivas cada vez mais sofisticadas mediante extremo gasto de verbas estatais.

Com a abolição da Lei, o álcool retornou à licitude, porém àqueles anteriores aparatos erguidos durante sua repressão foram utilizados no combate a outras substâncias rotuladas na categoria de ilícitas, sendo potencializados os esforços frente à ilusória erradicação de velhas e novas substâncias todas reduzidas ao denominador comum da proibição. Os eventos negativos observados com a proibição do álcool se repetiram, surgindo novos crimes, criminosos e o “narcotráfico”; o que fez com que os aparatos repressivos ganhassem maior legitimidade, perante o “ciclo vicioso proibicionista”, que potencializa os mercados das substâncias ilegais, ao mesmo tempo em que guerreia contra as pessoas, que negociam e ou consomem certas substâncias, encarcerando-as e exterminando-as, mesmo que se verifique a incongruência de uma guerra contra coisas inanimadas (substâncias psicoativas), mas que acaba afetando atores envolvidos em seu manuseio, comercialização ou consumo.

Szasz (1992, p.104) debruça-se sobre o que ele categorizou por “circuito proibicionista”, cujas fases podem ser notadas isoladamente para uma compreensão global dos diversos fatores aqui envolvidos. O ciclo começa com a localização de uma substância e isolamento de seu meio natural para estudos e comprovações sobre a sua relevância para a humanidade. Durante este circuito vemos as propriedades das substâncias sendo usadas e testadas por especialistas, sobre os quais repousa o conhecimento das possíveis potencialidades, danos e riscos atrelados ao seu consumo. Caso a substância não tenha nenhuma ação “benéfica” ou “essencial” ao organismo, conquanto ainda apresente efeitos inebriantes, ela passa a ser subordinada ao controle da classe médica, que irá classificá-la como “substância de abuso”. O ciclo proibicionista prossegue atuante, procurando inviabilizar este abuso por intermédio da intervenção penal, onde políticos, médicos e juristas somam esforços para “erradicar a substância”.

Os autores enxergam no proibicionismo um instrumento eficaz perante a disciplina e a vigilância de parte considerável da população, que – por ser rotulada enquanto perigosa – necessita continuamente de controle, vigilância e punição com o confinamento (FOUCAULT, 1977a; 1977b; 1978). “Nesse sentido não se quer afirmar

que o proibicionismo seja a única, ou mesmo a mais importante, técnica de assédio e aprisionamento destinado às ‘classes perigosas’, mas que ele é um importante recurso nessa função global de disciplina e contenção” (RODRIGUES, 2008, p.98). Não

obstante, o proibicionismo garante novo acesso ao sistema carcerário, além de representar mais uma possibilidade para a vigilância das massas. Resta-nos questionar sobre o porquê da continuidade dessas ações, sendo constatado o fracasso global da

proibição e a ilógica “guerra antidrogas”, que se arrasta por quase um século. A resposta para esta dúvida repousa no fato de que o suposto “fracasso da proibição, então,

potencializa-se em positividade: a guerra perdida contra ‘as drogas’ significa a guerra diariamente renovada e eficaz contra pobres, imigrantes, negros, camponeses entre outros ameaçadores” (RODRIGUES, 2008, p.98).

O discurso puritano da sobriedade foi expandido a outras substâncias estrangeiras, como os derivados do ópio, da cocaína e da Cannabis sativa, dando-se início no século XX ao que Bucher e Oliveira (1994) denominam por ideologia de “guerra às drogas”. Os aparatos repressivos reforçaram uma política “antidrogas”, que conseguiu direcionar seu foco às minorias étnicas, sendo até hoje vislumbrados seus efeitos deletérios. Neste sentido, o usuário de substâncias ilícitas acaba-se tornando um “desviante global”, pois grande parte dos países adotou as premissas e os tratados “antidrogas”. Levine (1978; 2002) acredita ser o proibicionismo um “fato social total” devido à sua existência, que independe da vontade dos atores, além de ser uma política revestida por uma essência coercitiva, envolvendo os países em convenções internacionais de combate bélico e ideológico a determinadas substâncias.

Levando em conta os primórdios do movimento proibicionista nos EUA e a situação na qual se encontravam os imigrantes no início do século XX, no qual determinados psicoativos estrangeiros – como a maconha, a cocaína e o ópio – foram identificados, assim como seus usuários, enquanto “impuros”, “imorais” e “ilegais” devido à sua origem étnica, podemos concordar com Barth (2000) e suas menções aos fenômenos conflituosos comuns aos fluxos entre fronteiras étnicas. Casos de densas migrações e imigrações fomentam o surgimento de sociedades com minorias; os chamados “grupos párias”, que representam uma variante comum às relações interétnicas. Tal qual Sahlins (1990), Barth (2000) também observa, que categorias acusatórias são resultantes de eventos históricos, que fizeram com que os grupos minoritários assumissem caráter distintivo a partir da rejeição das populações receptoras (em nosso caso a norte-americana) que os rotularam através de comportamentos característicos, quase sempre, condenados moralmente, mesmo que sejam úteis e vitais à cultura do elemento estrangeiro (como acontece com o uso de certos psicoativos).

Inicialmente os “párias” são rotulados por não obedecerem aos tabus básicos das sociedades majoritárias, que os rejeita e isola publicamente. Nas zonas de segregação suas identidades são formadas em espaços e interações limitados, os quais os incapacitam de alçar status de normalidade nas situações de interação (BARTH 2000,

p.57). Neste caso, as fronteiras serão mantidas pela população majoritária, excluindo cada vez mais a gente identificada enquanto pária.

Aos párias, restaria participar destes subjugantes processos criativamente, utilizando-se de “sinais diacríticos” para anunciar suas identidades. Diacríticos tais que além de fomentarem a identidade entre pares de párias reforça a diferenciação entre párias e sociedade majoritária. Seguindo Barth (2000) podemos refletir sobre o impacto do proibicionismo estadunidense e sua intenção oculta de perseguição aos grupos párias. O proibicionismo e seu ideal “antidrogas” representariam uma dentre várias outras políticas étnicas de não interação com o “desvio social” por representar uma política que reforça as diferenças e limita os contatos entre os sujeitos.