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1. Rota Servandina entre 1795 e 182

1.2 A chegada ao Velho Mundo

Após cinqüenta dias de viagem, chega frei Servando a Cádiz, onde já o aguardava uma ordem real na Audiência. Juan Bautista Muñoz, oficial da Secretaria das Índias e autor de outra já referida dissertação sobre Guadalupe, recomenda o frei ao ministro de Graça e de Justiça, Eugenio de Llaguno y Amírola. A Mier não cabia outra opção que a da via reservada, isto é, uma audiência com o rei que dependia dos conhecidos covachuelos87. A sua demanda de ser ouvido no Conselho das Índias tem como

86 Clara alusão à passagem bíblica em que Jesus Cristo, também à meia-noite, no chamado domingo de Ramos, foi

levado preso pela milícia judaica e conduzido ao sinédrio, onde a partir de então deveria se cumprir o destino descrito nas escrituras. BÍBLIA, Novo Testamento. Evangelho de São Lucas. Português. Bíblia Sagrada. Tradução: João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1975. Cap. 22, vers. 54.

87 Expressão do século XVIII usada para designar a classe de burocratas, conselheiros e agentes das

cortes, com atributos políticos e administrativos, que intermediavam e se interpunham na relação direta entre rei e súditos. Eles eram chamados de covachuelos por suas secretarias serem localizadas

resposta oficial a de que, primeiro, se obedecesse ao arcebispo, depois fosse ao Convento de Las Caldas e que, somente após dois anos, se reapresentasse a pretensão. A fúria de Mier se dirigia nesse momento contra Francisco Antonio León, alto funcionário do Conselho das Índias, por quem as lides vindas do Novo Mundo deveriam passar e quem, segundo o pensador dominicano, estaria de conluio com as autoridades do vice-reino da Nova Espanha para a fim de que desse prosseguimento na metrópole à perseguição de que se sentia vítima.

Recluso em Las Caldas, o abuso de poder dos provinciais responsáveis por sua detenção conduz o sacerdote à primeira fuga, quando descobre que as cartas que enviava ao conselho e a Madri eram abertas e não alcançavam seu destino. O mexicano percebeu que não havia outro remédio contra sua perseguição senão aquilo que Jesus Cristo havia aconselhado aos seus discípulos: cum persecuti fuerint vos in hac

civitate, fugite in aliam88. Porém, por não conhecer a região e nem os caminhos, é enganado por um

paisano a quem pediu ajuda e, dessa maneira, foi reconduzido ao convento. Dessa fuga, Frei Servando é encaminhado ao convento de San Pablo de Burgos, aonde chegou uma semana antes do Domingo de Ramos, um ano após ter saído do México. O prior de Burgos ao ver os papéis que o trouxeram a Las Caldas, compreendeu o arbítrio da prisão e concedeu ao dominicano maior liberdade no convento, onde foi possível estabelecer boas trocas culturais e ter bom trato, segundo ele mesmo conta:

“Toda la nobleza, o como llaman, los primos de Burgos, que se creen la primera de España, me visitó; los eclesiásticos franceses emigrados de que estaba llena la ciudad, me dieron mucho crédito de literatura; y como yo por divertirme diese lecciones de elocuencia a los jóvenes que venían de las Universidades a vacaciones, adquirí tanta fama, que se me consultaba en todo asunto literario”89.

É Gaspar Melchor de Jovellanos quem sucede a Llaguno como ministro de Graça e de Justiça, e por possuir amigos em Burgos que conheciam ao ministro, Mier foi a ele recomendado, travando-se assim o encontro entre ambos. Entretanto, a intervenção de Jovellanos não foi suficiente para auxiliar o dominicano em seu processo. Embora estabeleça com o asturiano uma boa troca cultural, visto que Mier absorveria do então ministro bases que construiriam seu próprio arsenal teórico, poucas linhas são dedicadas a esse encontro nas Memorias. Ao ser enviado para Madri, frei Servando foi ouvido por

covachuelos, que analisaram seu caso, sem ter a possibilidade de uma audiência reservada com o rei.

Em 1797, ainda em Madri, o dominicano reclama da sentença de Haro ao Conselho das Índias, que avoca o conhecimento da causa e pede que um ditame histórico e teológico seja realizado sobre o SG. Recluso no convento, Mier escreve a defesa do sermão para apresentar perante o Conselho, justificando a nas covas (covachas) e reentrâncias do palácio real.

88 TERESA DE MIER, Servando. Memorias. Edição e prólogo de Antonio Castro Leal. México: Porrua, 1946.p. 230. 89 Ibidem, p. 233-234.

sua tese e revelando toda injustiça empreendida contra ele. Em 1799, sua causa é aprovada pela Real Academia de História e a perseguição governamental é condenada pelos estudiosos, que não enxergaram motivo de heresia manifesta em seu sermão. O contato com a intelectualidade ilustrada e cética, como a espanhola, faria com que Mier se contagiasse desse espírito. Além disso, o Conselho fiscal também reconhecia e apoiava o ditame da Academia e pedia indenização para Mier.

Tal conselho ordenou ao prior do dominicano que o provesse dos recursos necessários para sua manutenção em Madri. Frei Servando recolhe o dinheiro e se mantém oculto com ajuda de americanos; entretanto uma nova intriga envolvendo o seu nome teria sido realizada por León, quem informara ao Conselho que o mexicano tentara matar o ministro Caballero. Para salvar sua vida, Mier empreende uma nova fuga e parte para Burgos em uma mula, pois lá possuía amigos que poderiam enviar-lhe à França. Seu objetivo era chegar até o território francês, de onde partiria para Roma para se secularizar.

Por ter chegado a Burgos ocultamente, e por somente sair à noite, o comportamento do dominicano é visto como suspeito pelo hospedeiro da estalagem em que estava, o qual teria vasculhado seu quarto, encontrado a ordem para comparecer ao Conselho em Salamanca e avisado a milícia local. Mier é confinado em uma cela do convento de San Francisco e recebe a ordem de León para retornar a Las Caldas e cumprir a sentença original. Tamanha perseguição o motiva à nova fuga, como único recurso para provar sua inocência. O mexicano foge para Madri, onde tem muitos contatos e lá o informam que León espalhou requisitórias por toda Espanha contra ele e que, em Burgos, recolheu todos os seus pertences e escritos. Frei Servando recebe de seus amigos documentos falsos pertencentes a um certo Doutor Maniau e parte para Alcalá de Henares, onde sabia da existência de um francês contrabandista que ajudava a cruzar a fronteira para a França. Recorreu ao uso de maquiagem e disfarce que, segundo ele, o tornaram irreconhecível.