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ABERTURA DA SEGUNDA PARTE As substâncias psicoativas e as religiões

5. As origens do sincretismo brasileiro

5.3. O relativismo intelectual e os processos de desincretização

5.3.2. A noção de ecletismo

No próximo capítulo entraremos em contato com o universo das religiões brasileiras amazônicas que têm com base doutrinária o uso ritualístico da ayahuasca, incluindo a descrição do contexto histórico da fundação destes cultos a partir da trajetória biográfica de seus fundadores, em sua maioria, curadores nordestinos alistados ao “exército da borracha” e inseridos neste complexo “afro-índio-amazônico” no início do século XX. Por ora, cabe salientar que parte dos estudiosos dedicados à temática dos credos ayahuasqueiros no Brasil interpretaram estas manifestações segundo a lógica do sincretismo (DIAS JR., 1992; MACRAE, 1992; GUIMARÃES, 1992; SOIBELMAN,

1995), conceito que, para Labate (2002, pp.337-239), além de ter sido criticado pela literatura antropológica - por remeter-nos aos princípios de acoplamento, manutenção ou deturpação de elementos culturais “puros” advindos de origens distintas - não seria capaz de acompanhar os fenômenos resultantes destas Linhas religiosas.

Outros autores abriram mão do conceito de sincretismo pela noção de “ecletismo” – respaldados nas reflexões de Sanches (1991) e Sanchis (1995)- ao se referirem ao fenômeno em questão (GROISMAN, 1991; PELÀEZ, 1994; MERCANTE, 2000a; LABATE, 2004a; LIRA, 2009a). O termo ecletismo nos remete a correntes filosóficas holandesas fomentadas em meados do século XVII, perante resistência ao estilo artístico e intelectual, que fora monopolizado pelo “maneirismo romano” (PINTO, 2010). Buscou-se, a partir daí, romper com os paradigmas vigentes ao aceitar- se o ecletismo como uma propensão ao acolhimento seletivo de certos componentes advindos de outros sistemas filosóficos e artísticos teoricamente não coadunáveis.

Em filosofia a denominação “eclético” refere-se aos intelectuais de bases helenísticas e neoplatônicas, além dos pensadores e artistas renascentistas na busca por agregação de ideias e valores dos escritores clássicos, sempre a passar pelo crivo da reformulação e da reinterpretação (SANCHES, 1991; SANCHIS, 1995, PINTO, 2010). Pensadores ecléticos teriam intenção de alcançar uma “verdade” mais complexa, opondo-se a qualquer tipo de radicalismo ou ortodoxia. Dentre tais pensadores identificamos a figura de Victor Cousin, cujas reflexões nos remetem a um tipo de “espiritualismo eclético”. Um paradigma filosófico, cujo esforço intelectual se pretendia à formulação de um todo lógico, cognoscível e complexo, fundado a partir da junção de variadas matrizes, para ele, mais próximas da “verdade”, num pensamento aberto a novas influências e reinterpretações.

Mercante (2000b) e Pinto (2010) apresentam a concepção de “ecletismo religioso” como parte de um procedimento cultural de reaproximação, mediante sobreposição de elementos díspares, que são refundidos em pequenos ou grandes grupos religiosos ecléticos, imersos num mundo contemporâneo cada vez mais globalizado e a acompanhar constantes fluxos de ideias, sujeitos e produtos culturais por entre suas fronteiras. O ecletismo, e não sincretismo, das religiões ayahuasqueiras brasileiras, nestes termos, até certo ponto, enquadra-se nas concepções de Sanches (1991) e Sanchis (1995), uma vez que ainda hoje se permitem à influência de ideologias esotéricas e terapias paramédicas, para além das matrizes caboclas, indígenas, africanas, católicas e kardecistas, como será visto no próximo capítulo.

Capítulo 06

Da seringa ao chá. Uma história de Mestres, Soldados, Padrinhos e Penitentes na Amazônia brasileira

“Aqui, ao contrário do que se pode imaginar, a religião não é ‘ópio do povo’. Não. Aqui o ‘ópio é a religião do povo’. É esse ópio que lhe garante a sobrevivência e lhe traz saúde e é por ele mesmo que o povo continua

encontrando sentido para a sua vida fragmentada. Um ópio como este que proporciona a uma vez saúde e sentido para a existência só pode ser benéfico e só pode ser um presente divino” (AFRÂNIO DE ANDRADE,

1995, p.87). 6. A ayahuasca num mundo de seringueiros, beatos e curandeiros

Ao analisarmos as origens das religiões ayahuasqueiras em território amazônico brasileiro deparamos-nos com o papel crucial de alguns seringueiros nordestinos e seus descendentes caboclos107 na fundação de religiões inspiradas no uso não indígena desta bebida. Almeida (1992; 2002) nos revela a importância destes sujeitos, diaspóricos por natureza, que atuaram nos seringais e nas áreas urbanas amazônicas no inicio do século XX como milagreiros, rezadores e curadores. Profetas, beatos e penitentes “soldados da borracha” que deixaram suas terras na Região Nordeste rumo ao Sudoeste Amazônico, permanecendo nos seringais ou nas periferias das cidades de Rio Branco e Porto Velho.

Em situações insalubres, nas quais trabalhavam em regime de escravidão velada, alguns destes atores conseguiram extrair da Amazônia algo mais do que a seiva da seringueira, fundando sistemas religiosos renomados e demonstrando como sujeitos excluídos e marginalizados podem ser capazes de contribuir para a cultura religiosa nacional e, até certo ponto mundial, uma vez que determinadas doutrinas expandiram-se Amazônia afora, adquirindo outros contextos, leituras e reinterpretações culturais. Franco e Conceição (2002, pp.202-203) debruçam-se sobre os significados atribuídos ao enteógeno dentre grupos de seringueiros, sobretudo, àqueles situados na Reserva Extrativista do Alto Juruá, localizada no extremo Oeste do Estado do Acre. Uma área natural repleta de rios e floresta nativa com incidência de Hévea brasiliensis. Para os autores, pelo menos dentre os seringueiros do Juruá, a cultura ayahuasqueira aparece absorta numa aura de segredos revelados e transmitidos pela narrativa oral.

Na Amazônia brasileira até 1870 assistimos ocasionais investidas extrativistas destinadas à obtenção da baunilha, da salsaparrilha, do óleo de copaíba, do látex e demais produtos vegetais, utilizando-se de mão de obra indígena (constituída por povos de linguas Pano e Aruák), que “trocavam” seus trabalhos por presentes e mercadorias.

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Em contexto amazônico, o termo caboclo traz uma dupla conotação. Primeiramente ele foi utilizado para categorizar índios “mansos”, embora nos tempos atuais seja mais empregado pejorativamente para identificar os mestiços filhos dos primeiros seringueiros nordestinos.

Inicialmente estes grupos étnicos foram perseguidos para escravização do trabalho na seringa, pois no final do século XIX o mercado internacional tinha o Brasil como principal exportador gomífero, estimulando a abertura de muitos seringais, dentre eles, os localizados no Vale do Juruá. O primeiro barco a vapor conseguiu subir todo o rio Juruá apenas no ano de 1870, dando-se início ao desbravamento de outros territórios. O principal problema frente à exploração do látex era a mão de obra, ou seja, os seringueiros, dado que os povos indígenas não se deixaram escravizar sem resistência, havendo confrontos entre colonos e nativos. Nestes tempos acompanhamos incursões violentas seguidas por sanguinárias “correrias”, na tentativa de remover e dizimar populações étnicas inteiras, pois seus territórios estavam assentados em terras profícuas ao extrativismo. As populações não exauridas pelas correrias debandaram para outros territórios distantes, em terras peruvianas, onde não havia ocorrência de seringueiras. Muitos outros foram “absorvidos” pelo mercado da seringa, conquanto a mão de obra crucial tenha provindo de longínquas terras sertanejas do Nordeste brasileiro.

Do final do século XIX para o início do XX cerca de 50 mil seringueiros nordestinos foram recrutados pelo “exército da borracha”, ocupando inicialmente os seringais nas margens do Tejo, que já no ano de 1907 foi descrito como um flúmen densamente povoado. Deslocados de sua Região e isolados na Floresta Amazônica, os soldados da borracha ficaram reféns da subordinação aos patrões, que exerciam domínio comercial sobre a extração do látex; o que afetava a vida social dos seringueiros imersos num ciclo vicioso de exploração e monopólio comercial, tanto da seringa, quanto dos produtos básicos para sobrevivência e subsistência destes trabalhadores (WOLFF, 1999; FRANCO, 2001; ALMEIDA, 1992; 2002; OSMILDO; CONCEIÇÃO, 2002).

Em 1912 a exportação da borracha amazônica sofreu forte crise em virtude da concorrência estipulada por seringais orientais. Nesta e noutras crises inerentes ao Ciclo da Borracha, Almeida (1992; 2002), Osmildo e Conceição (2002) detectam a resistência dos seringueiros, que decidiram permanecer nos seringais, apesar da migração de vários outros para urbes mais próximas. Àqueles que ficaram estabeleceram estratégias para sobreviver, por intermédio da agricultura e do extrativismo local.

Durante todo o século XX, os seringais amazônicos continuaram ativos e ocupados pelos descendentes (caboclos) dos primeiros nordestinos alistados ao exército da borracha, que, nestas terras, constituíram famílias com mulheres indígenas, quase sempre, capturadas nos tempos das correrias. Em 1980 os seringais do Alto Juruá encontravam-se envoltos de territórios indígenas demarcados pelo Governo Federal - ao

longo da década de 1970 - fazendo com que índios e seringueiros convivessem na mesma “Reserva Extrativista do Alto Juruá”; uma vasta Área de Proteção Ambiental estabelecida no ano de 1990, em conformidade com lideranças indígenas e seringalistas. Uma vizinhança que parece não ser marcada apenas por conflitos históricos e territoriais, uma vez que as trocas culturais – características deste e de qualquer outro território em fricção interétnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978; 1979) - aparecem enquanto constantes, especialmente, no que tange à ciência do consumo da ayahuasca transmitida dos índios para os seringueiros; um hábito que, aliás, fortaleceu alianças, apaziguando uma série de conflitos emergentes entre seringueiros e povos indígenas.

Com a ayahuasca índios e seringueiros do Juruá, especialmente os últimos, ficaram “mais mansos” e conscientes das coisas da vida dentro daquele “inferno verde” chamado Amazônia. Após a consagração da substância nos seringais, o acesso às “realidades alternativas da vida” - nunca antes alcançadas por determinados sujeitos – foi essencial diante da elucidação e resolução dos problemas trazidos pela vivência cotidiana, onde os sujeitos viram-se na busca por aperfeiçoamento, passando pela limpeza do corpo (purgações), encontrando vários sentidos para suas vidas e adaptando- se melhor ao contexto da floresta, posto que eles afirmam que a ayahuasca passou a exigi-los um convívio pacífico e harmonioso entre vivos e não-vivos.

Um significado, na verdade divinal, que remete os sujeitos às coisas numinosas a permear o universo, sendo a ayahuasca – no contexto seringalista – um eficaz coordenador de noções, comportamentos, visões de mundo, éticas e práticas voltadas à vida ordinária, além do que, o chá também é considerado poderoso remédio para cura de moléstias, incluindo, no rol de suas benignidades, a limpeza orgânica e a transformação moral, já que, aqui, seus consumidores também narram casos de abandono de certos hábitos “inadequados”, como: a ingestão de bebidas alcoólicas, o uso de cigarros e o não envolvimento em festas e jogos promovidos nos seringais, pois tais eventos surgem como causadores de brigas e outros conflitos evitados pelo ayahuasqueiro seringueiro.