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2. OS OGM E A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

2.3. A APARENTE INCOMPATIBILIDADE ENTRE O PRINCÍPIO DA

2.3.1. A certeza científica absoluta no princípio da precaução

Apesar da ausência de estudos conclusivos e absolutos a respeito de impacto dos transgênicos ao meio ambiente e à saúde humana, por outro lado são avançados os estudos sobre as técnicas de transgenia e sua liberação para comercialização, envolvendo uma série de análises de riscos e experiências em campo.

Muito embora o princípio da precaução recomende que a ausência de certeza científica não represente óbice à adoção de medidas preventivas, isso não

significa que a ausência dessa certeza deva ser utilizada para proibir tecnologias (QUIRINO, 2008, p. 123).

A expressão “ausência de certeza científica absoluta” representa um grande problema em termos metodológicos, sendo necessário interpretar o que significa de fato o termo “certeza científica”.

O conhecimento científico vive em eterno questionamento e constante submissão a testes que confirmem suas afirmações. É como se a ciência vivesse em eterna crise.

Thomas Kuhn retrata esse fato na obra “A estrutura das revoluções científicas” (apud CHALMERS, 1993). A caracterização da ciência passa pela estruturação de ideias outrora desorganizadas, momento em que a comunidade científica atém-se a um paradigma. De acordo com Chalmers (1993, p. 124), “um paradigma é composto de suposições teóricas gerais e de leis e técnicas para a sua aplicação adotadas por uma comunidade científica específica”.

Segundo Kuhn (apud CHALMERS, 1993), a ciência é governada por paradigmas. A comunidade científica utiliza as regras e técnicas do paradigma reinante na resolução dos problemas apresentados. Inevitavelmente surgirão dificuldades em algumas situações novas. A partir do momento em que essas dificuldades fogem do espectro de resolução do paradigma, manifesta-se uma crise superada apenas pelo surgimento de um novo paradigma capaz de enfrentar as dificuldades não resolvidas pelo paradigma anterior.

Esse novo paradigma passa a ser adotado pela comunidade científica até que também se defronte com novos problemas que resultem em outra crise e consequentemente no surgimento de outro paradigma.

A ciência então vive em eterno desafio, de tal forma que a expressão “certeza científica absoluta” sofre de uma incongruência literal. No dizer de Cohen, (apud MINARÉ, 2008, p. 218) “a ciência convida à duvida”. E Noiville (2004, p. 335) conclui que “raramente a ciência reduz totalmente as incertezas”.

Da mesma forma, Karl Popper (apud MINARÉ, 2008, p. 219) sustenta que “o velho ideal científico da epistéme, do conhecimento absolutamente certo e demonstrável, não passa de um ídolo; a exigência de objetividade científica torna inevitável que todo enunciado científico permaneça provisório para sempre”.

Assim, resta impossível exigir do cientista que afirme uma proposição absoluta sob pena de negar a concepção clássica de ciência. Ainda mais no campo

da biotecnologia, de rápidos avanços na transformação e produção de novos conhecimentos. Pela própria noção de inovação, novas tecnologias implicam incertezas e riscos.

Em decisão judicial27 que reformou a sentença contrária à liberação de OGM formulada com base no princípio da precaução, foi mencionado que o princípio “não implica na proibição de se utilizar tecnologia nova, ainda que tal compreenda a manipulação de OGMs”, e ao discorrer a respeito da certeza científica, esclarece:

Sob o enfoque da Epistemologia não há certeza científica absoluta. A exigência de certeza absoluta é algo utópico no âmbito das ciências. A questão da verdade científica é um tema recorrente em Epistemologia porque a ciência busca encontrar o fato real. Todavia, há muito se percebeu que o absoluto é incompatível com o espírito científico e que na área das ciências naturais as pretensões hão de ser mais modestas.

Sobre a mesma polêmica, Borém e Giúdice (2008, p. 163) ensinam que:

Embora seja desejável, do ponto de vista da proteção da saúde humana e do ambiente que não existam efeitos adversos ás populações ou aos ecossistemas, é razoável que se admita, do ponto de vista da gerência de risco que a filosofia do “risco zero” é impraticável numa sociedade em que a intervenção antrópica atingiu os níveis correntemente observados nas civilizações atuais. Assim, é de se esperar que os benefícios para um organismo, uma população ou um sistema ecológico excedam em valor os efeitos adversos resultantes da exposição a um agente particular.

Finalizando, vale ressaltar, porém, que, por ocasião da comunicação do risco para a sociedade, esta deve ser alertada para o fato de que suas necessidades básicas, bem como os bens de consumo que a cercam – os quais lhe trazem graus variáveis de satisfação ou de benefícios – somente podem existir a partir da exploração de recursos naturais que, mesmo extraídos ou produzidos de modo a gerar o menor efeito adverso possível ao ambiente, possuem uma taxa de renovação ou de reposição geralmente menor do que aquela em que atualmente são consumidos.

Magalhães (2005, p. 84) defende que o princípio da precaução não visa ter certezas absolutas, mas diminuir as probabilidades de que um dano ambiental mais grave ocorra. Mesmo sabendo da quase impossibilidade de alcançar um risco zero, tais riscos devem ser limitados ao menor nível razoavelmente admissível.

27 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível n. 0009785-21.2000.4.01.0000. Apelante: Monsanto do Brasil S/A e outros, Apelado: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Relatora: Ministra Selene Maria de Almeida. Diário da Justiça 01.09.2004. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=199834000276820>. Acesso em: 30 set. 2011.

Caso contrário, os Estados, sob a alegação de que qualquer risco é possível, poderiam impor medidas restritivas, bloqueando o ingresso de produtos ou serviços em suas fronteiras com o objetivo disfarçado de proteger seu mercado internamente.

Por isso, há necessidade de uma interpretação definitiva a respeito do termo “certeza científica”, a fim de evitar uma utilização distorcida com a finalidade única de auferir proveitos não autorizados pelo princípio.

Também no campo da biotecnologia envolvendo OGM resta impossível exigir certeza científica absoluta quanto à total ausência de risco, o que não exime a possibilidade de exigir evidências mínimas quanto à inofensividade ou impacto à biodiversidade e aos consumidores. Esta abordagem será objeto de análise no próximo item deste trabalho, ocasião em que será analisada também uma convergência entre o princípio da precaução e o acordo sobre medidas sanitárias e fitossanitárias.

2.3.2. A convergência entre o princípio da precaução e o acordo sobre