• Nenhum resultado encontrado

4 CRISE NÃO. CRISES

4.2 CRISE DE ATENÇÃO

O jornalismo tem ligação próxima com a ideia de atenção. Ao mesmo tempo em que tem a função de chamar a atenção para o que de mais importante ocorre no mundo, também filtra a cada vez maior quantidade de acontecimentos para entregar ao público – gatekeeping. Entretanto, o próprio jornalismo demanda certa atenção de seu público e, cada vez mais, depende de ter essa exigência atendida para viabilizar seus modelos de negócio. Isso além do fato, é claro, que a vocação de serviço público que tem o jornalismo só se efetiva quando a sociedade dá a devida atenção àquilo que está sendo noticiado – e cada vez mais assuntos viram notícia. Ocorre que a quantidade de atenção está cada vez mais escassa.

No início da década de 1970, o professor e pesquisador Herbert A. Simon já atentava para a rapidez do desenvolvimento de conhecimento e tecnologia: “A expansão é tão rápida que é difícil de documentar o que está acontecendo” (SIMON, 1971, p. 38). Simon chamava o

100 “Although journalism’s structural attributes often escape serious scrutiny, Trump’s election rendered visible market-driven pathologies that degrade media systems. Privileging ratings and profits over democratic discourse, typical news coverage trivi- alized and sensationalized the elections in horse-race style reporting, while offering almost no substantive policy analysis whatsoever (Patterson, 2016; Pickard, 2018). This wasn’t the result of a few bad journalists or news organizations; rather, it evi- dences systemic problems stemming from the extreme commercialism driving our entire news media apparatus.”

contexto daquela época de um “mundo rico em informações”101 e antecipou um problema que a humanidade só viu se agravar daquele momento em diante.

...em um mundo rico em informações, a riqueza de informações significa uma falta de outra coisa: uma escassez daquilo que a informação consome. O que a informação consome é, de fato, óbvio: ela consome atenção daqueles que a recebem. Desse modo, uma riqueza de informações cria uma pobreza de atenção (SIMON, 1971, p.40-41, tradução nossa102).

Como visto, há pelo menos meio século a humanidade lida com uma crescente falta de atenção – e ansiedade por não dar conta de tudo (RAUCH, 2018). E, hoje, a atenção que as pessoas dedicam ao jornalismo é algo disputado por cada vez mais matérias, reportagens, vídeos, infográficos, publicações em rede sociais, podcasts, newsgames e outros formatos noticiosos. Também, os jornais querem algum foco da audiência para vinte e quatro horas, sete dias por semana de política, economia, cultura, esportes, além da última fofoca da celebridade. E, ainda, há outros atores a exigir dessa mesma dedicação: redes sociais, aplicativos, jogos, influenciadores digitais, marcas. É um sem-fim de notificações, a sensação de dívida eterna com o cotidiano. É tamanho volume que o excesso de dados se transformou em um problema de saúde pública103.

Em um mundo rico em informações, a maioria do custo da informação é o custo arcado pelo recebedor. Não é o bastante saber quanto custa produzir e transmitir informação; nós precisamos também saber quanto custa, em termos de atenção escassa, recebe-la. Eu tenho tentado apresentar esse argumento em casa para meus amigos sugerindo que eles calculem quanto o New York Times (ou Washington Post) custa a eles, incluindo o custo de lê-los. Fazer o cálculo normalmente causa a eles algum espanto, mas não o suficiente para que eles cancelem suas assinaturas. Provavelmente, o benefício ainda supere o custo (SIMON, 1971, p. 41, tradução nossa104).

Voltando alguns parágrafos na ideia de construção de valor, um dos elementos que forma o valor é a relação entre abundância e escassez. Se existe uma abundância de algo, segundo as regras do mercado, esse material deveria ter menor valor. Quando há escassez, o

101 “Information-rich world”. Tradução nossa.

102 “in an information-rich world, the wealth of information means a dearth of something else: a scarcity of whatever it is that information consumes. What information consumes is rather obvious: it consumes the attention of its recipients. Hence a wealth of information creates a poverty of attention”.

103 Há diversos artigos que relacionam o excesso de informações a problemas de saúde além de apontar para a necessidade de uma educação do público diante da mídia. Algumas dessas preocupações podem ser observadas em artigo do neurocientista David Levitin para o jornal britânico The Guardian, em 2015 (LEVITIN, 2015). Também existem diversos artigos científicos sobre o tema disponíveis no site do Center For Media Literacy — uma organização dos EUA dedicada à educação midiática, e que reúne acadêmicos de diversas áreas do conhecimento —, cujo site é www.medialit.org. Acesso em: 13 out. 2020.

104 “In an information-rich world, most of the cost of information is the cost incurred by the recipient. It is not enough to know how much it costs to produce and transmit information; we must also know how much it costs, in terms of scarce attention, to receive it. I have tried bringing this argument home to my friends by suggesting that they recalculate how much the New York Times (or Washington Post) costs them, including the cost of reading it. Making the calculation usually causes them some alarm, but not enough for them to cancel their subscriptions. Perhaps the benefits still outweigh the costs.”

valor sobe. Logo, quando há escassez de atenção, ela fica mais valiosa. Com cada vez mais produções jornalísticas (e outras) – tanto em termos de assuntos quanto em número de players – a demandar das pessoas, o público avalia – mesmo inconscientemente – se além daquele em dinheiro, o preço em atenção (ou tempo) que dedica a cada conteúdo está valendo o benefício que ele traz.

Entretanto, essa valoração dada pelo público ao jornalismo não obedece aos mesmos critérios daquela dada pelos jornalistas (PICARD, 2010). Muitas vezes, aquilo que é chamado de “bom jornalismo” por um editor ou repórter terá menos audiência do que aquilo que é considerado “mau jornalismo” pelas mesmas pessoas. Aqui, abrimos espaço para deixar uma provocação que retomaremos mais adiante: se a atenção é escassa e a capacidade de produção de cada veículo igualmente é cada vez menor, não seria mais lógico, do ponto de vista da vocação de serviço público do jornalismo, simplesmente parar de abarrotar as linhas do tempo, os sites e os aplicativos de matérias sobre bobagem e fazer uma melhor cobertura, que valha a atenção do leitor, daquilo que realmente importa?

Todd Gitlin (2011, posição 2107) – e qualquer um de nós, cotidianamente –, observa a lógica da atenção na era digital. Estamos mais multitarefas, temos mais estímulos de imagem e som. Muda a forma como interagimos com o mundo e, com ela, mudam também nossas respostas cognitivas e nossos padrões de atenção. Quase dez anos depois, Jennifer Rauch (2018) demonstra um exagero de interações diárias na sociedade estadunidense.

O uso de mídia explodiu no curso de duas gerações, naquilo que pode ser uma das mais significantes transformações de todos os tempos no ambiente humano. As pessoas agora absorvem cerca de três vezes mais informação diariamente do que faziam na década de 1960. O americano médio gasta em torno de 12 horas por dia com mídia, comparado a 5 horas nos anos 1960. Isto significa 75% da sua vida acordado. Adultos checam seus celulares aproximadamente 30 vezes por dia, enquanto os millennials o fazem mais de 150 vezes ao dia. Quase 4 entre 10 pessoas abaixo dos 34 anos dizem interagir mais com seus smartphones que com seus pais, amigos, colegas de trabalho, ou companheiros. Quando as pessoas estão usando mídia, elas provavelmente estejam usando pelo menos quatro tipos ao mesmo tempo, às vezes seis ou sete transmissões instantâneas. Se tornou um cliché observar que as pessoas passam mais tempo usando a mídia do que fazendo qualquer outra coisa (RAUCH, 2018, p. 79-80, tradução nossa105).

105 “Media use has exploded over the course of two generations, in what could be one of the most significant shifts ever in the human environment. People now ingest around three times as much information each day as they did in the 1960s. The average American spends around 12 hours per day with media, compared to 5 hours in 1960. That’s 75% of your waking life. Adults check their phones around 30 times a day, while millennials do it more than 150 times daily.3 Nearly 4 in 10 people under the age of 34 say they interact more with their smartphones than they do with their parents, friends, co-workers, or significant others.4 When people are using media, they are likely to be using at least four kinds at a time, sometimes six or seven simultaneous streams.5 It has become a cliché to observe that people spend more time using media than doing anything else.”

O jornalismo tem tentado responder a isso e angariar para si uma parcela cada vez maior desse tempo, mas sofre para encontrar uma maneira de reconquistar a atenção das pessoas – se é que algum dia a teve. Provavelmente, essa dificuldade de chamar a atenção do público esteja intimamente ligada ao fato de que os outros estímulos estão mais próximos do público e o jornalismo segue afastado. Simon (1971, p. 42) atentava para que, no ambiente de crescimento do número de máquinas e sistemas de processamento de dados em que vivia, essas tecnologias só iriam contribuir para a diminuição do que chama de “sobrecarga de informações”106 se elas forem organizadas de modo a ouvirem mais do que falarem. Se pensarmos nos jornais como processadores de informação, será que não se está falando mais do que ouvindo?

Do ponto de vista do jornalismo, a crise é de escassez, como dito. Será preciso aprender a otimizar cada experiência, tirar o melhor proveito – no bom sentido – de cada pequena interação com o usuário. Ou melhor: transformar o que hoje são tsunamis de informação jogadas nas pessoas todos os dias em momentos de interação real, para que o leitor (telespectador, ouvinte, o que for) volte a enxergar que é importante investir no jornalismo dois recursos que valem mais do que dinheiro: tempo e atenção. Não obstante, nada disso será possível se, ao acessar o conteúdo jornalístico em qualquer meio, o público não sentir que pode confiar nele.