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3. Frei Servando Teresa de Mier no primeiro e segundo Congressos Constituintes Mexicanos

3.3 Principais manifestações de Mier no Congresso de 1823

3.3.3 La Profecia del Doctor Mier sobre la federación mexicana

3.3.3.1 Desalento servandino diante da independência conquistada

A Profecía237 de Mier representa, como observou Villoro, a primeira demonstração pública da

compreensão de uma revolução infeliz, diante do desolador cenário que surge no pós-independência para os idealizadores dos Estados nacionais hispano-americanos238. Entendido por muitos estudiosos

como peça de oratória iconoclasta e antidogmática, a grande originalidade deste discurso está na prematura percepção de frei Servando em enxergar as mazelas que assolariam a nação mexicana,

236 Ibidem, p. 298.

237 A partir deste momento, é conveniente referir-se à Profecía del doctor Mier sobre la federación mexicana como

Profecía, seguindo-se o índice das obras de frei Servando, localizado na página xiv.

238 VILLORO, Luis. El proceso ideológico de la revolución de independencia. México: Secretaría de Educación

tendo por base os fenômenos sócio-políticos que se colocavam diante dos seus olhos, antevendo as provações por que passaria o México, caso não fossem adotadas medidas capazes de reverter o trágico rumo da nação. A Profecía pode ser compreendida pela moderna ciência política como um exercício de futurismo, em que um pensador com acurada compreensão da cultura política em que vive percebe tendências futuras da nação geradas por escolhas do presente e, com isso, estabelece prognósticos que raramente subvertem as situações previstas.

Num primeiro momento, como atitude histórica dos ideólogos da revolução, acreditava-se que o principal motor do progresso seria o planejamento intelectual apto a converter a sociedade tradicional em moderna e assim impulsionar as grandes metas civilizatórias. Os pensadores mostravam-se confiantes na capacidade dos projetos racionais para organizar a nação e desestabilizar as heranças de um passado colonial. Julgava-se que as mazelas do passado poderiam ser resolvidas pela discussão, o conhecimento e organização.

No caso mexicano aliavam-se presságios que indicavam as glórias futuras a que o país se destinava. O primeiro sinal profético era a grandiosa riqueza de que os ideólogos acreditavam ser dotada sua pátria, esteado em especialistas e estudiosos, como Humboldt. A abundância de minerais e a fartura agrícola não eram fruto do esforço humano, mas sim, um título distintivo de eleição, como sinal da providência divina. A aparição de Nossa Senhora de Guadalupe, como já foi frisado em outros capítulos, seria outro emblema que outorgava ao México um futuro singular entre as nações do globo, abrindo-lhe possibilidades fechadas para os outros povos.

Em escritos anteriores à Profecía, Mier, assim como seus contemporâneos, enxergava os sinais de um destino brilhante que faria o México ocupar um lugar correspondente ao seu tamanho e riqueza. Depreende-se de seu pensamento que um mundo de liberdade, união e ilustração havia sido querido e previsto por Deus. A nação mexicana deveria ganhar um papel de protagonista nos palcos dos poderes globais, com uma nova participação na história universal, bastante diferente daquela do momento da conquista.

Na opinião de Villoro, contudo, a revolução não foi apta a gerar as mudanças previstas, o otimismo dos primeiros anos cedeu lugar à frustração de perceber que não se caminhou em direção aos augúrios previstos. As dificuldades econômicas cresceram, as facções políticas pulularam e as idéias extremistas ameaçaram explodir em violência. A colônia persistiu nos seus valores essenciais, não se conseguiu a estável democracia, nem mesmo a Ilustração. Ao contrário, o que se sentiu foi o peso da opressão e da ignorância, a miséria e o desamparo em geral. A admiração dos Estados Unidos foi sucedida pelo desencanto com o arremate de metade do território mexicano. Amarga decepção de uma geração que foi chamada para criar um império e só viveu o suficiente para ver sua degradação e morte239.

O passado persistiu na administração, reiterando as estruturas econômicas e sociais tradicionais, a divisão de castas, a herança agrícola e mineira a que não se conseguiu mudar. Os bens herdados seriam um peso insustentável que abalariam toda tentativa de reforma. A realidade social, política e cultural não conseguiu se adaptar aos planos elaborados pelos ideólogos da nova nação. Tentou-se acoplar o mundo concreto ao projeto que se forjava, e não o inverso.

A nova civilização foi planejada como se ela já se encontrasse presente. Os utopistas confundiam em um só momento a meta histórica a se alcançar com a realidade que ainda se vivia. A sociedade eleita pretendia coexistir no mesmo tempo histórico que a antiga. Entretanto, esse acoplamento era incapaz de ser harmônico e só poderia existir em abstrato. Os elementos que se podiam organizar voluntariamente, como administração do governo, sistema educativo e instituições jurídicas, raramente se conformavam com os elementos irracionais da sociedade, determinados pelo costume e a situação colonial herdada. A impaciência das elites modernas ante o tradicionalismo social conduziu a tentativas aceleradas de construção de um modelo ideal, que por sua vez provocam correspondentes resistências sociais. A mudança real deveria exigir adaptações recíprocas e compreensão das imperfeições, para só assim superá-las.

A nação que surgiu da independência e da aplicação dos princípios liberais era, sobretudo, um projeto que se sustentava sobre uma nação de tipo antigo, forjada de multiplicidade de interesses e de diversidade sócio-cultural. A evolução dos posicionamentos políticos ligados à compreensão do caráter da nação desembocaria na questão do federalismo, como uma mostra das variáveis que insistiam em se acomodar em um mesmo lugar. Por isso, outro debate recorrente em que os estudiosos da obra servandina vêem-se envolvidos seria a de que Mier, ao final de sua vida, teria se tornado centralista e se opunha a qualquer idéia de federação. Ainda que o próprio frei tenha expressado que não havia abandonado o desejo de uma república federativa, ele acreditava que após anos de opressão e lutas sangrentas, o momento vivido pelo México de então dava margem à necessidade de unidade para que seus esforços de libertação não tivessem sido em vão.

O historiador Rafael Diego Fernandez entende que frei Servando encontrava-se diante de problemas doutrinais e práticos muito complexos. Em vista disso, um dos problemas principais abordados na “profecia” foi a necessidade de se considerar a história particular de cada um dos povos, ressaltando as grandes diferenças entre Estados Unidos e México240. O sacerdote manteve-se

fiel a suas raízes históricas e só aceitou aquilo que considerou compatível e benéfico para o país. Se deixou-se seduzir pelo modelo estadunidense em sua MPI foi por estar convencido de que era o único que ajudaria a consolidar a independência, vistos os surpreendentes resultados da nação vizinha.

240DIEGO FERNANDEZ, Rafael. Artigo: Influencias y evolución del pensamiento político de Fray Servando Teresa

Por sua vez, o cientista político Rafael Michell Estrada e O’Gorman compartilham da idéia de Diego Fernandez e defendem a hipótese de que, mesmo a favor dos ideais federalistas, frei Servando compreendia que era preciso um tipo de federação matizada, que não cedesse lugar para a formação de estados soberanos dentro de um mesmo território, à imitação dos Estados Unidos. Fazendo-se isso, apenas seriam transladadas, de um lado da fronteira a outro, as instituições norte- americanas. Era preciso observar as complexas estruturas governamentais próprias da cultura política mexicana, compreendendo suas peculiaridades, para se criar um tipo de federação moderada, paternal, porém firme, e que permitisse às províncias acumularem cultura política suficiente até o momento de darem passos maiores. Para Mier, o federalismo era o auge da perfeição social a qual se deveria alcançar gradualmente.

É certo que no segundo congresso constituinte, Mier teve de se deparar com a ambição e ignorância de muitos caudilhos e políticos provinciais que terminariam por sepultar as glórias da nova nação. Diego Fernandez acredita que o frei não toleraria uma monarquia, muito menos um federalismo que depositava a tirania em mãos volúveis e ignorantes. O problema era que a toda instante surgiam novos salvadores da pátria, uma série de demagogos e politiqueiros que turbavam a nação. A única resposta plausível, portanto, era a unidade nacional.

Mier concorda com o estabelecimento de um federalismo, mas não de qualquer tipo. Sua trajetória de tantos anos de teoria e prática na Europa, e mesmo nos Estados Unidos, dava-lhe autoridade como titular da cátedra no flamejante cenário político mexicano. Mier observava com cuidado os perigos que consistiam em seguir ao pé da letra as pegadas dos norte-americanos deixadas nas suas instituições políticas. Desse modo, o dominicano propunha uma maneira de federalismo própria, entre tantos outros modelos de federação, indo contra a idéia de que os Estados Unidos ofereciam um modelo único desse sistema, mas sendo a favor de uma construção constitucional que se adaptasse aos diferentes momentos na escala evolutiva da nação mexicana.

Muitas províncias ansiavam por um sistema federativo do tipo norte-americano, já que para elas não haveria como se falar em federalismo razoável onde os empregos públicos, tributários e militares ficariam ao cargo das decisões centrais. Para tanto, era preciso imitar as províncias estadunidenses que se haviam federado precisamente para resolver o problema fiscal e militar em que se encontrava fundida a União. Contudo, não compreendiam o mecanismo de seu funcionamento e, por conseguinte, os problemas imediatos enfrentados pela nação se deram pela necessidade de definição entre as atribuições locais e as federais. Estrada Michell acredita que a imprudência da Constituição que se estabeleceria em 1824 não era de dividir o país, mas sim de não

se matizar um tipo de federação própria às peculiaridades mexicanas, pois se copiava integralmente a constituinte da Filadélfia241.

Do discurso da “profecia”, pode-se depreender uma postura realista e contrária ao sufrágio universal do frei ao afirmar o completo desconhecimento da natureza da vontade geral por parte dos outros parlamentares, expressando o fato de que o voto da maioria não representava a verdadeira voz da nação. Frei Servando demonstrou a incompreensão de seus companheiros de tribuna acerca das significações ideológicas de termos como bandeira, mas por poucos passível de intelecção à maneira como foram elaborados.

Na concepção de Jean Jacques Rousseau, o voto da maioria representava apenas o voto de todos, um agregado de vontades individuais que não necessariamente expressavam a vontade geral, já que essa era sempre dirigida ao alcance do bem comum e da utilidade pública. Portanto, para o dominicano a idéia de vontade geral não deveria servir de desculpa plausível para a desestabilização da nação que sofria ainda um processo de construção. Mier demonstrava, portanto, vasto entendimento da ideologia rousseauniana, observando com lucidez as imprecisões interpretativas cometidas por seus companheiros de parlamento, enxergando nisso, não apenas ignorância, mas também argúcia dos homens políticos em manipular as decisões para alcançar resultados condizentes aos interesses específicos de certos grupos.

Nesse sentido, frei Servando entendia que a noção de povo que surgia na boca dos demagogos era aquela de corpo passível de ser manipulado, massificado e ignorante a quem não cabia compreender as instituições e instrumentos propostos pela república. A soberania popular não passava de mera ficção em matéria de política. Isso justificaria o desencanto de Mier diante dos ideais iluministas, aos quais via submergir num oceano de novas interpretações e construções que alteravam o projeto original proposto pelos ideólogos da revolução.

Um fator não observado por Mier em seu discurso refere-se à grande complexidade de se falar em representação única e centralizada diante da fragmentação de poder. O que existia não era uma nação una, mas comunidades políticas de tipo antigo que se associavam como conjunto de reinos separados, representados pelas capitais. Essas cidades principais consideravam-se como cabeças, com igual peso político, ainda que fosse diferente a quantidade de seus habitantes. Não se poderia falar em povo, mas sim em povos. Por isso, a questão evidente do localismo e a existência de facções era uma realidade de difícil superação.

Mier argüia que a soberania residia na nação e, não podendo ela eleger em massa seus deputados, sua eleição era distribuída pelas províncias, onde seriam eleitos deputados que

241 ESTRADA MICHELL, Rafael. Artigo: La teoria constitucional en la Profecía del padre Mier sobre la Federación

mexicana. In: Jurídicas Universidade Autônoma Nacional do México. Disponível em : http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/hisder/cont/11/cnt/cnt3.pdf .Último acesso em 10 de julho de 2006.

representariam toda a nação e não a seus distritos em separado. As advertências políticas do sacerdote não foram suficientes para subverter a ambivalência do papel do deputado, pois, embora ele tenha sido eleito para representar a província de origem, recebia poderes e instruções para representar toda a nação. No entanto, o que prevalecia era a representação de tipo antigo, em que o deputado agia como procurador ligado a seus comitentes por um mandato imperativo, de quem recebia não só seus poderes como instruções, devendo obedecer aos comandos para assim cumprir sua missão, que era a de defender os interesses de sua região. De certa forma, o mandato civil se apresentava incompatível com a prática representativa, em que os governantes deveriam atuar em prol do bem-estar geral. Porém, quanto mais os deputados estavam adstritos em fazer valer os interesses de seus eleitores, mais a prática localista se superpunha ao benefício dos interesses gerais. Desalentado e sentindo frustração diante dos rumos políticos tomados pelo país, cujos ideais vencedores contrariavam a ideologia revolucionária pregada por ele, não restava ao frei outra alternativa que não assumir a postura de conselheiro e visionário político. A Voz de Prata surgia de dentro da “profecia” como o coro grego nas tragédias clássicas, alertando para a tomada de consciência e a mudança de posturas para se evitar um mal maior, o arremedo final que completa a sina e confirma o destino há muito previsto. O papel de frei Servando poderia ser entendido como o meio termo entre o aedo e o adivinho, isto é, entre aquele que resgatava o passado do esquecimento, tornando-o presente e causando uma emoção atual, e aquele a quem os deuses inspiravam numa espécie de revelação as realidades que escapavam ao olhar humano.