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1. Contexto histórico da pré-independência – mutações e permanências em combate no século das

1.5 Desintegração da velha ordem colonial e insurgência americana

1.5.1 O processo de emancipação política da Nova Espanha

A peculiaridade vivenciada pelo México, em razão de uma independência de caráter conservador e fiel às tradições da cultura política da região, foi responsável por ensejar em Mier a incansável procura por mecanismos que conduzissem a uma autonomia estável, apta a promover mudanças substanciais na sociedade mexicana. É em meio à realidade sócio-cultural do país que o pensamento do dominicano se forja e para onde convergem suas principais preocupações. Além

disso, um dos principais valores da nação, a religiosidade católica, torna-se tema sempre presente em seus escritos, o que justifica a necessidade de se estudar de maneira mais detida o processo de formação do estado nacional mexicano.

A emancipação do México insere-se nesse contexto de desenvolvimento histórico ocidental, assim como num específico processo emancipador hispano-americano. Ao se analisar em particular a situação da Nova Espanha, pode-se inferir que as reformas eram temidas pelas elites em razão do seu caráter renovador. Queria-se a independência, desde que adequada aos valores tradicionais da elite ansiosa por maior poder. Se é fato que ricos comerciantes espanhóis queriam o retorno do rei, também é certo que a Audiência e o vice-rei careciam de legitimidade, pois o poder que lhes atribuía autoridade já não mais existia. A exemplo das cidades livres espanholas, foi sendo instigado um movimento em favor de uma junta provisória, que governasse até o retorno do monarca. Contudo, a Audiência e as altas autoridades coloniais reconheceram que tal movimento de formação de juntas provisórias era apenas um disfarce para a independência completa, apesar dos ruidosos protestos de lealdade a Fernando VII.

A vacilação do vice-rei José de Iturrigaray (1742 - 1815) se provou inadequada num momento em que eram necessárias atitudes políticas mais firmes. O vice-rei estava convencido de que a Espanha não poderia resistir a Napoleão e de que a Nova Espanha se faria independente, decidiu submeter a questão a uma eleição geral, cujo resultado foi a criação de uma junta de municípios. Gabriel Yermo, rico explorador de cana-de-açúcar, e exemplo das forças regalistas, alegou traição de Iturrigaray. Yermo teria convencido outros espanhóis de que o vice-rei encabeçava uma conspiração para a independência da Nova Espanha e, na tentativa de proteger os interesses dos espanhóis na Nova Espanha, estimulou um golpe contra o vice-rei. Em 15 de setembro de 1808, Iturrigaray foi deposto. A Audiência informou a Junta Central de Sevilha que, embora não fosse reconhecida legitimamente como órgão deliberativo máximo do governo espanhol, nomeou o arcebispo Francisco Xavier de Lizana para ocupar o posto, o que expressava nada mais que a debilidade em se assegurar um governo legítimo.

O vice-reinado experimentou uma revolução política e social em 1810, no princípio do movimento emancipador da Nova Espanha, que contava com a participação de elementos das camadas mais populares, como índios e mestiços, porém que acabou sufocada em 1815. Contudo, as figuras dos padres Miguel Hidalgo y Costilla (1753 – 1811) e José Maria Morelos (1765 – 1815) permaneceriam plasmadas como os líderes dos de abajo. Nesse período, movimentos independentistas clandestinos haviam se alastrado na Nova Espanha. Uma das sociedades secretas mais ativas foi o Club literario social de Querétaro, dirigido pelo oficial da milícia local, Ignácio Allende (1769 – 1811), onde um dos principais participantes era o padre de Dolores, Miguel Hidalgo.

Hidalgo, considerado o iniciador da independência do México, recebeu as ordens sacerdotais aos 25 anos e aos 39 foi nomeado reitor do colégio de San Nicolás, onde se dedicou com afinco ao estudo das teorias liberais. Pela política de cargos privilegiar apenas os espanhóis europeus para os altos cargos, Hidalgo foi enviado ao vilarejo de Dolores, em Guanajuato, onde instruiria e capacitaria os indígenas para o cultivo de produtos de subsistência e autogerenciamento. Sem experiência e sem preparação militar, mas com incrível habilidade de oratória e capacidade de mobilizar as massas, ao lado de Juan Aldama (1774 - 1811) e Ignácio Allende, o padre soltaria em 16 de setembro de 1808 o famoso grito de Dolores: “¡Viva Nuestra Señora de Guadalupe! ¡Viva la Independencia! ¡Muera el mal gobierno!” e partiria para a luta armada, apesar do seu despreparo bélico e militar.

Hidalgo estabeleceria uma Casa da Moeda, decretaria a abolição da escravidão e convidaria os padres das populações vizinhas a se unirem à causa. Embora o conflito tenha começado com fortes nuances de guerra religiosa, em pouco tempo adquiriu caráter republicano. A guerra assumiu feições de guerrilha, tendo Hidalgo fuzilado vários delatores do movimento. Em 1810, o “pai da pátria” foi considerado herege pela Inquisição. Hidalgo foi traído por um antigo insurgente, Ignácio Elizondo, que se havia convertido em espião do bando regalista. Hidalgo, Allende e Aldama foram feitos prisioneiros e fuzilados em 30 de julho de 1811 e suas cabeças expostas como sinal de advertência a todo aquele que pregasse em favor da causa independentista.

Depois de Hidalgo, a figura de Morelos surgia como nova liderança popular, pois também combatia a política dos altos cargos sacerdotais serem exclusivos aos clérigos espanhóis. Morelos planejou um movimento estratégico para envolver a Cidade do México e cortar suas comunicações com as costas. Em junho de 1813, o padre convocou um Congresso nacional de representantes de todas as províncias, que se reuniu em Chilpancingo, atual estado de Guerrero, para discutir o futuro da nação independente e onde se promulgou a primeira constituição do México, conhecida como Constituição de Apatzingán, de caráter republicano e centralista. Os pontos mais importantes incluídos neste texto foram a soberania nacional, o direito universal de voto a todos os homens, a abolição da escravidão, a adoção do catolicismo como religião oficial e fim dos monopólios governamentais. Morelos ainda teria tentado aplicar um programa de reformas das estruturas agrárias do Antigo Regime, o que lhe granjeou grande apoio popular. Diante de várias derrotas militares, Morelos afinal veio a ser feito prisioneiro pelo Santo Ofício, foi torturado e condenado à morte após uma cerimônia de crueldade física que culminou com seu fuzilamento em 22 de dezembro de 1815.

Após a morte dos líderes da insurgência, o movimento de independência, enfraquecido e apático, se torna uma luta de guerrilhas entre os anos de 1815 e 1821, o que propiciaria a aparição

do fenômeno do caudilhismo35. Dentre os caudilhos desta fase inicial se destacam Miguel Antonio

Fernandéz Félix (1786 - 1843), conhecido com Guadalupe Victoria, em Puebla, e Vicente Guerrero, em Oaxaca (1782 – 1831). Nesse período, o coronel combatente pelas forças regalistas, Agustín de Iturbide (1783 - 1824), reunia em si os ideais criollos relacionados à proteção da propriedade privada e da religiosidade católica, surge como autoridade militar em razão da popularidade alcançada por perseguir com afinco os exércitos de Hidalgo e Morelos. Ao mesmo tempo que suas milícias eram enviadas pelo vice-rei Juan Ruíz de Apodaca para combater o exército de Guerrero, em Oaxaca, um golpe militar na Espanha obrigava o novo monarca Fernando VII a firmar os termos da constituição liberal de 1812.

Estas notícias da metrópole eram percebidas por Iturbide como um perigo ao status quo colonial e uma oportunidade para que os criollos assumissem o controle do México, haja vista que a violência excessiva dos exércitos populares terminou por afastar as elites que procuraram um caminho menos sangrento para a independência. Com a alteração ideológica da política na metrópole, Iturbide muda de posição, torna-se independentista e apresenta o Plan de Iguala em 24 de fevereiro de 1821, que proclamava a independência do México, uma nação a ser governada por Fernando VII ou por outro príncipe da casa real espanhola, a igualdade de direitos e privilégios entre europeus e criollos e a preservação das prerrogativas do Patronato Régio para a Igreja Católica. A independência se realizava, por fim, mediante o partido anti-revolucionário, como uma reação conservadora, após um acordo pacífico entre as diferentes bases políticas e em um pacto assinado com os representantes da monarquia espanhola no país. Iturbide teria incluído um artigo que dava possibilidade de o Congresso mexicano escolher um rei criollo, caso nenhum membro da realeza européia aceitasse o trono, o que permitiu que ele próprio tomasse o controle do México, dando início a uma monarquia constitucional conhecida como o primeiro império mexicano, entre os anos de 1822 e 1823. O plano satisfazia a liberais e conservadores, o que propiciou a coalizão para a consolidação da independência. Entretanto, embora houvesse sido instaurada uma nova concepção política, a ordem social permanecia inalterada.

O governo pós-independência aparecia como um governo carente de experiência e de capacidade de governar e que, tão pronto assumiu o poder, encontrou enormes obstáculos, pois para formar uma estrutura governamental permanente e evitar conflitos futuros, era imprescindível forjar

35O caudilhismo pode ser entendido como fenômeno político na maior parte dos países da América espanhola, no período

compreendido entre os primeiros anos da consolidação definitiva da independência. É caracterizado pela divisão de poder entre chefes de tendência local, líderes de origem militar, oriundos, em sua maioria, da desmobilização dos exércitos que combateram nas guerras de insurgência e que provinham, em certos casos, de estratos sociais inferiores ou de grupos étnicos discriminados (mestiços, índios, negros e mulatos). Os caudilhos valiam-se do magnetismo pessoal na condução das tropas, na maior parte das vezes recrutadas nas áreas rurais, e tal poder carismático era exercido de maneira paternalista e autoritária, carente de conteúdo ideológico definido. (OLIVIERI, Mabel. “Caudilhismo”. In: BOBBIO, Norberto et alii. Dicionário de Política. São Paulo: Editora Universidade de Brasília, 2004. p.156).

alianças de grupos diferentes para assegurar de vez a independência. Entretanto, alguns poucos republicanos continuariam sua oposição, sendo muitos deles encarcerados por suas manifestações políticas, como foi o caso de Mier. O governo de Iturbide, carente de sólidos projetos políticos, duraria apenas um ano. Reduto de forte oposição, o Congresso foi dissolvido pelo imperador. Tal conflito leva o general Antônio López de Santa Anna (1794 - 1876) a encabeçar um golpe contra o império, a favor da instauração da república. Santa Anna e Guadalupe Victoria proclamam o Plano de Veracruz, que exigia a restauração do Congresso dissolvido por Iturbide. Devido às fortes pressões, o imperador reúne novamente os parlamentares, perante os que abdica em 19 de março de 1823. Com o colapso do império, o México seria provisoriamente governado por uma junta tripla cujos integrantes seriam Nicolás Bravo (1786 - 1854), Guadalupe Victoria e Pedro Celestino Negrete (1777 - 1846). Foram proclamadas eleições para a escolha do corpo de deputados que seria responsável pela criação da constituição. O primeiro Congresso mexicano seria instaurado em 27 de novembro de 1823.

Como principal foco de debates estaria a questão da formação de república, se ela seria centralista ou federalista. Os centralistas podiam ser encontrados em sua maioria entre os clérigos e oficiais do exército, enquanto o ramo federalista era composto por criollos liberais influenciados pela idéias reformistas e por estudiosos da constituição dos Estados Unidos e da constituição liberal espanhola de 1812. O principal líder dos federalistas era o sacerdote Miguel Ramos Arizpe (1775 - 1843), ao passo Carlos María Bustamante (1774 - 1848) pregava o centralismo político. Por temor de que o ideário centralista fosse associado ao despotismo, o federalismo foi escolhido como sistema mais harmônico à realidade mexicana em sua recente liberdade.

Sob a Constituição de 04 de outubro de 1824 se instituíam os Estados Unidos Mexicanos, organizados como república federal e com separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. A legislatura era bicameral, divida entre Senado e Câmara dos Deputados. Ainda que os ideais federalistas tenham tido primazia na elaboração da constituição, os centralistas conseguiram estabelecer a Igreja Católica como religião única do Estado, obtendo aquela o monopólio da vida espiritual mexicana, garantindo aos membros do clero e do exército foros especiais. Guadalupe Victoria foi eleito o primeiro presidente, tendo por vice Nicolás Bravo.

Segundo o historiador Michael P. Costeloe, durante os meses anteriores à conclusão do trabalho constituinte, representantes de todas as partes do país haviam considerado em uma assembléia constituinte diversos sistemas políticos e haviam chegado a conclusão que a Constituição custodiaria o progresso e incluiria os princípios fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade madura e estável, em que o respeito à lei e a promoção do bem comum eram dever e

responsabilidade de todo cidadão mexicano36. Ao longo de seu governo, que vigoraria entre os anos

de 1824 e 1828, Victoria engajou-se em tentativas de pacificação político-social em virtude da situação caótica deixada pelas guerras de independência.

O país se encontrava com graves mazelas sociais, um exército enorme e uma ineficaz máquina burocrática herdada do regime colonial. Ao mesmo tempo em que os empréstimos concedidos pela Inglaterra permitiram o pagamento dos salários dos empregados do governo e do exército, a nação se encaminhava para o endividamento com o exterior. Inglaterra e Estados Unidos deram o reconhecimento diplomático ao novo país surgido, enviando representantes ao México. No governo de Victoria foi abolida a escravidão, fixadas as fronteiras com os Estados Unidos e Iturbide foi condenado à execução como traidor da nação.

Ainda que Victoria também se mostrasse esperançoso diante do futuro da nação mexicana, em seu governo o país se veria profundamente dividido, permeado de rixas e ressentimentos, caracterizando uma atmosfera política tensa. A boa vontade e o desejo de imparcialidade de Victoria conduziram sua política à indecisão e incerteza de ações. As maiores facções políticas eram identificadas com o aparecimento das lojas maçônicas, categorias políticas à moda européia, que combatiam pelo poder político e econômico do país e que se empenharam numa luta cruel e violenta para conquistar seus objetivos. O ramo federalista foi chamado de Yorquino por sua vinculação ao rito maçom de York, enquanto os centralistas se ligavam ao ritual escocês, sendo por isso conhecidos como Escoseses.

O governo legal e constitucional não respondiam às necessidades reais e o México assistiria a inabilidade econômica da administração de Victoria. Um exército vasto e oneroso seria mantido, ainda que apto a ameaçar o futuro de uma nação civil. Além disso, o governo assumiria os débitos do período colonial e da monarquia e a estrutura fiscal estava seriamente comprometida, o que contribuiu para direcionar o país ao penoso caminho da dependência econômica. Victoria seria vítima de pressões políticas, sofrendo uma revolta impulsionada pelo vice-presidente Bravo. A revolta seria suprimida por Santa Anna e Guerrero, abrindo precedente para regimes de caráter militar.

Terminado o seu mandado e decepcionado com a política, Victoria retir-se-ia da vida privada e morreria em março de 1843, em Veracruz. O México independente estaria condenado a décadas de levantes militares, paralisação econômica e aparente incapacidade de autogoverno, admitindo-se a intervenção militar como conquista de poder, o que arruinaria o crédito da nação e sua reputação internacional. Esse processo complexo da conquista da autonomia política mexicana e dos primeiros anos da independência refletiam as inúmeras correntes espirituais que dividiam o

36 COSTELOE, Michael P. La primera República Federal de México (1824-1835). México: Fondo de Cultura

pensamento e causavam alinhamentos e realinhamentos inesperados. É em meio a essa realidade múltipla que a mente inquieta de frei Servando Teresa de Mier floresce e o posiciona como questionador hispano-americano, não apenas do Antigo Regime que se encontrava em seu ocaso, como da aurora republicana que já surgia permeada de elementos díspares e inúmeros paradoxos.