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4 CRISE NÃO. CRISES

4.3 CRISE DE AUTORIDADE (CONFIANÇA E CREDIBILIDADE)

O jornalismo também é uma forma de produção de conhecimento (EKSTRÖM, 2002; GOLDMAN, 2008; CARLSON, 2020). Entretanto, esse conhecimento se perde se não houver confiança naquilo que se está vendo.

Para a aquisição de conhecimento ocorrer, não é suficiente que haja uma imprensa livre que publique ou transmita verdades relevantes. É igualmente crítico que membros do público recebam e acreditem nessas verdades. Se verdades são publicadas, mas não lidas, ou publicadas e lidas, mas não se acredita nelas, o público não possuirá a informação (ou o conhecimento) que é importante para tomar decisões corretas (GOLDMAN, 2008, p.113, tradução nossa107).

Em 2009, Todd Gitlin já atentava ao fato de que a questão da autoridade é algo que está em tensão há muito tempo no jornalismo. O autor acredita que a decadência da perseguição por objetividade no jornalismo trouxe consigo uma falta de confiança generalizada.

106 “Information overload”. Tradução nossa.

107 “For the acquisition of knowledge to occur, it isn’t sufficient that there be a free press that publishes or broadcasts the relevant truths. It is equally critical that members of the public receive and believe those truths. If truths are published but not read, or published and read but not believed, the public won’t possess the

A crise de legitimidade do jornalismo tem duas fontes que se sobrepõem: desafeto ideológico da direita e da esquerda, e desconfiança generalizada. Somadas, elas demonstram parte de uma grande mudança cultural (GITLIN, 2011, posição 2184, tradução nossa108).

A dificuldade de se enxergar uma diferença entre os profissionais e os amadores é também apontado por Ramonet (2012) como uma grande causa do que ele chama de explosão do jornalismo.

É cada vez mais difícil distinguir um comunicador de um jornalista. No entanto, suas funções são muito diferentes: um valoriza, enquanto o outro informa. Novas especializações híbridas surgem: "jornalismo institucional", "jornalismo de empresa", "jornalismo de relações públicas". Uma questão se coloca: um jornalista pago por uma empresa, cujos artigos – todos favoráveis à ação da empresa que o emprega – são relidos e validados pelos dirigentes desta, é um verdadeiro jornalista? Uma tal mistura de gêneros degrada a confiança do público e provoca um sério golpe na credibilidade do conjunto da informação (RAMONET, 2012, p. 44).

Entretanto, para Matt Carlson (2017; 2020), a autoridade jornalística, algo fundamental para que esse campo exista e faça sentido, é algo mais complexo. Profundamente dependente do contexto cultural, do tempo e do espaço, não deve ser encarada como algo certo, mas como algo em constante construção e desconstrução “formado através das interações entre todos os atores necessários para a existência do jornalismo” (CARLSON, 2017, p. 7, tradução nossa109). O autor (2017, p. 8-12) descreve autoridade como algo dependente de cindo premissas: uma posição dada pelo sistema que faz com que aquele sujeito seja ouvido; a autoridade é uma questão de relacionamento assimétrico entre aquele que fala e aquele que o reconhece como autoridade; a autoridade é performada através do discurso; ser uma autoridade envolve um controle institucional sobre um conhecimento; e a autoridade está sempre aberta a contestação e mudança.

[...] autoridade jornalística é algo dependente de um relacionamento em que certos atores vêm a possuir o direito de produzir um conhecimento discursivo legítimo sobre eventos no mundo para outras pessoas. Da maneira mais simples, autoridade não coerciva é um direito de ser ouvido. Essa definição acentua a conexão entre três elementos necessários: atores que criam conhecimento, a forma discursiva desse conhecimento, e os relacionamentos através dos quais o conhecimento é criado e circulado. Esses elementos jogam luz sobre quão inter-relativa é a autoridade jornalística (CARLSON, 2017, p. 182-183, tradução nossa110)

108 “Journalism’s legitimacy crisis has two overlapping sources: ideological disaffection from right and left, and generalized distrust. Between them, they register something of a cultural sea change.”

109 “The argument I put forward holds that journalistic authority can be understood relationally onlie as na understanding formed through the interactions among all the actors necessary for journalism to exist.”

110 “[...]journalistic authority is a contingent relationship in which certain actors come to possess a right to create legitimate discursive knowledge about events in the world for others. In the simplest sense, noncoercive authority is a right to be listened to. This definition accentuates the connection among three necessary elements: actors who create knowledge, the discursive shape of this knowledge, and the relationships through which knowledge is created and circulated. These elements illuminate the interrelatedness of journalistic authority.”

Desse modo, de acordo com Carlson (2017), é possível enxergar os elementos que compõem, de modo inter-relacionado, essa autoridade jornalística. O primeiro deles seria uma

identidade comum de grupo, que coloca os jornalistas como atores avalizados pelo sistema a

terem legitimidade de fala. O segundo, o texto jornalístico, que carrega consigo elementos de validação da mensagem frente a sociedade – aqui entram desde questões como a objetividade jornalística, a regra de ouvir os dois lados, a organização do lide de uma matéria e mesmo o uso da fala de especialistas identificados. Outro elemento, de acordo com o autor, é o metadiscurso, a forma como jornalistas falam a respeito de si e da profissão. Conforme vimos, a autoridade é uma questão composta através do relacionamento entre o jornalista e outros atores que compõem o ecossistema em que o jornalismo existe. Portanto, essa autoridade é legitimada através da relação do jornalista com a audiência, com suas fontes, com a tecnologia e com a própria crítica aos profissionais e à profissão.

Ao falar de crise de autoridade no jornalismo, usando a perspectiva de Carlson (2017), podemos observar como cada um desses elementos carrega consigo um ponto de tensão na atualidade. A noção de “quem pode ser chamado de jornalista”, como vimos na citação de Ramonet (2012) acima, está tensionada por uma grande transformação nas posições de criação e consumo de conteúdo, estressada no capítulo anterior. Ora de função massiva, ora de função pós-massiva, as mídias permitem que aqueles que eram conhecidos como audiência111 hoje sejam criadores de conteúdo, tirando o monopólio da emissão da mão dos jornalistas. Quem se reconhece como jornalista e quem a sociedade reconhece como jornalista? Especialmente no Brasil, essa é uma questão confusa.

Em meio ao ambiente de desordem informacional (WARDLE, 2017), também já citado, o uso da forma narrativa do jornalismo como legitimação de informações falsas é corriqueiro e convive nas mesmas plataformas, nas mesmas linhas do tempo, do jornalismo de

verdade. Quando coisas muito parecidas, que usam as mesmas formas narrativas, os mesmos

layouts, são ditas como uma verdadeira e a outra falsa, sem o público ter o real entendimento da diferença entre as duas, isso contribui para um tensionamento também na forma narrativa jornalística como elemento construtivo da autoridade jornalística. Ainda, os ataques constantes sofridos pelo jornalismo e pelos jornalistas, feitos por membros de governos, partidos políticos e militâncias digitais, contribuem para um ambiente de crise. O mesmo ocorre com a precarização da profissão e a incerteza generalizada – assuntos que trataremos com mais detalhe

111 Expressão para denominar o público que, além de receptor, para a ser também produtor de conteúdo. Escrita e popularizada por Jay Rosen, do Instituto Arthur L. Carter de Jornalismo da Universidade de Nova York

adiante. Todos esses pontos críticos atravessam também os relacionamentos entre a imprensa, os jornalistas e os já citados atores que fazem parte desse ecossistema das notícias.

E a situação atual, como apontou de modo mais pontual Gitlin em 2009, é de crise de autoridade, que muitas vezes é externada como uma crise de credibilidade, algo também muito caro ao jornalismo. Por mais que essas duas palavras sejam por vezes usadas como sinônimos, aqui cabe uma diferenciação que buscamos em Carlson (2017, p. 186, tradução nossa112):

Pesquisas indicam uma preocupação crescente do público a respeito da performance de organizações noticiosas (juntamente com outras instituições). Como externar demonstrações de ceticismo acerca das notícias se tornou normal, é importante diferenciar credibilidade de autoridade. A primeira indica uma estimativa local geralmente atrelada a atores específicos do universo das notícias, enquanto a última abrange uma formação cultural mais profunda. Por mais complicada que seja a relação de autoridade entre jornalista e audiência, esse permanece o relacionamento central no qual o reconhecimento de autoridade jornalística é construído.

Com essa diferenciação como norte, acreditamos que haja tanto uma crise na autoridade jornalística – de modo mais abrangente, conforme descrito acima, como na credibilidade da classe jornalística. Segundo o relatório de pesquisa do Reuters Institute de 2019 (NEWMAN et al., 2019, p.10), o nível de confiança nas notícias já tinha caído dois pontos percentuais em relação a 2018 e estava em 42%. Em 2020 (NEWMAN et al., 2020, p.15), o índice caiu ainda mais quatro pontos, chegando a 38%. Menos da metade das pessoas dizem confiar nos veículos que consomem (46%, três pontos a menos que em 2019). Há países em que o nível de confiança na imprensa é ainda mais baixo, como na França, onde chegou a apenas 24% em 2019. As plataformas, locais que originam mais acessos a notícias digitais, carregam consigo um baixíssimo nível de confiança: apenas 32% das pessoas acreditam nas notícias que encontram via mecanismos de busca (como o Google e o Bing, por exemplo) e apenas 22% naquelas que veem nas redes sociais. Ambos os índices caíram um ponto percentual na comparação com 2019.

No Brasil, a situação da confiança na imprensa é a quinta maior entre os países pesquisados, ainda que fique em 51% (NEWMAN et al. 2020, p. 90). Em 2019 (NEWMAN et al. 2019, p. 123), o índice ficou em 49%, 11 pontos percentuais menos que no ano anterior. A preocupação com conseguir distinguir o que é real e o que é falso na internet é a maior de todos

112 “Surveys indicate a public increasingly wary of the performance of news organizations (along with other public institutions). As outward displays of skepticism toward news have become the norm, it is importante to differenciate credibility from authority. The former indicates a local assessment often tied to specific news actors, whereas the later encompasses a deeper cultural formation. However complicated the journalist-audience authority relation may be, it remains the central relationship on which the recognition of journalistic authority is built”

os países pesquisados: são 84% dos entrevistados (NEWMAN et al. 2020, p. 19), bem acima da média mundial, de 56%.

Um velho ditado dizia que não basta que a mulher de César seja honesta. Ela tem que parecer honesta. O senso comum aplica o ditado ao jornalismo à medida que alimenta expectativas de que vá encontrar nele verdades cotidianas, informações confiáveis e elementos que permitam tomar decisões. Um ambiente encharcado de falsidades e manipulações nubla a imagem do jornalismo como um porto seguro no oceano que nos inunda de notícias todos os dias (CHRISTOFOLETTI, 2019, posição 723).

Também observamos a crise ao analisar a proposta de Silvia Lisboa e Marcia Benetti (Lisboa & Benetti, 2017, p. 58) de credibilidade construída e credibilidade percebida com relação ao jornalista. A primeira, “diz respeito ao perfil do enunciador (jornalista, veículo jornalístico ou o próprio jornalismo) e do quanto ele se aproxima das dimensões ideais e socialmente reconhecidas sobre o que torna um enunciador digno de confiança”. A segunda, se dá através da avaliação do leitor, como ele enxerga o jornalista e o seu veículo”. Desse modo, a credibilidade do jornalista seria uma soma entre elementos pré-existentes, que não dizem respeito a cada reportagem e mensagem emitida pelo jornalista, mas sim referem reportagens e mensagens anteriores suas e do veículo no qual esse profissional trabalha. Também entra aqui a questão de ambiente onde a mensagem está inserida (o meio de transmissão). Por outro lado, a credibilidade é também variável à subjetividade de cada receptor da informação jornalística e sua experiência com os referidos jornalista e veículo. De acordo com os argumentos trazidos acima, tanto a credibilidade construída quanto a percebida se encontram em xeque.

Algumas iniciativas buscam resgatar essa credibilidade do jornalismo. Uma das mais conhecidas internacionalmente é o Trust Project (Projeto Credibilidade):

The Trust Project desenvolve padrões de transparência que ajudam as pessoas a avaliar a qualidade e a credibilidade do jornalismo. Esses padrões são adotados por veículos noticiosos através de um consórcio internacional liderado pela premiada jornalista Sally Lehrman (QUEM SOMOS..., [2020?]).

O chamado “capítulo brasileiro” do projeto é realizado através de uma parceria entre o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) e o Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), sob coordenação dos jornalistas Francisco Rolfsen Belda, presidente do Projor e docente da Unesp, e Angela Pimenta, diretora de operações do Projor. O Projeto Credibilidade oferece diretrizes de transparência para que os veículos vejam crescer sua credibilidade frente ao público, incluindo um Manual da Credibilidade e um sistema de indicadores de credibilidade. Vários grandes veículos brasileiros participam da iniciativa, como Folha de S. Paulo, Nexo Jornal, Poder 360, Agência Lupa, entre outros.