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Capítulo 5: Castro Soromenho – o dissidente do lusotropicalismo

5.1. Terra Morta e o(s) “outro(s)”

Terra Morta representa um microcosmo simbólico, a partir do qual o autor descreve de forma objetiva, em jeito neorrealista, o cenário de uma colonização portuguesa medíocre, onde expressões coléricas como “Se isto fosse dos Ingleses andava para a frente. (…) Aquilo sim, é que é colonizar” ou “A pátria não é mãe, é madrasta” (Soromenho 2008: 31-32) servem para denunciar a mediocridade da condição humana nas colónias portuguesas. No entanto, o relatório de censura (anexo 3) identifica “episódios de pouco interesse”, na medida em que retratam a “existência precária e pouco dignificante” dos funcionários da administração, a “miséria de vida” e “abandono dos indígenas”, e a “penúria da população

negra explorada e massacrada pelos brancos”, contrariando assim a propaganda difundida pelos parâmetros lusotropicais. Num primeiro momento, são as vozes das múltiplas personagens do texto soromenho que indiciam a grande oposição entre os brancos colonizadores no geral, isto é, entre a colonização portuguesa e estrangeira e entre os próprios colonos portugueses.

Os brancos colonos dividem-se entre “brancos do governo” e “brancos das lojas” e entre “novos colonos” e “velhos colonos”; e subdividem-se entre o desejo de regresso à metrópole e o desejo de ficar na colónia, onde se denota a ideia contrastante de miséria e abundância em ambas as partes. Ora repare-se na descrição da colónia e a imagem que a metrópole tem da mesma através das personagens Joaquim Américo, Jaime Silva, Vasconcelos, Carlos Valadas e Gregório Antunes, funcionários da administração colonial de Camaxilo:

– Estou farto disto… (…) Já cá estou há cinco anos e não tenho cheta. Raios partam a vida!

– Todos nós estamos fartos. Mas nos outros sítios é a mesma coisa – disse Valadas, com um gesto largo. – Olha, apesar de tudo, eu prefiro isto à Metrópole. Fui lá há quatro anos e no fim de um mês já não podia com aquilo. A gente sai da terra e anos depois de andar por cá já não entendemos aquela gente. Encontrei tudo mudado. Punha-se um homem a falar com um antigo amigo e vinha logo outro avisar-nos que nos puséssemos a pau porque o tipo era da Polícia. A gente já nem sabia com quem havia de falar. Raspei-me para cá, porque ao menos aqui não há dessas coisas. Uma porcaria. Não é que eu seja político, estou-me nas tintas para a política, mas c’os diabos!, um homem sempre fala no governo e não pode ser obrigado a concordar com tudo que se faz. Ou já não somos portugueses? (Soromenho 2008: 22)

– Não acreditam [os da Metrópole] que alguém venha das Áfricas, como eles dizem, sem trazer fortuna. Não fazem ideia nenhuma do que sejam estas terras. Eles dizem que das Áfricas só não vêm ricos soldados e os degredados… Mas não é só na província, mesmo em Lisboa, e até doutores, não fazem ideia do que isto é (Soromenho 2008: 23).

A família é, apesar de tudo, a ligação mais estreita entre a colónia e a metrópole. Um possível regresso é pensado em prol da família que se abandonou na hora da procura do “Eldorado” em África. Não obstante o apego emocional, a imagem de família apresentada por Valadas, uma das personagens do texto, não deixa de ser caricata:

– Qual família – ripostou Valadas. – Não me falem em família, por amor de Deus! A família só serve para nos encravar a vida. Olha, quando cheguei à minha aldeia, não houve parente que não me viesse contar as suas desgraças. Era uma choradeira pegada, santo Deus! E não houve um só que não me pedisse dinheiro emprestado ou me propusesse sociedade numa quantidade de negócios. A minha gente só queria ver o que eu trazia nas malas. E quando souberam que eu não era rico, até bufaram de raiva! Tenho um tio, velho e mau que nem vocês queiram saber, que até pôs em dúvida que eu tivesse estado em África. (…) – Não acreditam que alguém venha das Áfricas, como eles dizem, sem trazer fortuna. Não fazem ideia nenhuma do que sejam estas terras. Eles dizem que das Áfricas só não vêm ricos os soldados e os degredados… (Soromenho 2008: 23).

A descrição da relação com os nativos evidencia o choque cultural mais significativo denunciado por Castro Soromenho. Para além da hierarquia subjacente ao binómio colonizador/colonizado, existe uma relação de “antipatia profunda” que leva ao ódio mútuo. A situação social e cultural dos negros contratados é alvo de crítica ao longo de toda a narrativa, desde o choque a nível cultural (pela incompreensão dos brancos acerca dos negros e vice-versa), à prepotência no trabalho por parte do branco, às condições laborais dos contratados negros (horas de trabalho, alimentação ou assistência médica). O choque cultural verifica-se a vários níveis, mas o “verdadeiro traumatismo cultural” verifica-se na medíocre assistência médica que é dada aos negros no hospital da Companhia dos Diamantes.

Para além do antagonismo entre brancos, entre brancos e pretos verifica-se a supremacia da autoridade europeia, postula-se a obediência dos autóctones e reina uma antipatia recíproca:

O largo estava cheio de negros (…) Eram homens e mulheres a contas com os impostos, eles por relapsos ao seu pagamento, elas por os seus companheiros terem fugido a essa obrigação, andando a monte” (…) “D. Jovita falava sempre aos com secura. ‘Nunca se mostra os dentes aos negros, porque abusam logo’ dissera-lhe um dia o marido. Mas não era preciso que ele a acautelasse, porque ela detestava-os. E às negras chegava mesmo a odiá-las. (…) Os negros também não gostavam dela, mas tinham-lhe medo e respeito, porque era branca e mulher do administrador, a pessoa mais importante da terra (Soromenho 2008: 44).

Por conseguinte, o choque cultural é evidente, na medida em que o poder da dominação inferioriza o negro e a respetiva cultura popular local, nomeadamente o som dos batuques e as cantigas:

Ao deixarem a planície para entrar na estrada que desce o vale, os negros calaram-se. Eles sabiam que o administrador não queria ouvir cantigas dentro da vila. Só “siô Américo” gostava de negros a cantarem, mas ele era aspirante e quem mandava em todos os negros e brancos era o administrador (Soromenho 2008: 55).

Da mesma forma, a cultura europeia não era aceite, tal como se verifica no hospital, onde os negros feridos no trabalho para a Companhia de Diamantes eram tratados:

Todos odiavam o hospital, odiavam-no até à cólera ou ao desânimo. O hospital era um mundo que eles desconheciam, cheio de hostilidade, onde os torturavam de todas as maneiras, sobretudo quando os picavam com injecções, coisa que os apavorava. (…) Depois ali não eram permitidos braseiros (…) nem havia mulheres para os acompanhar,

nem curandeiros com as suas mezinhas, nem feiticeiros com as suas rezas. (…) Ali, era tudo à europeia (Soromenho 2008: 90).

Em Terra Morta, as referências ao Brasil pela voz orgulhosa mas hegemónica66 de

certas personagens estão presentes, no sentido “ – ‘Grande terra, sim, senhor! E fomos nós, portugueses, que fizemos aquilo’”; contudo outras vozes, de forma indulgente, reclamam a multiculturalidade daquela terra que é dos “homens de todo mundo (…) E dos negros” (Soromenho 2008: 32). Afinal o Brasil pertenceria a quem? É nos diálogos entre Joaquim Américo e Gregório Antunes que se reflete o questionamento da identidade do outro brasileiro pós-independente, da mesma forma que se questiona o lugar do negro no processo de formação do Império colonial português. O velho colono Gregório Antunes assim descreve o negro:

(…) é raça que não presta. Nem para cavar têm jeito. (…) [São] ‘crianças grandes’ que só deviam ser tratadas dando-lhes ‘pão com uma mão e chicote com a outra’. Américo [novo colono] espantava-se com o que ouvia e chegou a julgar aquele homem um monstro (Soromenho 2008: 33).

Da descrição da personagem Joaquim Américo nascida no Brasil e exilada em Camaxilo (Angola), transparece a relação existente entre a Metrópole, África e Brasil num período de regime totalitário e de movimentos de libertação, como demonstra o seguinte excerto:

O Brasil estava sempre no seu pensamento. Mas quando voltaria a São Paulo? Já se tinham passado três anos de exílio e ele continuava a interrogar-se: Quando? Quando?... Os amigos do outro lado do Atlântico aconselhavam-no a esperar. Ninguém sabia quando a noite fascista terminaria, mas os homens livres não desanimavam, lutavam e sofriam. O mundo estava a agitar-se e os homens que não queriam ser escravos caminhavam na noite, a passo certo, cheios de ódio e de esperança (2008: 34).

Repare-se que a personagem Joaquim Américo revela simetrias com o escritor Castro Soromenho no que respeita a ambiguidade da identidade cultural; nascido no Minho,

66 O conceito de “Império” está implícito e incorpora-se na personagem do velho colono Gregório Antunes.

Atente-se na opinião de Henrique Galvão (1933) referente à palavra “Império” decorrente do “Acto Colonial”: “A palavra [Império] passou ao domínio público e parece ter correspondido, verdadeiramente, a uma aspiração nacional de ressurgimento. (…) E facto notável: não foi só na Metrópole – cabeça do Império – que a palavra teve acolhimento. Também as colónias se encontraram a pronunciá-la, dum dia para o outro, e, tão sensìvelmente como se ela fôra palavra de sempre, habitual. Cremos até que nesse Portugal distante tem èla sido melhor compreendida do que na Metrópole. Isto significa que as condições para a realização duma ideia imperial estão formadas no fundo espiritual da Nação e que a consciência nacional está apta a reformar-se, a reconstituir-se, segundo uma expressão que corresponde a um grande ideal português” (Cf. Henrique Galvão, “As feiras de amostras coloniais”, in Boletim Geral das Colónias. Nº91. Vol. IX. 1933: 11)

Joaquim Américo ainda menino de colo parte para o Brasil com os pais, cresce numa fazenda de café em São Paulo; em adulto e por razões políticas exila-se em Angola: “Tinha como certo o seu regresso a esse país [Brasil] que era como sua pátria” (Soromenho 2008: 27); Soromenho nasce em Moçambique, medra em Angola, escreve em Portugal e edita no Brasil.

Também à semelhança de Castro Soromenho, a personagem Joaquim Américo – que “Não se adaptava à vida colonial e era considerado mau funcionário, sem pulso para os negros” (Soromenho 2008: 34) – denuncia a falta de apoio da metrópole em relação aos colonos de Angola e a desumanização do negro. Sendo a personagem central da narrativa, é através da visão de Joaquim Américo que o universo ficcional se estrutura. Américo representa os portugueses que partiram para África com o intuito de aqui encontrar uma vida mais próspera. Também representa aqueles que por apresentarem ideais divergentes do governo são obrigados a exilarem-se pela sua actividade política revolucionária. A biografia de Américo ajuda a entender o conflito com os seus colegas da circunscrição de Camaxilo, sobretudo em relação ao tratamento dos negros, pois aqueles manifestavam um racismo primário evidente.

Joaquim Américo vê-se confrontado com as desigualdades e injustiças na relação branco e negro, onde o poder branco se manifestava ferozmente através da exigência de pagamento de impostos apesar de habitarem em senzalas ou no recrutamento para trabalho forçado sob o chicote dos sipaios, onde, no caso de fuga, as respetivas mulheres e os sobas seriam perseguidos e castigados.

Também existe o choque de relações entres os pretos, onde se distinguem os assimilados cúmplices da ação colonizadora, mas geralmente renegados pelos habitantes das comunidades negras mais tradicionais. Poucos eram como Xá-Mucuari, que resiste corajosamente à ocupação portuguesa:

[Xá-Mucuari] Odiava todos os que se tinham vendido aos brancos para serem sobas, entregando-lhes quantos homens eles queriam para os trabalhos públicos, para as minas de diamantes que se acabavam de descobrir e para o exército, e todo o dinheiro do imposto. Alguns até levavam as suas próprias mulheres e mostravam-se muito agradados se eles se deitavam com elas (Soromenho 2008: 65).

Quanto aos habitantes afro-europeus, os mulatos filhos de velhos colonos, vivem na indefinição identitária, em contextos socioeconómicos muitas vezes distintos uns dos outros, como se depreende da descrição do vestuário do mulato João Calado, filho de

vinha a subir a rua, de mãos afundadas nos bolsos das calças, a camisa aberta no peito” (Soromenho 2008: 70). Eles são também o elo comercial entre brancos e negros devido ao uso da língua local e da língua portuguesa, sem contudo exercerem um trabalho ou profissão definida e são tidos como preguiçosos. Panário, pai do mulato João Calado, assim o descreve:

(…) essa ‘cáfila’ de mulatos’ não era de confiança. – Isto de mulatos, senhor Sampaio, é raça ruim que puxa para o negro. Eu tenho um filho mulato e sei de que força eles são. O meu só está à espera que eu feche os olhos para ir rebentar o vintenzinho que ponho ao canto. Mas o que ele não sabe é que a castanha lhe há-de rebentar nas unhas (Soromenho 2008: 188).

Já a mãe negra contrapõe o sentimento do pai: “– Tu é fio de branco. Eu pariu você na casa dele. Não é um calquer, não” (Soromenho 2008: 81).

Em jeito de síntese da análise das relações socioculturais em Terra Morta, entende-se que Castro Soromenho, apesar da sua condição de branco, filho de administrador colonial, conseguiu captar a essência das relações interculturais entre brancos, pretos e mestiços, sem descurar a denúncia acutilante da desumanização tanto de uns como de outros, no processo colonizador. Do ponto de vista identitário, a obra soromenha demonstra que o colonizador português em África, ao afastar-se da metrópole passa a sofrer uma perda crescente da sua identidade original, “por muito que castre a das gentes dos espaços usurpados” (Torres 1985: 173), criando uma crise de identidade nacional própria e causando, da mesma forma, uma crise de identidade no colonizado, porque, o africano, na luta pela libertação, “ao [querer] reencontrar a sua identidade perdida verificará que essa identidade já é outra, que a dialéctica da História a fez outra. Não se pode mudar a História que se teve, e a História que se teve muda tudo” (Torres 1985: 173).

A problemática das relações culturais e raciais torna-se mais evidente na segunda fase da obra soromenha, na medida em que confrontam, no mesmo espaço narrativo, vários grupos culturais e raciais, que se debatem entre eles e com eles mesmos, em ambiente decadente da situação colonial. Ao referir-se às obras da segunda fase, nomeadamente Terra Morta e Viragem, enquanto “drama moderno”, Roger Bastide, em L’afrique dans l’oeuvre de Castro Soromenho, diz que aqui “é o negro que perdeu os seus deuses e que se debate no vácuo, é o branco que perdeu o contacto com a sua sociedade e a sua civilização e se afunda lentamente não sei em que pântano, em que lhe falta até coragem para se debater, para lançar ao menos um grito de apelo” (Bastide 1959: 25).

Na primeira fase soromenha, como já foi referido, o branco não entra no espaço narrativo, pois é exposta a sociedade tribal pré-colonial, à exceção das narrativas de cariz histórico como A maravilhosa viagem e A expedição do oiro branco, que se apresentam como trabalho de investigação assente nos relatos escritos de Henrique de Carvalho. É a partir de Terra Morta, marco cronológico da segunda fase, que aparece a sociedade colonial, composta por brancos, pretos e mestiços. O traço comum das duas fases é o espaço adotado: a Lunda – Camaxilo para Terra Morta e A Chaga e Posto de Cuango para Viragem. Enquanto na primeira fase o negro é ator social inserido numa sociedade tribal, na segunda dá-se lugar à sociedade colonial em que o negro perde qualquer lugar que haja, tornando-se socialmente invisível. É esta invisibilidade do negro que Soromenho vai denunciar, dando- lhe presença no espaço da narrativa enquanto personagem atuante (Gonçalves 1971: 61). Contudo é o branco que orienta o enredo e que delimita o espaço e nunca o inverso, como se pode ler em Terra Morta: “As ordens eram terminantes: cantigas só nos batuques das senzalas. Ali moravam os brancos, os senhores, e os negros não podiam levantar a voz porque isso incomodava-os” (Soromenho 2008 [1949]: 87). A ida ao espaço branco tem sempre volta à aldeia tribal. Castro Soromenho descreve a convivência destas duas sociedades que se apresenta como “uma partida de xadrez, em que participa[m] peças negras e peças brancas”, onde não se chega a um resultado final, e limita-se a mostrar as “regras do jogo ou, quando muito, descreve as jogadas mais importantes. O cheque-mate está para além da obra” (Gonçalves 1971: 63). Neste sentido, Soromenho revela-se um farol para um povo oprimido, quer negro quer branco ou mestiço. Para o negro apela o direito à independência e a um lugar em equidade nas relações “raciais”; para o branco reivindica a liberdade do ser; para o mestiço a liberdade de escolher.

Para além da ficcionalidade que lhe é legítima, a literatura colonial é indissociável do contexto histórico-social e de todo o dinamismo de que é revestida a cultura da diáspora, ao qual a narrativa Terra Morta não é alheia. Por conseguinte, a análise cultural da literatura colonial portuguesa, nas suas diversas fases, permite às novas gerações entender as tensões socioculturais que, consciente ou inconscientemente, ainda perduram no imaginário coletivo português, pois é sabido que se deve entender o passado para melhor compreensão do presente, visando a construção de um futuro melhor.

Castro Soromenho é interventivo na tentativa de libertação cultural dos negros e de igual forma dos colonos, por vezes também mártires do Estado Novo. O quotidiano dos colonos e colonizados, vítimas do mesmo processo colonizador, é retratado eximiamente de

Colonial, consegue situar-se em ambos os lados da colonização e procura através da escrita uma catarse ideológica. Na verdade, em Terra Morta há uma ligeira inclinação para a denúncia das clivagens existentes dentro do próprio mundo branco em Camaxilo. Não obstante, a relação branco/negro e o choque de culturas são uma constante na narrativa desta fase soromenha – Terra Morta –, mas o fator sociocultural novo é a relação branco/branco, como o questionamento do mundo novo e do outro mundo velho ou, por outras palavras, a predição do declínio do império colonial português.