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5 ESTRANHAMENTO, ENTRANHAMENTO, DESENTRANHAMENTO

5.1 A BASE EPISTEMOLÓGICA

Existe correspondência e ligação entre o caos e a clareza. Esses dois lugares, para Michel Maffesoli (2010) – e para a perspectiva epistemológica que apoia esta pesquisa – encontram-se intimamente ligados.

A partir da noção introduzida pelo químico Ilya Prigogine142 (2002, p. 12), ganhador Nobel de Química em 1977, “o caos é sempre a consequência de fatores de instabilidade”. Para Prigogine, essa instabilidade produz novos aspectos essenciais, algo que ressignifica a própria noção de leis da natureza e sua descrição — ao passo que não é mais possível considerar uma descrição determinista e reversível do tempo, ligada anteriormente à ideia de natural, mas introduzir os conceitos de probabilidade e irreversibilidade.

A reconsideração do “caos” leva também a uma nova coerência, a uma ciência que não fala apenas de leis, mas também de eventos, a qual não está condenada a negar o surgimento do novo, que comportaria uma recusa da sua própria atividade criadora (PRIGOGINE, 2002, p. 8).

Falamos aqui da introdução da importância do papel do observador dentro da física quântica, porém sempre traçando um paralelo com o estudo da sociedade. Dentro da teoria do caos, explicada por Prigogine na sua relação com os campos da física e da matemática, é introduzida a ideia de que deve haver um “tempo comum” para a comunicação entre o homem e a natureza, para uma relação com as “leis da natureza”.

Quando efetuamos uma medição, devemos ter uma ideia do “antes” e do “depois”, e essa ideia deve corresponder ao desenvolvimento dos fenômenos que observamos. Eis aí uma exigência evidente no plano humano. Não poderíamos comunicar-nos com uma pessoa para a qual o nosso futuro fosse o seu passado e o seu futuro, o nosso passado (PRIGOGINE, 2002, p. 75).

Também na sociedade, o caos é elemento base da evolução. Está presente e é catalisador de novas atividades e resultados. O tempo em que se observa, e quem observa, são relevantes para o fenômeno. Mas o tempo é um conceito relativo, fabricado — uma ilusão, como determinou Albert Einstein. A nossa concepção de passado, presente e futuro, e a diferença entre esses tempos, é determinada por fenômenos e a partir de um ponto de vista subjetivo.

Na física e nas ciências sociais emergem processos irreversíveis, em que a noção de tempo importa. “A física do não-equilíbrio estuda os processos dissipativos, caracterizados por um tempo unidirecional, e, com isso, confere uma nova significação à irreversibilidade” (PRIGOGINE, 1996, p. 11). Dessa forma, surge a noção de que “a flecha do tempo” não é determinada por nós; não existe apenas a partir dos fenômenos. A vida na Terra, por exemplo, tem o fator tempo como determinante em sua criação.

A matéria é cega ao equilíbrio ali onde a flecha do tempo não se manifesta; mas quando esta se manifesta, longe do equilíbrio, a matéria começa a ver! Sem a coerência dos processos irreversíveis de não-equilíbrio, o aparecimento da Terra seria inconcebível. A tese de que a flecha do tempo é apenas fenomenológica torna-se absurda. Não somos nós que geramos a flecha do tempo. Muito pelo contrário, somos seus filhos (PRIGOGINE, 1996, p.11-12).

O caos, portanto, a instabilidade, é o estado natural. “A ciência clássica privilegiava a ordem, a estabilidade, ao passo que em todos os níveis de observação reconhecemos agora o papel primordial das flutuações e da instabilidade” (PRIGOGINE, 1996, p.12). Também nas ciências sociais é assim. Para o químico russo, assistimos ao nascimento de uma ciência que não mais se limita a situações dependentes das condições ideais de temperatura e pressão — como ouvimos com frequência na escola — mas que se coloca em consonância com a complexidade do mundo real (PRIGOGINE, 1996, p. 14): “...que permite que se viva a criatividade humana como a expressão singular de um traço fundamental comum a todos os níveis da natureza”. O caos e a instabilidade estão por toda parte.

Enquanto o caos realizado na dinâmica é, na verdade, um fenômeno inesperado (as equações de movimento são determinísticas, enquanto que seus resultados são aleatórios) pode-se igualmente supor que a instabilidade em sistemas sociais assim como as decisões não podem mais ser associadas a nenhuma regra determinística. Cada decisão implica na lembrança do passado e da antecipação do futuro (PRIGOGINE, 2001, p. 34).

Esta pesquisa parte do caos: a crise, a derrota, a queda ou, como descreve Ignacio Ramonet (2012), a explosão do jornalismo. Mas ela não apenas parte; ela se dá no caos, ela vive no caos. O contexto é o caos. Em 2017, quando começamos essa jornada, alguém que descrevesse esse presente de contagens de mortos às centenas diariamente, máscaras, álcool gel e confinamento seria chamado de louco. Quando os primeiros passos foram dados já se sabia

que a caminhada se daria em meio à construção da estrada: afinal, os modelos de negócio e as relações entre as plataformas de redes sociais, os jornais e os produtores de conteúdo estão em transformação. Entretanto, não antecipávamos este futuro, em que há perseguição à imprensa e à democracia no Brasil – e em outros países –, de recessão completa da economia, chamas na Amazônia e no Pantanal e eleições que serão feitas mais de um mês depois da data em que ocorrem tradicionalmente. Sabíamos que esta pesquisa se daria no caos, mas não neste caos.

Tampouco a clareza é o resultado final, pois não são opostos, mas pares. Jamais pensamos haver uma única resposta, ou a verdade. A clareza a que aqui nos propomos é trazida por um mergulho no caos, a partir de um olhar teórico que privilegia a pluralidade de visões (e vieses), a compreensão, o nadar junto — para que então possa emergir um caminho possível em meio a sempre-viva espiral do tempo.

Por isso, essa pesquisa pressupõe o entendimento de que o contexto importa. Entretanto, para que fosse possível colocá-la no papel, foi preciso buscar um equilíbrio na flecha do tempo, então, paramos de buscar mais e mais autores, mais e mais dados a respeito das transformações do jornalismo na época da pandemia, com pequenas e importantes exceções como o relatório do Reuters Institute de 2020 (NEWMAN et al., 2020) e acontecimentos que ilustravam questão que já haviam sido apuradas na pesquisa bibliográfica, como os avisos de desinformação colocados em publicações dos presidentes dos Estados Unidos e do Brasil, e algumas outras. Sabemos que a pandemia de Covid-19 teve influência nas crises do jornalismo. Entretanto, acreditamos que qualquer conclusão a respeito dos reais efeitos deste momento que vivemos no presente (ainda, durante a redação deste trabalho, estamos em meio à pandemia) só poderá ser elaborada com segurança no futuro. Por ora, alguns indícios aparecem, mas não nos concentraremos neles sob pena de sermos atropelados pelos fatos.

A partir de pesquisas bibliográfica e documental (GIL, 2008; STUMPF, 2008), esta pesquisa reflete acerca da atualidade através de três pilares principais: o que é e para que serve o jornalismo; o contexto atual; e as crises do jornalismo. Entendemos que tanto a crise do jornalismo, tema desta investigação, como o seu estudo ocorrem em constante troca com o ambiente. E para a realização de uma pesquisa é preciso entender o ambiente em que seu objeto está inserido. Também compreendemos e abraçamos a complexidade de lidar com um objeto em movimento e transformação. Quando se fala da atualidade, se fala sempre de um passo atrás, pois o retrato é sempre um congelamento nas condições naturais – ou possíveis – de temperatura e pressão.

Esta pesquisa é resultado de um olhar sobre um caos e uma clareza da crise do jornalismo na atualidade. E o uso do artigo indefinido aqui é proposital: são o caos e a clareza

possíveis de identificar a partir do sujeito que pesquisa e da lente que escolhemos utilizar. Aqui, essas lentes são a complexidade (MORIN, 2003; 2005) e a sociologia compreensiva, proposta por Max Weber – utilizada à luz de Michel Maffesoli (2010) e Juremir Machado da Silva (2012a; 2017; 2019) – e um apanhado de métodos e técnicas de pesquisa que organizam a investigação e permitem a análise dos resultados obtidos.

A sociologia compreensiva, sistematizada por Weber, propõe-se a compreender o par sujeito/objeto. Em lugar de demonstrar, mostra. Em vez de definir, proceder por “aproximações sucessivas” (Castoriadis). Compreender/ explicar, como defende Edgar Morin. Compreender a explicação; explicar a compreensão. Relativizar: pôr em relação. Relacionar (SILVA, 2012a, p. 74).

Em uma perspectiva compreensiva, é necessário pluralizar as visões, ainda que haja uma limitação imposta justamente pela condição humana de quem pesquisa.

É esta a nossa tarefa: levantar questões tão evidentes que chegam a ficar esquecidas. A tessitura do mundo é complexa e o texto, que a fórmula em palavras, não deve ser irrepreensível, perfeito; é que tal texto não faz mais do que atualizar, trazendo-os para o tempo presente, mitos que, bem ou mal, substanciam a vida em sociedade. Se a sociologia é a ideologia de nosso tempo, deve então ser parte do e se integrar ao mistério da existência. E isto sem esquecer que mistério é o que, na tradição antiga, unia uns aos outros todos os iniciados (MAFFESOLI, 2010, p. 78).

Na tentativa de contemplar essa proposta, a presente pesquisa recorre à visão de autores diversos, com abordagens diversas, a fim de fazer um apanhado circular em torno do assunto. O que há na história do jornalismo e o que o trouxe até aqui? E da perspectiva do imaginário do jornalismo? E o jornalismo digital enquanto conceito? O que é essa crise de que se fala? Em que contexto social ela se dá? O que mudou no entorno do jornalismo? Pintar esse quadro com tintas de diversas direções é o primeiro caminho.

Para cada objeto de análise, assinalamos diversos ângulos de ataque – o que parece bem próximo do contraditório operante na socialidade (...) Em todo caso, a reflexão sistêmica que tente descrever uma ordem complexa, bem como a interação que a anime, estrará no mínimo atenta a esta esteroscopia e aos paradoxos que venha a gerar (MAFFESOLI, 2010, p. 39).

Parte dessa lente também é formada pela ideia de Complexidade apresentada por Edgar Morin. Recorremos ao sociólogo e à sua ideia de “trabalhar pelo pensar bem” (2005, p.62-63). Aqui tomamos de empréstimo a compreensão de que se deve libertar o pensamento a partir de um olhar que religue, que seja multidisciplinar e que reconheça a pluralidade na unidade, e a unidade na pluralidade.

Produzimos a sociedade que nos produz. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que somos não só uma pequena parte de um todo, o todo social, mas que esse todo está no interior de nós próprios, ou seja, temos as regras sociais, a linguagem social, a cultura e as normas sociais em nosso interior. Segundo este princípio, não só a parte está no todo como o todo está na parte. (...) Esta concepção de pensamento dá-nos uma lição de prudência, de método e de modéstia (MORIN, 2003 p. 17).

E, ao olhar para a obra de Morin com relação à Complexidade como um todo, compreendemos a necessidade de observar a organicidade que caracteriza a relação sujeito-objeto — mas também como olhamos e o que refletimos a partir desse sujeito-objeto. É preciso ligar as partes ao todo, mas também é preciso reconhecer os limites de uma investigação, e desenhar seu universo de modo que seja representativo o bastante para a análise de um ponto proposto — mas não reducionista de modo a transformar o resultado dessa análise em suposta verdade absoluta.

O pensamento complexo conduz-nos a uma série de problemas fundamentais do destino humano, que depende, sobretudo, da nossa capacidade de compreender os nossos problemas essenciais, contextualizando-os, globalizando-os, interligando-os; e da nossa capacidade de enfrentar a incerteza e de encontrar os meios que nos permitam navegar num futuro incerto, erguendo ao alto a nossa coragem e a nossa esperança (MORIN, 2003 p. 23).

A jornada começa com um mergulho. Antes de ser um problema de pesquisa, este se apresenta como um problema de vida. O que inquieta o sujeito-pesquisador eventualmente se transforma em objeto do seu ofício. Aqui não é diferente. E o pesquisador que também é jornalista tem na curiosidade um modus operandi. Se os objetivos e métodos usados para cada ofício são diferentes, suas motivações são semelhantes: a busca por fontes, e o que pensam outros a respeito desse tema, está na natureza dessas duas atividades. Conforme descrito pelo também pesquisador e jornalista, orientador deste trabalho, Juremir Machado da Silva (2019), cobrir para descobrir, no caso do jornalismo; para desencobrir, no caso da pesquisa.

Propondo uma metodologia compreensiva e que abrange a complexidade Silva (2019) descreve os seguintes passos: estranhamento, entranhamento e desentranhamento. O estranhamento ocorre ainda antes do começo desta pesquisa: ler tudo – e com desconfiança. Ora, se há uma democracia, para que ela funcione é preciso ter pessoas informadas, e quem informa é o jornalista. Logo, como pode existir uma crise e que crise é essa? Mas antes de um entranhamento no objeto, convém entender de que modo esse objeto precisa ser analisado: como encarar as perguntas que emergem desse estranhamento? O como é fundamental.

O referencial teórico é uma lente. Se o pesquisador já a usa antes de olhar o objeto e a considera perfeita, sua tendência será enxergar tudo do mesmo modo ou olhar com o mesmo grau de miopia. O referencial teórico é um olhar tomado de empréstimo. (SILVA, 2019, p. 34)

É crucial o olhar que se toma de empréstimo para buscar uma possível compreensão da crise do jornalismo. Do ponto de vista da técnica, ele sofreu transformações; do ponto de vista econômico, ainda muitas mais. Pelo viés da produção, sob o olhar do jornalista, o jornalismo pode parecer mais fundamental do que de fato é, ou emergir de um modo autoritário; pelo viés da recepção, pode ser percebido de modo a já ter sido extinto – ou nem estar em crise.

Esse objeto pede um olhar que abarque diversas possibilidades de visão, sem sobrepô-las ou isolá-las.

O patchwork reflexivo não é a pior maneira de compreendermos uma sociedade específica; e os espíritos livres, que tentam pôr fim ao enclausuramento das disciplinas e das definições, reconhecem que a fluência da análise, a multiplicidade das referências e das fontes de inspiração correspondem adequadamente ao fluxo vital que buscamos compreender (MAFFESOLI, 2010, p. 210).

Para isso, buscamos autores que falem de cada um desses pontos: o jornalismo em si, sua crise, e dos objetos que emergiram desse primeiro entranhamento. Na questão histórica, sem a pretensão de recontar algo já imensamente explorado, foram consultados autores que trazem uma perspectiva da trajetória do jornalismo a partir da sua função social. Acreditamos que isso é fundamental para o entendimento do que se espera dessa instituição. Portanto, o primeiro capítulo de contexto deste relatório de pesquisa apresenta uma série de aproximações acerca da função do jornalismo: ao longo da história; em sua relação com a democracia; com os profissionais desta área; no Brasil e no ambiente digital, escolhido para esta exploração.

Em consonância com a nossa base epistemológica, conforme já apresentado, o contexto é importante para esta pesquisa e, por isso, o nosso segundo capítulo teórico trouxe um retrato do momento pós-moderno de crise em diversos aspectos da vida em sociedade. A nossa intenção foi pintar o quadro da tempestade perfeita em que o jornalismo se insere. Para isso, foram selecionados autores de diferentes áreas do conhecimento que pudessem trazer perspectivas e explicar a instabilidade do momento que vivemos. Não obstante, toda a questão proposta nesta pesquisa está relacionada com a sociedade em que ocorre, com o zeitgeist. Descrevê-lo em sua relação com esses objetos é crucial para um entendimento acerca dessas crises – que nascem em parte do anacronismo do jornalismo atual – e, para tal, também foi preciso um trabalho de base bibliográfica.

Do ponto de vista da crise do jornalismo, o desafio era maior: como dar conta de um objeto tão atual e em constante evolução? Emergindo desde muito antes do começo da digitalização da comunicação, a situação em curso hoje carrega consigo novos elementos. Há mais do que uma crise econômica: há uma crise existencial. Buscamos, portanto, autores que trouxessem o contexto em que essa crise se dá e a sua relação com o momento atual da sociedade. Nesse mergulho, encontramos que a crise, na verdade, é diversa, é plural e no plural deve ser denominada: crises. Optamos por guiar-nos pela proposta de Todd Gitlin (2011) para cinco crises do jornalismo e, com base em pesquisas bibliográfica e documental (GIL, 2008; STUMPF, 2008), trouxemos novas perspectivas e novas crises, além do olhar sobre o Brasil.

A investigação bibliográfica e documental monta o alicerce para que se possa relacionar esses objetos e seus contextos. É a partir da conversa entre diversos autores que se compreende por onde e de que modo o debate e a reflexão podem avançar.