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2. OS OGM E A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

2.2. A ABORDAGEM PRECAUTÓRIA E OS OGM

Conforme será demonstrado no decorrer deste tópico, questiona-se a aplicação do princípio da precaução à liberação da comercialização dos OGMs por se entender que a comercialização deve ser obstada em caso de incerteza científica quanto à inofensividade, e mesmo nos casos de liberação da comercialização.

Hommel e Godard (2005, p. 270) explicam que os OGMs foram os primeiros alvos em matéria agrícola de uma regulação centrada na prevenção de possíveis riscos para o meio ambiente e a saúde pública, simbolizando o advento da era da precaução.

Os defensores da aplicação do princípio aos OGMs, adiante citados, entendem que essa precaução se faz necessária em virtude das incertezas quanto aos efeitos e impactos ao meio-ambiente e à saúde humana ou animal. Isso porque precaução envolve evitar riscos ante as incertezas e, em se tratando de saúde e meio ambiente, em que há possibilidade de danos irreparáveis, evitar riscos corresponde a não correr nenhum risco.

Como base no princípio da precaução, na França, em 1998, em decisão pioneira, o Conselho de Estado proibiu o cultivo de milho transgênico em razão de incertezas quanto ao impacto sobre a saúde pública (MACHADO, 2007).

Igualmente no Brasil, em junho de 1999, também com base no princípio da precaução, o Poder Judiciário25 impediu a comercialização de produtos transgênicos até que houvesse a apresentação de um Estudo de Impacto Ambiental, entendido como o único mecanismo hábil a avaliar os riscos ante a incerteza dos danos potenciais da comercialização de OGM. A decisão fundamentou-se basicamente no princípio da precaução, entendendo-se que havia perguntas sem respostas apropriadas quanto ao risco de uma liberação ampla e irrestrita de OGM. Houve recurso ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o qual reformou a decisão26. Até a presente data ainda não houve trânsito em julgado da decisão.

25 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ação Civil Pública n. 1998.34.00027682-0/DF. Autor: Instituto de Defesa do Consumidor – IDEC, Réu: Monsanto do Brasil S/A e a União. Juiz Federal Antônio de Souza Prudente, titular da 6ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=199834000276820>. Acesso em: 30 set. 2011.

26 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível n. 0009785-21.2000.4.01.0000. Apelante: Monsanto do Brasil S/A e outros, Apelado: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Relatora: Ministra

Rios (2004, p. 382) esclarece ser esta a primeira decisão judicial de suspensão do plantio de sementes transgênicas, além do que todos os pressupostos jurídicos declinados na sentença foram posteriormente incorporados ao Protocolo de Cartagena: a) obrigatoriedade de avaliação de riscos como condição à liberação de OGM no meio ambiente; b) identificação e rotulagem de OGM; e c) respeito ao direito dos Estados soberanos (como é o caso do Brasil) de fixarem normas ambientais de prevenção de riscos mais rígidas do que aquelas admitidas no Protocolo.

Brosset (2005, p. 292) acredita que esta decisão judicial se trata da primeira aplicação do princípio da precaução não para um produto determinado, como no caso de medicamentos, nem para um problema particular, tal como o efeito estufa ou a camada de ozônio, mas para um modo de produção antes mesmo que qualquer possibilidade de dano fosse constatada, concluindo também que a biotecnologia constitui o terreno predileto do princípio da precaução.

No cenário atual de desenvolvimento da biotecnologia existem algumas vantagens e desvantagens da introdução de culturas com genes modificados, mas sempre haverá uma desconfiança em relação a essas modificações, pois se trata de algo sobre o qual não existe ainda uma certeza absoluta quanto aos impactos de longo prazo. Além do enfoque ambiental, o princípio da precaução também pode ser utilizado no aspecto do Direito do Consumidor, já que os alimentos transgênicos também podem repercutir diretamente na saúde dos consumidores (VARELLA, 2005).

Como precaução significa evitar riscos, em se tratando de vida e saúde, onde os danos podem ser irreparáveis, evitar riscos significa não admitir qualquer risco. E riscos existem em virtude de suposições de que o consumo de alimentos transgênicos pode trazer algum mal à saúde humana, como por exemplo, desenvolvimento de câncer, alergias, além da possibilidade de aumentar a resistência a antibióticos, conforme foi demonstrado no tópico 1.2.3, que abordou os argumentos desfavoráveis à biotecnologia e aos OGMs.

Dois argumentos colidem quanto à aplicação do princípio da precaução à comercialização dos transgênicos. De um lado sustenta-se que inexistem provas de

Selene Maria de Almeida. Diário da Justiça 01.09.2004. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=199834000276820>. Acesso em: 30 set. 2011.

que os alimentos transgênicos causem danos à saúde, e de outro, argumenta-se que não existem provas de que não causem malefícios aos seres vivos que venham a consumi-los.

Siqueira e Trannin (2008, p. 299) destacam que “no âmbito da segurança ambiental dos cultivares transgênicos, é preciso considerar o balanço entre os benefícios e os riscos e não apenas os riscos potenciais, que em sua maioria são hipotéticos e sem comprovação científica”.

Refutando este argumento, Mae-Wan Ho (2004, p. 50) afirma que, apesar de parte da comunidade científica informar que não existem evidências de que a manipulação transgênica seja prejudicial, o correto seria indagar a respeito de sua segurança, pois se algo pode provocar um dano grave e irreversível, dever-se-iam exigir evidências que demonstrassem que a manipulação genética é segura.

Benedito e Figueira (2008, p. 171-172) demonstram que os intérpretes do princípio da precaução seguem duas correntes, uma delas mais branda e outra mais rigorosa. A versão mais rigorosa exige uma garantia de segurança absoluta impossível de ser alcançada. Já a versão mais branda pondera que a incerteza não deve ser utilizada como uma desculpa para a inação governamental.

Noiville (2004, p. 330) alerta para o risco de uma utilização rígida do princípio da precaução como forma de incentivar medidas protecionistas, ou até mesmo sua adoção através de medidas inúteis, obstando incentivos em pesquisa científica, multiplicando os atrasos em inovações e paralisando atividades econômicas e o comércio internacional.

Posicionamento também sustentado por Wedy (2009, p. 20), para quem o princípio da precaução, apesar do escopo de tutela do meio ambiente e da saúde pública, não pode servir de instrumento de óbice a empreendimentos econômicos, estudos científicos e atividades benéficas à humanidade.

A percepção de análise de todo e qualquer risco envolve não só a probabilidade de ocorrência como também a seriedade das consequências e os objetivos das ações que se almejam impedir com as medidas precautórias, razão pela qual o princípio da precaução deve passar pela análise de todos esses aspectos.

A polêmica crepita mais ainda quando confrontado o princípio da precaução com os acordos sobre medidas sanitárias e fitossanitárias no âmbito da OMC, principalmente porque essas medidas atingem a segurança sanitária, um dos

principais enfoques do princípio da precaução, o que pode levar ao entendimento de que há uma incompatibilidade entre esse princípio de direito ambiental internacional e as regras próprias da OMC.

A análise desse aparente conflito será objeto do próximo tópico, inclusive com o exame de casos concretos discutidos no âmbito da OMC, ocasiões em que, de acordo com Barros-Platiau (2005) pela primeira vez o órgão manifestou-se a respeito da forma de incidência do princípio da precaução no comércio internacional.

2.3. A APARENTE INCOMPATIBILIDADE ENTRE O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO