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ABERTURA DA PRIMEIRA PARTE

2. Psicoativos e contatos culturais nas modernas cidades industriais

3.3. O infortúnio da mente no “descompasso da alma” A dependência enquanto “doença mental”

As concepções sobre doenças e distúrbios mentais surgiram na modernidade (ao longo dos séculos XIX e XX), devido à confluência do paradigma dualista ocidental erguido entre corpo e mente. Durante o século XX surgiram reações intelectuais, criticando os reducionismos biomédicos, que lidavam com a temática da saúde mental a partir de modelos organicistas. Deste contexto emergiram duas posturas científicas paralelas e, a priori, não complementares ao lidar com o problema: o “psicologismo” e o “sociologismo”. Apenas no final do século XX é que percebemos essas duas vertentes se coadunarem perante a locução contra o reducionismo biomédico.

Os estudos vêm demonstrando a relação entre condicionamentos sociais, contextos e representações fomentadas pelas relações intersubjetivas e as próprias dinâmicas psicológicas dos sujeitos em suas vivências no mundo. Este viés fenomenológico favorece uma nova forma de analisar o que seriam perturbações advindas do mundo moderno. A própria estrutura subjetiva que permeia o significado dos discursos dos sujeitos sobre saúde e doença tem sua origem no meio social, sendo proveniente do contato entre os atores, inclusive, os próprios modelos interpretativos (capazes de reconhecer, mobilizar, acolher e tratar suplicantes) a respeito das doenças físicas e mentais manifestam-se de modo processual e resultantes dos contatos e debates entre os atores sobre as enfermidades, especialmente, as de caráter mental.

Eventos patológicos levam à reflexão por parte dos sujeitos acometidos ou não pelo infortúnio, além de influenciarem os papeis dos atores no mundo social. O desconforto é transmitido física e simbolicamente na forma padronizada de sintomas de aflição e, no que toca ao “problema mental”, a enfermidade não pode ser reduzida às “certezas” de modelos explicativos, até porque “os processos fundamentais de

interpretar a enfermidade não ocorrem simplesmente por asserções lógicas ou por juízos teóricos estruturados em modelos cognitivos” (ALVES, 1994, p.98).

As experiências compartilhadas misturam-se - num movimento processual e relacional - com as representações e demais formas padronizadas de interpretação e sentido sobre as enfermidades da mente. Os modelos explicativos podem ser estudados, levando-se em consideração sua plasticidade e demais capacidades de adaptação e reestruturação frente a situações inusitadas, que os estimulam a superar novos desafios, onde é testada sua capacidade ou não de responder a estas novas demandas.

Rabelo et al. (2003) verificam, que os símbolos e os significados, envoltos no rótulo estigmatizante da doença mental, também se apresentam como construções culturais utilizadas em situações de aflição. A maneira de exprimir qualquer uma dessas patologias torna-se o reflexo daquilo que os agrupamentos humanos esperam das atitudes dos sujeitos “afetados”. Rabelo (2003), por sua vez, argumenta que nos estágios da doença mental, o self e a enfermidade correm o risco de fundir-se de modo irreversível, pois “mais do que adição de um atributo negativo, a doença surge como

subtração de uma qualidade moral do eu (RABELO, 2003, p.81)”.

O conceito de doença mental traz em seu âmago uma atuação contraditória frente aos processos da ação social. Por um lado, o sujeito acometido (em nosso caso o dependente em psicoativos) é merecedor de “cuidados especiais”, porém este mesmo sujeito fica à mercê das desqualificações e rebaixamentos morais comuns à sua condição isolada de desamparo. O surgimento de um problema mental pode ser capaz de promover continuas destruições, construções e reconstruções de redes sociais em torno de episódios de aflição, na busca por alívio e solução (SOUZA, 2003). Tais patologias mudam a vida do suplicante, mas também dos atores que a eles estão ligados direta ou indiretamente, como: a família, a vizinhança, os amigos e conhecidos.

A relevância dos estudos sobre “redes sociais” mobilizadas em torno do problema mental surge como fator primordial diante do entendimento da construção social das “patologias da mente”. Para tal, é preciso demonstrar como os distúrbios trazem em si, ao mesmo tempo, fenômenos individuais e coletivos expressos por meio de redes sociais representadas por extensos mecanismos de interações existentes em torno do sujeito afetado e atuando em várias frentes, incluindo desde a descoberta individual e grupal dos sintomas patológicos, até os procedimentos tomados na busca por auxílio – incluindo a avaliação sobre eficácia ou ineficácia - das agências especializadas no cuidado e no tratamento dos infortúnios psíquicos.

Redes sociais, portanto, ao mesmo tempo induzem e constrangem a ação dos atores; o que os faz tomar determinadas decisões padronizadas na busca por alívio e cura dos infortúnios, fora o fato de que são sumariamente importantes para a identificação da doença nos outros, “pois ser doente não é apenas uma condição

biológica ou psicologicamente dada, mas um produto constituído com base nas definições e reações dos outros” (SOUZA, 2003, p. 123). Não apenas a doença mental,

mas também os tratamentos para a mesma – como afirma Rabelo (1993; 1994; 2004) – representam experiências construídas intersubjetivamente, envolvendo os atores e suas redes sociais na contínua negociação e busca por significados.

Verificamos que o tratamento para dependência fornecido pelos sistemas públicos de saúde e assistência social - incluindo o caso brasileiro60 - ainda apresenta graves problemas associados tanto às estruturas físicas e burocráticas, quanto ao pessoal especializado no lidar com a problemática (LIRA; ESCOBAR, 2011). Outro fator importante apontado pelos autores, e que contribui para o “funcionamento inadequado” das estruturas estatais destinadas à promoção da saúde e da assistência, é o de que o abuso e a dependência são vistos aqui por lentes moralistas, onde o fenômeno ainda é tido como distúrbio de personalidade, cuja origem seria orgânica. Como cada representação requer uma ação - por ser vista como uma patologia orgânica - para o imaginário biomédico a dependência ainda requer isolamento e medicalização.

Se o sistema público de saúde apresenta falhas e precariedades no tratar dos suplicantes acometidos por patologias tidas “normais”; o que esperar do atendimento destinado às doenças “amorais”, como é o caso da dependência? Os usuários são negligenciados pelo sistema, pois muitos profissionais ainda enxergam na incumbência do acolher e do tratar destes pacientes uma tarefa ingrata, desumana e inviável.

O que percebemos é a existência de várias instituições oficiais voltadas à recuperação deste tipo de paciente, mas que ainda operam isoladamente e desarticuladamente. O custo do tratamento oficial costuma ser elevado para o Estado e sua metodologia e eficácia sempre questionadas, apesar da detecção de alguns casos de recuperação total de dependentes nos sistemas públicos de saúde e assistência social, onde também podemos encontrar uma minoria de profissionais habilitados, capacitados e empenhados em seus serviços (MOTA, 2008; LIRA; ESCOBAR, 2011).

60

Apesar dos posteriores avanços humanísticos alçados nas últimas décadas em decorrência das críticas contundentes da militância anticarcerária e antimanicomial.

O ponto crítico do tratamento oficial é que o mesmo seria desproporcional ao modo de produção capitalista, “segundo o qual predomina a lógica do fazer cada vez

mais, com cada vez menos. Um procedimento caro, demorado e de resultados duvidosos afronta toda uma corrente de valores calcada na eficácia e na racionalização de recursos” (MOTA, 2008, p.224). Para a ciência ocidental o que

importa seria a obtenção de resultados precisos em menos tempo, gastando-se o mínimo possível, lógica completamente inversa se pretendermos agir humanamente sobre o fenômeno do abuso e da dependência em substâncias psicoativas.

É conveniente ressaltar que nenhum tratamento para a dependência é cem por cento eficaz, além do que, na condição de dependente, o sujeito não se cura por completo. Ele apenas deixa de usar seu(s) psicoativo(s) de preferência. Para o suplicante a vida abstêmia chega a ser insuportável, gerando um vazio existencial, sendo bastante comum que indivíduos em abstinência desenvolvam outras formas de dependência, incluindo - no rol de atividades compulsivas - o trabalho, o sexo, a comida, jogos, religiões, esportes e o consumo de outros psicoativos; o que nos leva a crer que o problema da dependência não reside na dependência em si, mas na compulsividade.

Estudar a dependência nos faz observar as redes públicas como de extrema importância para as classes populares. Em se tratando do tratamento oficial notamos que a sobrecarga nos serviços estatais de saúde dá-se pelo fato da demanda ser superior à capacidade de atendimento destas estruturas, uma vez que são impossibilitadas de alcançar toda uma população desasistida. Devido a esta limitação, não resta outra solução à população, que encontra outras formas de aliviar dores e sofrimentos.

O uso, o abuso e a dependência em substâncias psicoativas são fenômenos comuns em todas as classes sociais, conquanto as pesquisas venham demonstrando, que são as camadas populares o setor que mais tende a sofrer com a desassistência em relação a estas e outras doenças. Desta feita, surgem inúmeras demandas psicossociais envolvidas no adoecer e no tratar, basicamente, no que tange às crenças e práticas de caráter mágico-religioso. Relevantes objetos de análise se fazem prementes ao verificarmos as estratégias desenvolvidas no enfretamento extraoficial de infortúnios; fenômeno que levanta questões pertinentes e que precisam ser respondidas. Sendo assim - ao longo das próximas partes que compõem nossa tese- entraremos em contato com algumas destas estratégias populares envolvidas do cuidar e no tratar, quando serão apresentadas determinadas esferas espiritualistas brasileiras, tendo como foco de análise os sistemas simbólicos e terapêuticos que fazem uso ritualístico da bebida ayahuasca.