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Dos procedimentos metodológicos à interpretação dos dados

B) O ponto de vista dos/as professores/as

Os/as professores/as referem-se ao currículo de forma pouco clara e manifestam significações diferentes. No entanto, globalmente, dos seus discursos, denota-se um entendimento do currículo que se afasta da ideia de um conjunto de disciplinas organizadas em programas, mas parece ainda que essa concepção de currículo não passou à prática. Os/as professores/as reportam-se à organização curricular da escola associando-a a palavras como

“activa/dinâmica”, “inovadora” ou mesmo “flexibilidade”; no entanto, durante as entrevistas

sublinham fundamentalmente a perspectiva de ciclo em relação às competências e conteúdos a trabalhar durante os quatro anos de escolaridade, assim como, as dinâmicas de trabalho em equipa, presentes nos processos de desenvolvimento do currículo.

Explicitam os seguintes argumentos para caracterizar uma organização curricular inovadora:

“Quando trabalhamos e propomos algo nesta escola é sempre para bem das crianças. Todo o trabalho é feito para elas” (E3);

“Inovadora no trabalho de projecto que está a ser desenvolvido na escola, tanto no trabalho de parcerias entre professores, como na aprendizagem dos alunos que é feita por competências a nível de ciclo e não de anos de escolaridade. Inovadora, também, porque é realizado um trabalho no seu conjunto e não de forma individual, como é feito noutras escolas”(E7);

“Acho que em vez de subdividir em primeiro ano, segundo ano, terceiro ano e quarto ano, vê mais na globalidade. Tenta que as crianças fiquem com algumas competências de ciclo para a vida futura, não está preocupada que atinjam em cada ano mas na globalidade”(E12);

“Acho que estamos a tentar que os alunos atinjam as competências não ano a ano mas ao longo do primeiro ciclo. Eles podem não atingir agora mas no ano a seguir conseguirem chegar lá.(...)”(E6).

Atravessa estes discursos uma visão de currículo, cuja preocupação central é o aluno e o seu sucesso individual, valorizando a perspectiva de ciclo e não de ano de escolaridade, numa aparência de desenvolvimento curricular sequencializado. Ressalta ainda a ideia de um trabalho conjunto entre todos docentes com vista a “melhorar realmente o ensino.” (E10).

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Também se evidencia a intenção de criar novas estratégias e inovações curriculares por referência às dificuldades com que a escola se depara ao nível dos processos de ensino/aprendizagem. Ideia bem presente nas palavras desta docente:

“Como a escola está inserida num meio desfavorecido, há a tentação de encontrar novas estratégias

para termos sucesso (...)” (E3).

A docente do ensino especial é a única docente entrevistada que confessa um certo desânimo quanto à organização curricular da escola:

“De uma forma geral acho que a escola está a trabalhar bem. Está preocupada com os miúdos e em

arranjar estratégias. A nível do meu trabalho, a nível dos NEE, acho que a escola não está a trabalhar bem, não se preocupa com esses miúdos mas em despachá-los. Não se preocupam em adaptar o currículo aos miúdos, não se preocupam que se eles têm um programa têm que tentar, realmente, que ele consiga cumprir esse programa” (E10).

Este excerto evidencia fragilidades do modelo de organização curricular em curso e do cumprimento de uma escola inclusiva. Com efeito, apesar dos princípios preconizados no Projecto Curricular serem o da contextualização do currículo e da valorização das experiências e saberes locais, nos discursos dos/as docentes poderemos encontrar uma ideia de currículo construído com base nas dificuldades que os alunos revelam no seu processo de aprendizagem ou nos défices da comunidade educativa:

“Nesta escola não se pode estar a pensar em ver ao pormenor o currículo porque aqui as

expectativas em relação à escola são poucas, as vivências são poucas, assim como as ajudas dos encarregados de educação. É necessário adaptar ao meio em que nos encontramos inseridos (...) até porque, quando trabalhamos os conteúdos mais rápido eles não acompanham, sentindo dificuldades em entender, são coisas abstractas” (E3);

“Eu acho que nós às vezes temos dificuldade, (...) em desenvolver o currículo… o currículo em termos de conteúdos e em fazermos um desenvolvimento aprofundado do currículo em termos de exigência … O nosso discurso é trabalhar a cultura dos meninos, mas na prática não sei se é. Não sei se é, porque depois há conteúdos que têm de ser dados e há conteúdos que não se podem subir nem descer, é aquilo e acabou. (...). Se calhar isto pode vir contra a ideia da cultura mas eles estão na escola... a escola quer queiramos quer não é a cultura dominante” (E1).

Embora alguns/mas professores/as defendam uma concepção de um currículo diferenciado e de o Projecto Curricular da Escola enunciar também essa intenção, outros professores sentem que o currículo desenvolvido é empobrecido ao ser adaptado às dificuldades dos alunos. Ainda a este propósito, os discursos revelam que apesar de se denotar um esforço por parte de alguns/umas docentes em proporcionar actividades e experiências diferentes, constata-se que prevalecem características de alguma uniformidade curricular, aspecto que é, aliás, consciencializado por uma das entrevistadas:

“Aparentemente há uma tentativa de mudar o currículo e há muita gente que adere a essa ideia mas

existe uma parte de colegas que não consegue…(...) Independentemente da experiência, independentemente dos anos de escola. É uma característica das pessoas, precisam do manual para se apoiarem”(E4).

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Neste discurso é visível a utilização do manual como um recurso ao qual os professores têm dificuldade de se desvincularem, facto que, à partida, pode limitar a flexibilidade curricular. Nesta linha, outros depoimentos de professores/as entrevistados/as apontam para um modelo curricular em prática na escola que reflecte uma lógica disciplinar, como evidenciam os seguintes excertos:

“ Depois do recreio trabalhamos Estudo do Meio ou Matemática conforme o dia da semana” (E2); “A área pela qual começamos depende do dia da semana”(E6);

“(...) começo o trabalho, dependendo do dia, começo ou por Língua Portuguesa ou por Matemática”

(E11);

“Depois há o chegar à sala, escrever o sumário, a data, ouvir os miúdos que têm sempre coisas para contar e começar o trabalho, dependendo da área” (E4).

Esta não é, contudo, a visão de todos os professores. Existe um grupo de docentes que se posicionam numa perspectiva crítica e que lamentam práticas assentes numa lógica disciplinar:

“Agora com o projecto havia aquela história dos dias e da disciplina e eles só traziam o dicionário

no dia de Português. Percebes? Porque eles compartimentam aquilo e não há interligação. Eu procuro mostrar-lhes que os conhecimentos podem ser os mesmos em diferentes áreas. É nessa perspectiva que eu agora procuro fazer. Repara que quando eu comecei aqui a trabalhar isto acontecia já com pessoas com traquejo de casa, a escola não instituía isso.” (E1)

Estas críticas assentam fundamentalmente no facto de considerarem que a adopção de práticas curriculares uniformes não permite ao/à professor(a) processos de trabalho interdisciplinares e reduzem a autonomia dos/as professores/as na sala de aula:

“Esta é a minha maneira de ser, o que me perturba muitas vezes é saber que hoje tenho Matemática,

Estudo do Meio e Português e o que me dava jeito era trabalhar outra coisa qualquer porque até surgiu qualquer coisa que o justifica” (E1);

“Eu não gosto por exemplo de ter horas estanques para dar a matéria. Muitas vezes a matéria

interliga e eu posso saltar do Português para um problema de Matemática, ou pode ligar com Estudo do Meio. Ainda não me habituei muito a esses tempos estanques a que o projecto obriga, faço-os porque tem de ser” (E11).

Constata-se, pois, que, embora alguns discursos deixem transparecer a ideia de que o modelo curricular da escola assenta numa lógica disciplinar, outros depoimentos revelam haver uma preocupação em valorizar o envolvimento dos alunos nos processos de ensino/aprendizagem e em reconhecer os seus saberes incorporando-os nos processos de ensino/aprendizagem.

“ (...) há uma boa organização do trabalho do currículo na medida em que vamos atendendo aos

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“eu procuro organizar e abordar o currículo de uma forma equilibrada, sempre tendo em conta o

que o aluno precisa, as necessidades dele, o que é mais benéfico para ele, o que precisa ser trabalhado para o progresso dele” (E8) .

Em síntese, estes discursos reflectem a preocupação curricular por parte de alguns/mas professores/as da escola em desenvolverem competências no sentido da formação global dos alunos e não apenas em adquirir determinados conteúdos.

c) Outros elementos resultantes da observação directa do quotidiano da escola e do trabalho dos/as professores/as

A escola, com o Projecto-piloto, implementou uma alternativa à organização curricular do 1º ciclo: constituiu duas equipas educativas formadas pelos/as professores/as da escola (uma no horário da manhã e outra no horário da tarde) em que os alunos não são de um professor/a específico, mas dos/as professores/as das diferentes turmas. O/A docente continua a ser um/a monodocente generalista, dada a sua polivalência curricular e a responsabilidade para com um grupo, que, no entanto, pode variar ao longo do ano lectivo. A seu cargo está a coordenação do ensino e a adequação às necessidades do grupo. Em algumas condições e, analisadas as dificuldades e características do grupo, pode ser definido pela equipa a existência de uma parceria docente, durante um determinado tempo.

Em concordância com os depoimentos expressos pelos/as professores/as e que analisei no ponto anterior, a observação permitiu-me presenciar processos de trabalho docente assentes fundamentalmente numa lógica disciplinar. A própria constituição dos grupos de trabalho e o facto de o/a professor/a responsável pelos elementos ser alterada conforme a área a trabalhar vão nesse sentido. Acresce a estes aspectos a estipulação de um horário para determinadas áreas: nomeadamente a expressão plástica, educação física, matemática, estudo meio e língua portuguesa o que dificulta a adopção de modos de trabalho com base na integração de várias áreas curriculares. Estas características revelam traços de um currículo de

colecção (Bersntein: 1985)

A participação nas reuniões de equipa permitiu constatar que nesses contextos prevalece uma preocupação pelo controlo do comportamento dos alunos na forma como é organizado o trabalho curricular de cada grupo, mais do que uma primazia pelas vantagens curriculares que determinadas actividades/estratégias poderão trazer para os alunos. Este facto reflecte a tónica colocada na formação pessoal e social, mas poderá também reflectir a descrença nas capacidades académicas dos alunos.

Foi também notória nas REs, e nas conversas paralelas registadas nas RN, a utilização dos manuais como apoio à planificação por vários docentes, assim como a preocupação pelo cumprimento dos conteúdos programáticos, objectivos e competências definidos pelos Conselhos de Ano do Agrupamento em concordância com o Currículo Nacional e/ou

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programa do 1º ciclo. Apesar de alguns elementos da escola, tal como já referi anteriormente, expressarem a vontade de não serem utilizados manuais na escola, o grupo não optou por esse compromisso (RE 7). Estas características consubstanciam a ideia que tenho vindo a sustentar de que a organização curricular da escola apresenta traços de uniformidade.

A existência de estratégias diversificadas ou actividades curriculares diferentes, como as visitas de estudo, surgem sobretudo de sugestões espontâneas apresentadas por docentes da escola ao longo do ano ou de ofertas da comunidade educativa envolvente com quem mantêm uma boa relação. Neste sentido, a articulação com o trabalho curricular é realizado a

posteriori (RE4).

Presenciei duas posturas diferentes relativamente à constituição dos grupos de trabalho: a defesa da homogeneidade – juntando alunos que têm de atingir os mesmos objectivos, que revelam as mesmas dificuldades e trabalham mais ou menos ao mesmo ritmo - mas também a apologia de grupos mais heterogéneos. Relacionado com este facto, sobressaíam nas duas equipas pedagógicas (manhã e tarde) propostas de organização caracterizadas pela

homogeneização ao nível dos critérios de formação de grupos. Porém, enquanto os elementos

da equipa da tarde utilizavam com mais regularidade expressões como “grupo dos bons e dos

maus” ou dos “melhores ou mais fraquinhos”, na equipa da manhã, apesar de também estar

presente esta ideia, a constituição deste tipo de grupos é recusada com mais frequência, principalmente pela forte oposição de alguns elementos que defendem “não ser o espírito do

projecto”. Esta situação talvez se justifique pelo facto de na equipa da manhã prevalecerem os

elementos com mais anos de serviço na escola e que se posicionam no grupo dos defensores de uma filosofia de escola no sentido de uma organização curricular interdisciplinar e mais flexível.95

A intenção de adaptar o currículo à comunidade educativa, nomeadamente às crianças de etnia cigana, esteve presente em algumas reuniões, sendo sugeridas actividades específicas, que no entanto nunca foram concretizadas dado o receio de valorizar em demasia a etnia cigana (RN7), o que poderia, na opinião de alguns/umas docentes, fazer com que “ganhem

força e “desestabilizem” a ordem da escola” (RE1). Este tipo de depoimento põe “por terra”

o sentido de educação inclusiva e de flexibilização enunciado no Projecto Curricular. Acrescente-se no entanto, que perante o número crescente de crianças de etnia cigana, o corpo docente foi demonstrando vontade e disponibilidade para formular “mais um projecto” de forma a responder às dificuldades com que se deparavam no quotidiano em trabalhar com estas crianças. Apesar de podermos interpretar aqui uma posição pedagógico-curricular de discriminação positiva, por detrás desta divergência de posições ,está também uma vontade e

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disponibilidade por parte de muitos/as professores/as em pensar e concretizar alternativas curriculares inovadoras, configuradoras de profissionalidades docentes com características de empenho profissional.

IV.3.1.4- Relação da escola com comunidade

A análise da relação da escola com a comunidade foi por mim entendida como importante, no quadro do estudo do ethos da escola, pelo facto de este ser um foco basilar na caracterização da dinâmica geral da organização escolar.