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Se pudéssemos reduzir o jornalismo a sua partícula elementar, seria ela um produto ou um serviço? Por um lado, desde sua concepção – ou um pouco depois, como veremos –, essa atividade é frequentemente reivindicada como parte indissociável do processo democrático. Exercê-la seria prestar um serviço à população; uma atividade com vocação social. Por outro lado, se olharmos para as sociedades democráticas, o jornalismo é exercido, via de regra, por empresas particulares — que visam lucro. É o produto que elas vendem: tem, portanto, uma vocação econômica. Alguns vendem máquinas de lavar, outros, máquinas de informar. Existe o pensamento de que um jornalismo subsidiado pelo Estado perderia objetividade e legitimidade para criticar os ocupantes do governo. Em contrapartida, um jornalismo bancado por um elemento chave do capitalismo, que é a publicidade de produtos, e que tem como objetivo o enriquecimento de seus proprietários tem liberdade – ou moral – para criticar o capital? Ou a elite? E o que ocorre com o jornalismo quando ele deixa de ser fundamental para que esses produtos cheguem a seu público?

O jornalismo se situa em algum lugar considerando essa tripla função de ferramenta: a que fiscaliza o governo e informa a população; a que divulga produtos e estilos de vida que geram necessidades culturais e de consumo; e a que fornece o sustento – e o enriquecimento – dos empresários que investem nesse ramo. É esse lugar que exploramos, em

uma tentativa de abordá-lo de modo multidisciplinar, cercá-lo, em consonância com a ideia de uma sociologia compreensiva e que abre espaço para o orgânico e para o complexo. Ora o jornalismo é produto, ora é pilar da democracia; ora informa, ora entretém. E esses papeis formam a tensão central deste trabalho.

Nesta seção, se por um lado não procuramos estudar a fundo a democracia em si — pois não é o foco desta investigação —, por outro parece necessário tentar identificar em que lugar da história da democracia ela encontra o jornalismo – e por que a democracia moderna (falaremos da pós-moderna no próximo capítulo) se diz tão frágil sem o jornalismo como pilar.

Essa missão democrática não é apenas uma ideia moderna. O conceito de criar autonomia está em toda grande proposição e debate sobre a imprensa há séculos, não apenas vindo de jornalistas, mas também dos revolucionários que lutaram por princípios democráticos, tanto nos Estados Unidos como em praticamente todas as democracias que se desenvolveram desde então (KOVACH; ROSENSTIEL, 2014, p. 21, tradução nossa35).

Para quem correlaciona jornalismo e sociedades democráticas, essa atividade só surge verdadeiramente, como é entendida hoje em dia, no século XIX. O desenvolvimento de uma real mídia de massa, a partir da sua reprodução em larga escala, marca o que se convenciona chamar de imprensa — e, para Nelson Traquina (2005), o jornalismo. Para o autor (2005, p. 34), a mudança ocorreu quando o fornecimento de informação virou o foco dos jornais, ao invés da distribuição de propaganda (política, ideológica):

Este novo paradigma será a luz que viu nascer valores que ainda hoje são identificados com o jornalismo: a notícia, a procura da verdade, a independência, a objetividade, e uma noção de serviço ao público – uma constelação de ideias que dá forma a uma nova visão do “pólo intelectual” do campo jornalístico.

O ponto em que essa ferramenta se tornou fundamental para fiscalizar o poder público, manter viva a democracia, e estabelecer um fluxo de cultura comum nos territórios que cada veículo abrange.

Uma visão mais global da história do jornalismo na democracia aponta para três vertentes fundamentais do seu desenvolvimento: 1) a sua expansão, que começou no século XIX com a expansão da imprensa, e explodiu no século XX com a expansão de novos meios de comunicação social, como o rádio e a televisão, e abre novas fronteiras com o jornalismo on-line; 2) a sua comercialização, que teve verdadeiramente início no século XIX com a emergência de uma nova mercadoria, a informação, ou melhor dito, a notícia; 3) concomitantemente, o pólo econômico do campo jornalístico está em face da emergência do pólo intelectual com a profissionalização dos jornalistas e uma consequente definição das notícias em função de valores e normas que apontam para o papel social da informação numa democracia (TRAQUINA, 2005, p. 33).

35 “This democratic mission is not just a modern idea. The concepto f creating sovereignty has run through every major statement and argument about the press for centuries, not only from journalists but also from the

revolutionaries who fought for democratic principles, both in America and in virtually every developing democracy since.”

Em sociedades democráticas, os veículos de comunicação desenvolveram-se como empresas privadas — que, por definição, têm na notícia seu principal produto e, até pouco tempo, na publicidade seu principal financiador, conforme a visão de Traquina (2005, p. 36):

A emergência do jornalismo com os seus próprios "padrões de performance e integridade moral" tornou-se possível com a crescente independência econômica dos jornais em relação aos subsídios políticos, método dominante de financiamento da imprensa no início do século XIX. As novas formas de financiamento da imprensa, as receitas da publicidade e dos crescentes rendimentos das vendas dos jornais, permitiram a despolitização da imprensa, passo fundamental na instalação do novo paradigma do jornalismo: o jornalismo como informação e não como propaganda, isto é, um jornalismo que privilegia os fatos e não a opinião.

Concomitante ao avanço tecnológico (prensa, telégrafos, melhores condições de transporte), houve também a qualificação do público leitor. Traquina aponta que a taxa de analfabetismo caiu vertiginosamente nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, o que contribuiu para o sucesso também comercial dos jornais; enquanto negócio, ele florescia. Outros fatores-chave foram a urbanização e as conquistas de direitos sociais e liberdade de expressão — sempre lembrando que esse é o ponto de vista da Europa e da América do Norte. A própria luta pela democracia data dessa mesma época, impulsionada por uma nova fatia da população, que tem poder econômico e quer transformá-lo em poder político:

Durante os séculos XVII e XVIII, uma nova classe, a burguesia, iria denegrir as estruturas políticas da sociedade autocrática e o seu monopólio do poder político, enquanto começa a emergir, na terminologia de Jurgen Habermas (1989), um “espaço público” com os cafés em cidades como Londres e Paris” (TRAQUINA, 2005, p. 43).

O avanço da relevância do jornalismo para a democracia corre ao longo do século seguinte em todo o Ocidente. Isso também ocorre pelo papel econômico do jornalismo, que se tornou um grande negócio — a ponto de ser responsável pela fortuna e grande influência de seus empresários. De acordo com Traquina (2005), os governos viam jornalistas como revolucionários e possíveis conspiradores, e a alcunha de quarto poder foi dada por um deputado do Parlamento Inglês, chamado McCaulay, ao apontar para a galeria onde ficavam os jornalistas. O crescimento da influência das grandes empresas jornalísticas trouxe o mito do quarto poder, ainda no século XIX.

No ano de 1828, ainda sobre a influência da Revolução Francesa, quando McCaulay se referiu-se [sic] ao “quarto” état (o termo francês para estate) ou “poder”, tinha como quadro de referência os três états da Revolução Francesa: o clero, a nobreza e o troisième état, que engloba os burgueses e o povo. No novo enquadramento da democracia, com o princípio de “poder controla poder” (power checks power) a imprensa (os media) seria o “quarto” poder em relação aos outros três: o poder executivo, o legislativo e o judicial (TRAQUINA, 2005, p. 46).

Hoje, com o uso cada vez maior da internet, e sua lógica enquanto rede descentralizada de produção e consumo de informação, esse quarto poder perde força, e um novo surge.

Se a imprensa “industrial” ou profissional do século XX constituiu um quarto poder, e o novo sistema aberto de cidadãos como produtores e testemunhas agora constitui um quinto poder, é importante reconhecer que esse novo grupo também inclui as instituições e os atores que o jornalismo costumava cobrir – os produtores de notícias que querem influenciar o público com propósito político ou comercial (KOVACH; ROSENSTIEL, 2014, p.10, tradução nossa36).

Esse novo sistema destaca o jornalismo de seu público, e o eleva ao status de integrante de uma grande intelectualidade responsável por propor os assuntos e discursos que percorrerão público – a chamada opinião pública, ideia difundida desde os séculos XVII e XVIII.

Sob essa ótica, o jornalismo – e os meios de comunicação como um todo – tem sido usado como ferramenta que pauta as discussões em sociedade; e é esperado dele que o faça.

Voltando à leitura realizada por Traquina, é no utilitarismo inglês – em especial na figura de Jeremy Bentham – que se percebe a opinião pública enquanto parte importante do Estado democrático, e a imprensa, como o local em que essa opinião se manifesta, ao mesmo tempo que se nutre (TRAQUINA, 2005, p. 47): “Os jornais eram vistos como um meio de exprimir as queixas e injustiças individuais e como uma forma de assegurar a proteção contra a tirania insensível”. O autor ainda cita pensadores que tratam da tensa relação entre governos e jornalistas, tais como Boyce (1978), Mill (1821), O’Boyle (1968) e Tocqueville (1855).

Os jornalistas são com frequência descritos como parte da intelectualidade de uma sociedade. O filósofo italiano Antonio Gramsci (1891 – 1937)37 tinha a visão de que a cultura hegemônica se espalha e exerce seu poder através dos aparelhos ideológicos do chamado Estado ampliado. Esses conceitos são amplamente debatidos nos Cadernos do Cárcere, uma série de 29 volumes escritos pelo pensador durante o período em que esteve preso, entre 1926 e 1937 (e cujo começo da redação se dá em 1929) sob o regime Mussolini. As classes intelectuais, a imprensa e as artes são exemplos desses aparelhos, que servem tanto para disseminar as ideias de uma classe hegemônica, como também para germinar ideologias contrárias, tornando possível a luta da contra-hegemonia. De um lado ou outro, estes são, na visão de Gramsci, terrenos importantes e que devem ser estudados quando se fala em sociedade, esfera pública e

36 “If the “industrial” or professional press of the twentieth century constituted a fourth estate, and the new open system of citizens as producers and witnesses now constitutes a fifth estate, it is importante to recognize that this new group also includes the institutions and actors journalists once covered-newsmakers who want to influence the public for comercial and political purpose.”

37 Filósofo italiano cujo legado mais conhecido se encontra nos Cadernos do Cárcere. Em resumo, para efeito do conceito de jornalismo moderno aqui proposto, trabalha a ideia de que as ideologias em uma sociedade se espalham através do que chamava de aparelhos ideológicos do Estado ampliado – classes intelectuais, imprensa, cultura, políticos e outros – e é com a tomada desses aparelhos que se busca consenso ou se faz a luta contra-hegemônica. Os intelectuais tradicionais seriam aqueles líderes estabelecidos de uma sociedade – no exemplo aqui, os jornalistas –, e os orgânicos emergiriam de uma classe subalterna naturalmente, representando seus iguais e os representando (COUTINHO, 2011).

a noção de Estado. Pegando de empréstimo essa definição, através de Carlos Nelson Coutinho (2011, p. 208):

Os intelectuais são "prepostos" do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso "espontâneo" dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social consenso que nasce "historicamente" do prestígio (e, portanto, da confiança) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparelho de coerção estatal que assegura "legalmente" a disciplina dos grupos que não "consentem", nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais desaparece o consenso instantâneo.

Para Gramsci, os intelectuais são, portanto, peças-chave nas relações entre Estado e população, entre dominantes e dominados. Esse grupo estaria dividido em duas classes principais: os tradicionais e os orgânicos. Os primeiros seriam a classe intelectual clássica, formada através de estruturas clássicas de ensino, vindos da burguesia, da classe eclesiástica, formalmente educados e pretensamente descolados da população. Esse grupo se acredita independente do Estado e de sua ideologia. Já os intelectuais orgânicos emergem das próprias classes subalternas. São vistos como iguais pela população e contam com certa legitimação por conta disso. São especializados em um determinado aspecto – se um intelectual orgânico surge na forma de um líder sindical metalúrgico, por exemplo, ele sabe e representa as questões do seu grupo específico, da classe que representa.

Uma das características mais marcantes de todo grupo que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista "ideológica" dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão for capaz de elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos (COUTINHO, 2011, p. 206).

Mas qual dessas classes tem mais efeito na sociedade pós-moderna – cujas características principais trabalharemos no próximo capítulo –, com suas redes sociais e seu trânsito de informação baseado em sujeitos influenciadores individuais e desinstitucionalizados?

A partir do momento que conhecemos as características de um agente influenciador dentro das redes sociais na internet, podemos identificá-lo e entender como se dá a disseminação de ideias e informações dentro desses grupos de nativos digitais. É importante ressaltar que esse modo de comunicação pode não ser novo. Temos como exemplo – que Maffesoli já compara com a sociedade pós-moderna – as tribos, ou mesmo a sociedade pré-industrial, onde um elemento ganha o status de porta-voz das informações relevantes de todos. Ter esse poder sempre foi importante. A diferença é que hoje, por conta dessas redes na internet, esses indivíduos com o poder de espalhar informações também estão conectados entre si, e isso catalisa a disseminação (VASCONCELLOS, 2014, p. 112).

Partindo dessa definição de intelectuais, o jornalista seria um intelectual tradicional ou orgânico? E, dentro do contexto contemporâneo, seria o jornalista um intelectual tradicional vivendo em um mundo que só devota atenção a seus (pretensos) intelectuais orgânicos, eleitos

e desfeitos dia após dia nas redes sociais? E que consequências o exercício do seu papel tem para o jornalismo nesse contexto de influências e influenciadores? Que lugar da sociedade pós-moderno é reservado para o jornalismo?

Pode-se observar que no mundo moderno, em muitos países, os partidos orgânicos e fundamentais, por necessidade de luta ou por alguma outra razão, dividiram-se em frações, cada uma das quais assume nome de partido e, inclusive, de partido independente. Por isso, muitas vezes, o estado-maior intelectual do partido orgânico não pertence a nenhuma dessas frações, mas opera como se fosse uma força dirigente em si mesma, superior aos partidos e às vezes reconhecida como tal pelo público. Esta função pode ser estudada com maior precisão se partimos do ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista (ou um grupo de revistas) são também "partidos", "frações de partido" ou "funções de determinados partidos". Veja-se a função do Times na Inglaterra, a que teve o Corriere della Sera na Itália, e também a função da chamada "imprensa de informação", supostamente "apolítica", e até a função da imprensa esportiva e da imprensa técnica ([entre 1929 e 1935] GRAMSCI apud COUTINHO, 2011 p. 302).

Retornando à linha histórica, ainda estamos no meio do século XIX. Traquina (2005) aponta novamente para a questão que estamos trabalhando desde o início deste capítulo: jornalismo é produto ou serviço? Segundo o autor, a relação entre democracia e jornalismo pedia que a atividade cumprisse um duplo papel: vigiar o poder e fornecer aos cidadãos as informações necessárias para o exercício da vida cívica; e ser um importante negócio para quem investia no mercado das notícias. A chamada penny press, jornais baratos e produzidos em larga escala, incrementa seu alcance em números absolutos de público, mas também – como demonstrado anteriormente – esmaece as cores políticas dos textos, já que precisavam ampliar a circulação. Traquina (2005) chama essa fase de novo jornalismo. Para o autor, os fatos, a partir desse momento, são sagrados. Uma visão positivista do jornalismo — como sua época.

As notícias tornam-se mais orientadas para o acontecimento, o que não é dizer que o anterior jornalismo não noticiava acontecimentos; mas o conteúdo dominante dos jornais começou a concentrar-se em acontecimentos, por oposição a opiniões políticas (TRAQUINA, 2005, p. 54).

A partir daí se desenvolve, cada vez mais, o papel do jornalista; e se consolida a posição do jornalismo nas sociedades. A questão da liberdade, com a emergência de novos sistemas de governo, foi fundamental para o exercício do papel de watchdog, que caracteriza o jornalismo dos séculos XX e XXI. O aquecimento do mercado, e o aumento do número de pessoas que se dedicavam exclusivamente ao jornalismo, consolidaram o papel da profissão e a elaboração de um campo38 estabelecido.

2.6.1 Parresía, democracia e jornalismo

No início da década de 1980, em cursos ministrados no Collège de France, Michel Foucault apresenta um panorama de diversos conceitos, entre eles um em particular que a nós, que olhamos para a trajetória histórica da democracia em sua relação com o jornalismo, parece muito relevante: a parresía. Ainda que uma vasta teia de conceitos emerja da noção de parresía, aqui nos concentraremos em falar de sua dimensão e abrangência para a formação do conceito de democracia.

Para ilustrar melhor esse conceito, escolhemos a aula em que Foucault (2010) fala sobre a relação entre o conceito de parresía e a democracia, a partir de um texto de Políbio. O professor explica aos alunos que a descrição de Políbio acerca da democracia ateniense trazia duas ideias, semelhantes e elementares, que exploraria durante aquela lição: isegoria e parresía. Ambos falam da palavra, e da liberdade de opinião e de fala — questões apropriadas quando focamos a relação entre o jornalismo e a democracia.

Antes de explorar propriamente isegoria e parresía, Foucault (2010) ressalta que, ainda que a morfologia da palavra democracia, em Platão e Aristóteles, traga uma definição relativamente elementar dessa forma de pensar a organização social — baseada no conjunto de cidadãos — e que seja relativamente simples diferenciá-la em comparação a monarquia, aristocracia ou oligarquia, qualificá-la propriamente tem cores muito mais complexas. Foucault traz conceitos essenciais que formam a democracia a partir dos textos fundadores gregos, como as noções de liberdade – da nação (ou cidade), e do cidadão – (eleutéria); do nómos, a forma, a constituição, a lei como base; e a isonomia, em que todos os cidadãos são considerados iguais perante a lei.

Além disso, outra característica [da democracia] que se invoca é essa isegoria, isto é, no sentido etimológico do termo: a igualdade de palavra, isto é, a possibilidade para todo indivíduo – contanto, é claro, que faça parte do dêmos, que faça parte dos cidadãos – de ter acesso à palavra, devendo a palavra ser entendida em vários sentidos: pode ser tanto a palavra judiciária quando, seja para atacar, seja para se defender, pode falar nos tribunais; é também o direito de dar sua opinião, seja para uma decisão, seja também para a escolha dos chefes por meio do voto; a isegoria é, enfim, o direito de tomar a palavra, de dar sua opinião durante uma discussão, um debate (FOUCAULT, 2010, p. 140).

Dito isso, a isegoria é, então, a igualdade na hora de falar: o acesso à palavra, que é direito de todo cidadão. No entanto, nos interessa especialmente a segunda noção explorada – com muito mais profundidade – por Foucault: a de parresía.

Para investigar o conceito de parresía, Foucault usa textos de Eurípides, começando por Íon, personagem que tem como objetivo voltar a Atenas porque lá lhe é possível exercer o poder ligado à sua raça:

E esse direito, esse poder e esse estatuto comportam, conduzem ou desembocam em certo elemento, perfeitamente importante e explicitamente designado, que é a parresía: a liberdade de tomar a palavra e, na palavra, de exercer a fala franca (FOUCAULT, 2010, p. 141).

Conforme avança em sua aula, Foucault progride também na explanação do conceito de parresía como mais que um direito: um risco humano. O aspecto de dizer a verdade assumindo o risco de se dizer a verdade é algo fundamental na noção de parresía. Na história contada por Eurípides, para que Íon possa voltar a Atenas e exercer a parresía, é preciso haver democracia:

Para haver democracia, é preciso haver parresía; para haver parresía, é preciso haver democracia. Temos aí uma circularidade essencial, e é no âmbito dessa circularidade que gostaria de me colocar agora e tentar destrinchar as relações existentes entre a parresía e a democracia, digamos simplesmente: o problema do dizer-a-verdade na democracia (FOUCAULT , 2010, p. 144-145).

Avançando com Íon, mas citando também outras obras de Eurípides, Foucault segue explicando que a parresía diz respeito àqueles que “se ocupam da cidade” (p.145), ou