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3.1 – A burocratização do trabalho docente

Profissionalidades Docentes

III. 3.1 – A burocratização do trabalho docente

Tardif e Léssard (2005), argumentam que as reformas desenvolvidas em França, cujo alvo principal é o corpo docente e as suas condições de trabalho, têm reflectido “uma aplicação dos modelos de racionalidade do trabalho tecnológico no mundo educativo” (idem:100). Justificam este facto por considerarem que perante a maior amplitude e complexidade da organização escolar, a Administração Educacional sentiu necessidade de controlar mais o trabalho do professor, pelo menos “no plano da formalização das regras que regem o ambiente do trabalho” (ibidem).

Nesta mesma lógica, e visto que, no meu entender, a tese destes autores se adapta à realidade actual portuguesa, defendo com eles que as reformas actuais têm vindo a reflectir essencialmente uma preocupação política pela eficácia, pelo desempenho e pelos resultados, intensificando os controlos burocráticos sobre o trabalho docente, em detrimento das questões relacionadas com a qualidade das condições do exercício da profissionalidade docente e, consequentemente, a qualidade dos processos de ensino/aprendizagem. A este propósito Gimeno Sacristán (1995) frisa a importância das condições de trabalho, sublinhando factores de índole histórica, cultural, social, institucional, laboral e pessoal, na configuração das profissionalidades docentes. Fernandes (2007), numa análise reportada à realidade portuguesa, aponta também as condições71 em que o trabalho docente é desenvolvido como

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Fernandes (2007) aponta alguns elementos que devem ser tidos em conta pelas escolas no sentido de criarem melhores condições de trabalho para e entre os professores: i) as condições físicas que as escolas oferecem aos professores para a realização de trabalhos e de iniciativas em grupo, com carácter interdisciplinar (com os pares, mas também com os alunos e com os pais) e também para a realização de actividades que exigem um trabalho com um carácter mais focado na área disciplinar; ii) a organização do ensino por disciplinas e por tempos lectivos e nas possibilidades que este modelo oferece para a configuração de processos de gestão curricular ancorados em princípios de interdisciplinaridade e da transversalidade de saberes; iii) a organização dos espaços por salas de aula convencionais (quadro, mesas e cadeiras) e sem espaços para iniciativas alternativas; iv) a enormidade de tarefas a que têm de responder no quadro de um funcionamento marcado por uma lógica de incompatibilidades de tempos, entre os professores de uma mesma escola (pela própria organização do ensino) e entre estes e a Administração Educativa, dimensão que, como anteriormente aludimos, faz gastar muitas das energias dos professores em tarefas administrativas afastando-os de outro tipo de iniciativas que poderiam ser uma ponte para a emergência de práticas divergentes e potenciadoras de reflexões críticas; v) a inexistência de redes de apoio (equipas multidisciplinares) aos professores que possibilitem a concretização de práticas pedagógicas e curriculares diferenciadas, por um lado e, por outro, o desenvolvimento do currículo a partir de projectos com maior articulação com o contexto (social e cultural) em que as escolas se inserem; vi) a inexistência de tempos institucionalizados que possibilitem aos professores, o “encontro” consigo mesmos e com “a sua prática” e o encontro com os seus pares, partilhando ideias e experiências; vii) a inexistência de apoios específicos aos professores que vivem situações de grande stress, insegurança, medos, incertezas (idem:305-6)

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“uma dimensão que não pode ser descuidada (...) porque dela depende muito a melhoria da qualidade da profissionalidade docente” (idem:306).

Retomando o argumento das reformas educativas, Ball (2002) refere que a tradição educacional centrada na escola e no bem público tem dado origem a ideias reformadoras que orientam o sistema educativo para um sentido diferente: o mercado, o mérito e a

performatividade competitiva. Segundo este autor, a performatividade72 é uma nova cultura competitiva presente na escola que se caracteriza por uma “regulação menos visível, mais liberal e auto-reguladora” (idem:5), assente em novas formas de vigilância e de auto- monitorização como: os sistemas de avaliação, a definição de metas/objectivos e a comparação de rendimentos e de produção. Neste sentido, o trabalho dos docentes é conduzido por esta cultura, denotando-se que “os desempenhos servem como medidas de produtividade e rendimento, ou mostras de qualidade ou ainda momentos de promoção ou inspecção” (idem:4).

Partilho da ideia de Ball (2002) de que as estratégias e práticas desta cultura política, têm vindo a causar alterações no trabalho docente, nomeadamente, nas relações profissionais, não promovendo a partilha nem o trabalho em conjunto. Como alude o autor, a competição é potencializada e valorizada fazendo ranking nacionais que distinguem as escolas pelos resultados escolares dos seus alunos ou avaliando o desempenho dos professores no sentido de classificar e sancionar. A colegialidade dá assim lugar a uma relação hierárquica entre pares. Corroboro também a ideia de que estas formas de regulação têm consequências catastróficas nas relações e na dimensão relacional e afectiva da profissionalidade docente, fazendo com que “autênticas relações sociais sejam substituídas por relações de julgamento nas quais as pessoas são valorizadas apenas pela sua produtividade“ (idem:11).

Neste sentido, é em “nome da impressão e do desempenho [que] é sacrificado o compromisso, a entrega, o julgamento e a autenticidade” (idem:13). Os professores são julgados com “base na sua contribuição para o desempenho organizacional, retribuída em termos de produção mensurável” (ibidem). Este facto leva a que os docentes invistam nas tarefas burocráticas valorizadas pela organização: relatórios, dossiers e outros documentos estratégicos em detrimento da reflexão, da investigação e do trabalho em conjunto.

Neste encadeamento, Ball (2002) refere que os sucessivos indicadores de desempenho e as comparações de produtividade geram uma nova subjectividade profissional caracterizada pela incerteza e instabilidade. Day (2001), numa lógica próxima, acrescenta que o aumento da prestação de contas tem concebido sentimentos como a ansiedade, o medo e a solidão que

72 Este autor define a performatividade como “uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação que se serve de críticas, comparações e

exposições como meios de controlo, atrito e mudança” (idem:4). No seu artigo sublinha fundamentalmente as alterações que as relações e subjectividades sofreram com as estratégias e práticas destas tecnologias políticas.

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dificultam a prática colegial, reflexiva e inovadora e consequentemente o crescimento profissional. É também neste sentido que Tardif e Lessard (2005) alegam que o “refúgio na sala de aula” é assumido como o único espaço de autonomia, que permite ao docente fugir ao controlo burocrático e ao “ambiente organizacional fortemente controlado e saturado de normas e regras” (idem:100).

A este propósito é também interessante a tese de Fullan e Hargreaves (2000) que defendem que o aumento do controlo torna o ensino um trabalho regulado e cheio de tarefas favorecendo a rotinização do trabalho docente e retirando o tempo que os professores tinham para colaborar. Argumentam, pois, que o constrangimento pela pressão do tempo impede os docentes de se encontrarem para discutir e trocar experiências profissionais, desvalorizando o exercício reflexivo e fomentando o isolamento. Entendimento semelhante apresenta Fernandes, P. (2007), ao defender que a componente burocrática do trabalho dos professores não lhes deixa “disponibilidade para outras tarefas de carácter mais criativo que [os] libertem para um exercício reflexivo da sua profissão” (idem:173) e consequentemente para a melhoria e para a mudança curricular.

Em jeito de síntese, Ball (2002), refere que “as tecnologias políticas do mercado, gestão e performatividade não deixam espaço para um ser ético, autónomo ou colectivo” (idem:19), o que, no meu entender, poderá significar o desenvolvimento de profissionalidades insatisfeitas, individualistas, descomprometidas e, consequentemente, incapazes de fomentar a melhoria e mudança curricular.