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2. OS OGM E A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

2.3. A APARENTE INCOMPATIBILIDADE ENTRE O PRINCÍPIO DA

2.3.2. A convergência entre o princípio da precaução e o acordo sobre

A partir da análise do artigo 5(7) do acordo sobre medidas sanitárias e fitossanitárias, é possível encontrar pontos de convergência com o princípio da precaução, pois apesar do acordo vedar barreiras comerciais quando a relevância científica seja necessária, ao mesmo tempo admite restrições por um período razoável de tempo para que a incerteza seja esclarecida.

Dispõe o mencionado artigo 5(7) do acordo sobre medidas sanitárias e fitossanitárias28:

Artigo 5 - Avaliação do Risco e Determinação do Nível Adequado da Proteção Sanitária e Fitossanitária.

7. Nos casos em que a evidência científica for insuficiente, um Membro pode provisoriamente adotar medidas sanitárias ou fitossanitárias com base em informação pertinente que esteja disponível, incluíndo-se informação oriunda de organizações internacionais relevantes, assim como de medidas sanitárias ou fitossanitárias aplicadas por outros Membros. Em tais

28 BRASIL MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/omc_ata008.htm>, acesso em: 18 jun. 2011.

circunstâncias, os Membros buscarão obter a informação adicional necessária para uma avaliação mais objetiva de risco e revisarão, em conseqüência, a medida sanitária ou fitossanitária em um prazo razoável.

Trata-se de uma evidente situação em que o acordo permite a imposição de barreira comercial provisória amparada em cautela e prudência até que se busquem informações adicionais que tornem a evidência de risco mais objetiva, situação em que a barreira tornar-se-á definitiva. Caso contrário, ou seja, se, após um período razoável de tempo, o risco permanecer no campo das suposições por ausência de novas informações concretas, a barreira comercial não subsistirá, pois não se pode prolongar indefinidamente no tempo uma proibição de importação.

Mesmo assim, a expressão “prazo razoável” constante na parte final do artigo 5(7) não comporta uma interpretação simplória, até porque, de acordo com Noiville (2004, p. 328), “existem incertezas duradouras quanto aos efeitos de certos produtos”, razão pela qual a análise de risco pode prolongar-se no tempo sem que isso represente uma afronta ao Acordo. Noiville (2004, p. 328) continua, exemplificando:

Vale insistir sobre o fato de que uma gestão de precaução engloba e ultrapassa essas medidas provisórias. Inicialmente, existem incertezas duradouras quanto aos efeitos de certos produtos. Essas incertezas não são dissipadas em apenas alguns meses de pesquisas e necessitam, então, de uma manutenção das medidas, além do prazo provisório. Basta pensar simplesmente na encefalopatia espongiforme bovina: quase quatro anos depois da adoção das primeiras medidas de urgência, a ligação entre essa patologia e a doença de Creutzfeldt-Jacob ainda não foi estabelecida com segurança e sabemos até que ponto durou a controvérsia sobre ser conveniente e em que condições suspender o embargo sobre a carne britânica.

A citação acima exemplifica casos a respeito da interpretação do termo “prazo razoável”, podendo ser aplicados aos organismos geneticamente modificados. Com base nisso a União Europeia decidiu aguardar uma avaliação desses produtos antes da liberação no mercado, já que ainda não há comprovação científica de sua letalidade pelo fato de advirem de técnicas inéditas.

Defendendo essa decisão da União Europeia, Noiville (2004, p. 337) sustenta que a novidade de um alimento ou das técnicas pelas quais ele é obtido

justifica por algum tempo a manutenção por tempo necessário para obter dados epidemiológicos confiáveis de uma medida sanitária.

O art. 5(7) do Acordo é uma evidência de que a adoção de medidas sanitárias não pode repousar em uma rígida exigência de provas científicas. Em situações de epidemias evidentes, doenças ligadas ao consumo de um determinado alimento, importação de animais ou vegetais, o Estado pode bloquear suas fronteiras e proibir a comercialização antes de realizar as perícias necessárias para atestar a certeza do incidente sanitário, sempre ressaltando o caráter provisório da medida restritiva.

Ruiz-Fabri (2004, p. 314) exemplifica com um caso julgado pela OMC em que o Japão manteve uma medida de restrição por vinte anos sem apresentar qualquer justificativa ou informações adicionais, situação que fora qualificada como desproporcional e fora da noção de “prazo razoável”, constante na parte final do artigo 5(7) do acordo.

Além disso, o acordo sobre as medidas sanitárias e fitossanitárias determina que a imposição de barreiras comerciais seja precedida de procedimento prévio de avaliação de risco à vida e ao meio ambiente:

Artigo 5 - Avaliação do Risco e Determinação do Nível Adequado da Proteção Sanitária e Fitossanitária.

1. Os Membros assegurarão que suas medidas sanitárias e fitossanitárias são baseadas em uma avaliação, adequada às circunstâncias, dos riscos à vida ou à saúde humana, animal ou vegetal, tomando em consideração as técnicas para avaliação de risco elaboradas pelas organizações internacionais competentes.

2. Na avaliação de riscos, os Membros levarão em consideração a evidência científica disponível; os processos e métodos de produção pertinentes; os métodos para teste, amostragem e inspeção pertinentes; a prevalência de pragas e doenças específicas; a existência de áreas livres de pragas ou doenças; condições ambientais e ecológicas pertinentes; e os regimes de quarentena ou outros.

Desta forma, pode-se concluir que um país membro pode impor barreiras a outro até que se apresente um estudo de avaliação de risco atestando a inocuidade do produto em questão. Hermitte e David (2004, p. 100) trazem como exemplos o embargo à construção de uma fábrica de produtos geneticamente modificados na Alemanha e a suspensão da realização de testes com algodão geneticamente

modificado da Monsanto29 na Índia. Esse risco, de acordo com o rigor técnico do acordo, deve ser averiguável, não se admitindo incertezas teóricas, cabendo distinguir o risco potencial ancorado na certeza científica do simples receio ou suposições vazias.

Essa exigência de avaliação de risco antes da imposição da medida representa mais um ponto de convergência com o princípio da precaução, até porque os critérios da avaliação constam de forma bem clara e objetiva no texto do acordo. E no caso específico da biotecnologia aplicável a OGM, a avaliação de risco sempre ocorre, sendo de exigência obrigatória na legislação de todos os países onde a tecnologia é desenvolvida e aplicada.

Além dos aspectos científicos, o texto do acordo também menciona os aspectos comerciais e os fatores econômicos a serem considerados, como por exemplo, os custos para erradicação de pestes e doenças e o custo benefício para a limitação dos riscos, com o objetivo de reduzir os efeitos negativos do comércio. Esses fatores representam elementos da Análise Econômica do Direito, tais como verificação do custo-benefício, mas esta não será a abordagem deste trabalho. Essas exigências constam no artigo 5, parágrafos 3 e 430:

Artigo 5 - Avaliação do Risco e Determinação do Nível Adequado da Proteção Sanitária e Fitossanitária.

3. Ao avaliar o risco para a vida ou a saúde humana, animal ou vegetal, e ao determinar a medida a ser aplicada para se alcançar o nível adequado de proteção sanitária e fitossanitária para tal risco, os Membros levarão em consideração como fatores econômicos relevantes: o dano potencial em termos de perda de produção ou de vendas no caso de entrada, estabelecimento e disseminação de uma peste ou doença; os custos de controle e de erradicação no território do Membro importador; e da relação custo-benefício de enfoques alternativos para limitar os riscos.

4. Os Membros devem, ao determinarem o nível adequado de proteção sanitária e fitossanitária, levar em consideração o objetivo de reduzir ao mínimo os efeitos negativos ao comércio.

As circunstâncias do artigo 5 (3) e (4) demonstram a preocupação do texto do acordo sobre medidas sanitárias e fitossanitárias com o rigor acautelatório e o risco à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e ao meio ambiente. Em nenhum

29 A Monsanto é uma das maiores multinacionais do agronegócio do mundo, com amplas pesquisas envolvendo OGM.

30 BRASIL MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/omc_ata008.htm>. Acesso em 18 jun. 2011.

momento, o acordo exige a ausência total de risco ou “risco zero”, ao contrário, destaca a limitação, e não a exclusão dos riscos a fim de atingir o que se denomina de nível adequado de proteção sanitária ou fitossanitária, também chamado de “nível aceitável de risco”.31

Esse nível aceitável de risco motivou o surgimento de uma doutrina crítica ao princípio da precaução, capitaneada por Cass Sunstein32, para quem o aplicador do princípio deve verificar se os benefícios trazidos com a sua aplicação ultrapassam os malefícios apresentados, em uma verdadeira análise do custo-benefício, sob pena de uma aplicação indiscriminada do princípio, causando mais prejuízos financeiros e sociais do que benefícios ao meio ambiente e à saúde pública ao paralisar atividades (WEDY, 2009).

Hermitte e David (2004, p. 107) destacam que a avaliação não deve considerar apenas os riscos, mas também as vantagens e a eficácia de um produto ou técnica em frente aos problemas a serem resolvidos. Posicionamento complementado por Wedy (2009, p. 70), ao justificar porque geralmente há discordância entre as pessoas comuns e os especialistas quanto à análise de riscos: os técnicos avaliam os riscos juntamente com os benefícios, enquanto as pessoas comuns atentam apenas para os riscos.

Raffaele De Giorgi (2008, p. 44), por outro lado, demonstra o risco como um paradoxo da modernidade na sociedade contemporânea, e justifica da seguinte forma:

A descoberta de alguns efeitos evidencia o não-saber de outros. A conseqüência de tudo isso é simples. De um lado, é bastante claro que se pode evitar um risco, mas somente com a condição de se correr outro risco sem saber exatamente qual. De outro lado, se, por risco, indicamos a possibilidade de um dano futuro que uma outra escolha poderia ter evitado e, por perigo, indicamos a possibilidade de um dano futuro que uma outra escolha não poderia ter evitado, então parece evidente que, na sociedade moderna, o risco aumenta e o perigo diminui. Por essa razão, a sociedade moderna é descrita como uma sociedade de risco.

(...)

31 Esses termos constam no Anexo A – Definições – do Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias, onde consta no parágrafo 5 a definição de Nível adequado de proteção sanitária ou fitossanitária como sendo “o nível de proteção que um Membro julgue adequado para estabelecer uma medida sanitária ou fitossanitária para proteger a vida ou saúde humana, animal ou vegetal em seu território”. Há também uma nota ao mencionado parágrafo 5 informando que muitos Membros referem-se ao nível de proteção sanitária ou fitossanitária utilizando a expressão "nível aceitável de risco".

32 Sunstein escreveu a obra Laws of Fear: beyond the precautionary principle, uma análise crítica do princípio da precaução.

A sociedade moderna é a sociedade de risco não no sentido ameaçador e apocalíptico que a moda difundiu. É a sociedade de risco porque somente essa sociedade criou condições para se construir futuros diferentes, para manter elevada a contingência dos eventos, vale dizer, para manter possibilidades sempre abertas quando, em razão de uma decisão, verificou- se um eventual dano que se queria ter evitado e que uma outra decisão poderia ter evitado.

Assim, pela noção de risco para o sociólogo italiano Raffaele De Giorgi, conclui-se que os avanços da biotecnologia na liberação de OGM, a despeito de produzirem riscos à saúde e ao meio ambiente, constituem um reflexo da sociedade contemporânea, mas desde que simultaneamente a essa produção de riscos sejam criadas possibilidades de tratamento e controle.

A ideia de risco como um paradoxo da modernidade e a avaliação dos riscos como um ponto de equilíbrio entre o princípio da precaução e as medidas sanitárias e fitossanitárias levaram a OMC a analisar casos concretos em que teve a oportunidade de aplicar o princípio da precaução. A análise de alguns desses casos constitui objeto do próximo tópico do trabalho.

2.3.3. A OMC, o princípio da precaução e o acordo sobre medidas sanitárias e