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Capítulo 3: Reis Ventura – legitimação da ideologia colonialista e lusotropicalista

3.1. Representação da mestiçagem em Reis Ventura

Aqueles que se “contemporizam”, isto é, que “evoluem” no sentido em que é determinado pelo Acto Colonial de 1933, gozam do “direito” de formação para que, necessário à sobrevivência do colonialismo, sirvam de elo de ligação entre os colonizadores, que se encontram em minoria, e o povo africano em situação de maioria. A oferta formativa, de modelo europeu, é administrada a um grupo de africanos, selecionados dentre os estratos sociais superiores das sociedades tradicionais, por forma a qualificá-los, ou antes profissionalizá-los. Poucos são os que têm a oportunidade de estudar em circunstâncias iguais às dos europeus. Esses poucos, “motivados pela ascensão nas sociedades colonial e metropolitana, esforçaram-se, num primeiro

momento, por identificar-se com o invasor, com o colonialista. Alienaram-se culturalmente, constituindo então o que geralmente se designa de elites coloniais” (Venâncio 1992: 11). É esta elite que protagoniza os romances venturianos.

Reis Ventura é marcadamente um autor com estreita ligação ideológica com o pensamento colonial português, baseado no espírito de “missão civilizadora” do “bom povo português”, num Portugal que vai do “Minho a Timor”. Na senda do lusotropicalismo ou do elogio da miscigenação, Ventura, essencialmente em Queimados do sol (1966), traça o perfil da população branca em Angola, apresentando simultaneamente, de forma inovadora, a condição de mestiço, com fim de afastar a carga negativa de que é revestida.

Se actualmente “mestiço” é valorizado e esteticizado nas culturas contemporâneas, até há relativamente pouco tempo, ou seja, até meados do século XX, o vocábulo “mestiço” apresentava uma carga negativa e um valor pejorativo.

A “mestiçagem” surge em contexto colonial, nasce da tensão entre colonizador e colonizado e serve para designar os filhos de cruzamentos raciais. Segundo Laurier Turgeon, em Regards croisés sur le métissage (2002), o conceito encerra a expressão máxima da transgressão entre o Ocidente e o “outro” (2002: 2). O estigma que lhe associado advém do facto da origem da palavra ser do domínio animal, ou seja, é relacionado com uma anomalia biológica que resulta do cruzamento de duas espécies diferentes – “il évoque l’hybridité, d’abord, chez les ovins et, ensuite, chez les humains” (2002: 3), conservando assim em todos os quadrantes do colonialismo o valor negativo e racial.

A questão do hibridismo no caso português sustenta-se com a apropriação da teoria do lusotropicalismo e com a defesa de um “Portugal híbrido”, como subterfúgio para levar a cabo e legitimar a missão colonizadora. A máquina colonial serve-se da mestiçagem ou hibridismo para, por um lado, criar intermediários, a nível religioso, militar e comercial, para transpor as fronteiras vedadas pelos africanos; por outro, para transparecer que a exploração racial pertence ao passado e para esbater as diferenças de raça ou cor. Para este efeito, Reis Ventura, numa ideologia lusotropicalista, recorre à exotização e à erotização da mulher mestiça.

3.1.2. A exotização e erotização da mulher mestiça

A fim de indagar sobre a condição de mulher mestiça, nomeadamente, no que se refere à exotização e a erotização do elemento “híbrido” da sociedade colonial, atente-se no excerto de Filha de branco (1960) que se segue:

Era uma mestiça já na casa dos quarenta, mas ainda bonita e donairosa. Os seios rijos e pontiagudos retesavam-lhe o tobralco da blusa alegre. As mãos esguias e bem tratadas (…) os seus olhos negros, que enchiam de graça e malícia o seu rosto ladino (…). Vestia um calção largo e curtíssimo, que lhe despia, até à nádega, as coxas roliças e morenas. Quem se pusesse a jeito e em ocasião propícia, podia até ver-lhe ainda mais: tudo e o resto… (Ventura 1960: 14).

Nos romances de Ventura, o “mestiço” é sempre uma mulher (filha de branco e preta) bem-sucedida e inteligente, característica que herda do homem branco, e esbelta, atributo que herda do exotismo da mãe negra. Veja-se a personagem Zá, em Filha de branco, “Nem pela cor da pele nem pelo encrespado ligeiro dos cabelos se diferençava das morenas de Viseu ou de certas raparigas do Vale do Tâmega. Longe de se sentir inferiorizada, sobressaía no colégio, pela inteligência, pela beleza do rosto e pelo talhe donairoso do seu corpo esbelto” (Ventura 1960: 31); “a paternidade da garota estava-lhe estampada na carita ladina em que se reproduziam, amorenadas e suavizadas pelo sangue materno, as feições do velho comerciante” (1960: 20).

A mestiça é geralmente motivo de ciúme por parte da mulher branca: “sobreveio uma crise de ciúmes da Rosinda, que deu em julgar exageradas as naturais atenções e delicadezas do marido para com a bonita mestiça” (Ventura 1960: 57). Como refere o narrador de Filha de Branco, “nesse ano de 1937, ainda escasso de mulheres brancas, seguiam e perseguiam, tontos de luxúria, qualquer corpinho bem feito, de preta ou de mestiça” (1960: 73), o que provocava nas poucas esposas brancas existentes ódio de ciúmes. Ao longo da narrativa, o autor dá a entender que as terras africanas harmonizam e “reparam” a mulher branca. O caso da Rosinda, uma mulher franzina, é exemplo. Depois de uma estadia em Moçambique, a mulher “melhorara de aspecto”, apresenta “formas” “sem banhas excessivas”, tornou-se loira, o rosto miúdo de tez fina e sem rugas, “com covinha convidativas na comissura dos lábios muito pintados, ganhara um tique malicioso e desenvolto, que a tornava reparada e apetecível” (1960: 159). Acrescenta-se ao facto da emigrante europeia por terras africanas ter a possibilidade de viajar e ganhar uma boa vida.

O assédio à mulher mestiça é uma constante, parecendo aquela “uma rolinha no meio de milhafres” brancos, novos e velhos. No mesmo romance, a personagem Anselmo, construtor de “stands” da Exposição-Feira, casado com a portuense “de seios pendentes como papaias muito maduras e de feições grosseiras de antiga regateira do Mercado do Bulhão” (1960: 78), deixa-se enfeitiçar pelo “belo pedaço de rapariga”, de “talhe airoso de gazela nova, os seios espetados contra a blusa justa, e todo aquele ar de malícia no rostinho gaiato”, causando uma “irreprimível onda de luxúria” na mente do construtor (1960: 80).

No casamento, a mulher mestiça é sensual e sedutora. Casada com Miguel, Zá “era uma mulher ardente”, apaixonada pelo marido, de temperamento sensual, “todas as horas livres eram poucas para a sede amorosa da recém-casada” (1960: 125); mesmo com a idade a avançar, a mestiça mantém “o bom gosto de vestir”, conserva a “luz maliciosa dos olhos pretos, a suavidade da pele e toda a pujança roliça da sua excitante feminilidade” e é sempre fiel (1960: 141).

Já ao homem mestiço é atribuída uma descrição física e psicológica oposta à da mulher mestiça. Veja-se, em Filha de Branco, o exemplo do mulato João Felgueiras, conhecido pela alcunha de Estreitinho, “bem cabida à sua figura de magricelas esgrouviado”: “Com grandes orelhas muito despegadas do crânio, uma cara mais chupada e enrugada que uma ameixa seca e uns olhos manchados por sucessivos ataques de paludismo, era um mestiço inteligente e trabalhador, mas sempre de mal com a vida” (Ventura 1960: 75-76). A razão do seu azedume enraíza-se “em complexos da primeira infância, gerados no criminoso abandono a que o votara seu pai: um desses parvalhões enfatuados e sem escrúpulos, que aparecem em toda a parte, mesmo na boa terra de Angola” e também por causa deste mau pai, o Estreitinho critica “tudo e todos, mas sobretudo a gente da alta e do Governo” (1960: 76). Assim, as críticas ao Governo ou à sociedade branca por parte da comunidade mestiça estão justificadas pelo imperdoável comportamento de um pai sem escrúpulos que, segundo o autor, não tem paralelo ou não é regra. Além do mais, para um maior descrédito, o mestiço ou o negro é sempre associado ao alcoolismo ou à preguiça.

A “osmose racial” (Ventura 1960: 139) verifica-se ao longo da trilogia de Luanda, com um principal destaque no romance Filha de branco. O progresso da cidade dos anos 50 promove, segundo o autor, a harmonização entre brancos e pretos; “garotos brancos e pretos brincam juntos, confraternizando naturalmente, sem preconceitos nem complexos”

(1960: 137), o povo português é teimoso e empreendedor, fraterno e camarada e infiltra- se entre o povo indígena, ao que o autor chama de “fusão luso-tropical”:

Com a influência niveladora das ideias cristãs, com a similitude de preocupações que aglutina e harmoniza os pobres, com temperamento pacífico, alegre e compreensivo dos pretos de Angola e com o carácter humano e sociável do branco português, a osmose racial processa-se através desta zona porosa de S. Paulo, com o auxílio inconsciente mas profundo dos dois mais fortes instintos do emigrante lusíada: a ânsia de ganhar dinheiro e o imperativo sexual (Ventura 1960: 139).

Surge, em Filha de branco, a uma primeira referência a “emigrante lusíada” ao invés de “colono português”. Este emigrante de “sangue peninsular” procura, para além do enriquecimento fácil e rápido mas honesto, aventuras sexuais com pretas ou mulatas. Segundo o autor, o emigrante europeu distingue-se, na aproximação à mulher preta ou mulata, pelo “longo assédio de gentilezas e cortesias” para “harmonizar os sentimentos” antes de chegar à “satisfação dos instintos”. O autor ressalva assim o “cavalheirismo sedutor do macho”:

Mesmo quando o cavalheirismo sedutor do macho finda com a saciedade dos sentidos, todo o processo do namoro favorece a confraternização racial, destruindo, na fogueira dos instintos, as mais inibições da convivência. Para atingir a bela estátua bronzeada, não basta, muita vez, conquistar o coração primitivo e desconfiado da moça: – há que atrair a simpatia de amigos e parentes (Ventura 1960: 140).

Desta forma, o autor está convicto que “o forte instinto sexual dos portugueses desempenha também o seu papel na fusão luso-tropical”, pois a exemplar confraternização racial é um “obra do espírito e da carne”: “obedecendo inicialmente aos ímpetos do sangue peninsular e à poderosa sugestão afrodisíaca da mulher tropical, não é raro que o branco de Angola acabe por se prender sentimentalmente à alma carinhosa e dedicada da preta ou ao temperamento sensual e meigo da mestiça” (Ventura 1960: 140).

Capítulo 4: Guilhermina de Azeredo – visão feminina da (des)ilusão