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1. Rota Servandina entre 1795 e 182

1.4 Secularização em Roma e a polêmica de De Pauw

Em 1802, Frei Servando parte de Paris para Roma com a intenção de se secularizar, contando para isso com a ajuda de um conhecido, o ministro da Espanha em Roma, Vargas Laguna. Ele conseguiria o breve de secularização e outro breve de habilitação para curatos, benefícios, prebendas. Entretanto, a nulidade da profissão foi de difícil comprovação, pois, segundo as palavras do mexicano, as circunstâncias o obrigavam a manter o ofício de sacerdote porque precisava sobreviver de alguma forma em Paris103. Consegue, porém, um rescrito comum de secularização no qual permanecia a obrigação

101 Ibidem, p.76.

102 BRADING, David. Op. cit., p.564.

103 A secularização a que Mier se submeteu não foi do tipo completa ao estado temporal. Mier continuaria utilizando o

título de frei e portando-se como clérigo, ainda que em várias partes de Memorias ele demonstre insatisfação e desconforto na posição de padre. É com o título de frei que seu nome seria perpetuado na história mexicana, por isso essa dissertação permanece se referindo ao mexicano pela forma como passou a ser usualmente conhecido.

quoad substancialia votorum, compatível com o estado secular, transferindo-se o de obediência devida

aos prelados regulares da sua ordem, à simples obediência ao diocesano.

Nesse ínterim, Mier parte para Nápoles com a pretensão de integrar a comitiva da infanta Isabel, futura esposa de Fernando VII, que se dirigia à Espanha. Contudo, sua tentativa é frustrada, pois ao chegar a terras napolitanas o cortejo já havia partido, e como solução Mier se abriga no convento do Rosário onde conhece padres de grande instrução e estabelece novas ligações intelectuais com os ex- jesuítas expulsos da América que se encontravam na Itália. Entre eles destaca-se o paraguaio Francisco Iturri, crítico ferrenho das obras de Muñoz que se teria utilizado da literatura científica de De Pauw, Raynal e Robertson para basear parte de seus escritos sobre o Novo Mundo. Segundo Barrera Enderle, é preciso considerar os jesuítas expulsos como os primeiros a construir um novo espaço de expressão dos valores e sentimentos americanos, que culminariam na tomada de consciência sobre a própria identidade, assim como frei Servando, que embora tivesse desavenças sobre a tendência jesuíta de organização político-social, reconheceu o mérito da ordem em cultivar os estudos humanísticos, ao ter acesso aos trabalhos de Clavijero e Lacunza104.

1.4.1 A reação intelectual à lenda negra americana e sua contribuição para a formação da identidade nacional

Faz-se necessária uma rápida digressão acerca da disputa intelectual entre o que se tinha por imaginário do universo americano, de acordo aos relatos dos viajantes, missionários europeus e da vertente enciclopedista tão cara ao século XVIII, e a defesa incansável dos primeiros pensadores que despertaram para a criação de uma nova forma de enxergar a América, ao listar elementos que ensejariam a construção da identidade americana, alicerçada em novas representações, cuja contribuição dos jesuítas expulsos seria inquestionável. É com a conquista do Novo Mundo que surgiu a necessidade de um novo tipo de literatura que explicasse ao velho continente a alteridade racial e o universo inóspito encontrado, de acordo com as palavras, códigos e simbologias que fossem facilmente compreensíveis para aqueles que não houvessem cruzado os mares. Ao longo dos tempos essa mesma literatura seria responsável por formar um arsenal mental que moldaria a imagem do homem americano de maneira pejorativa não apenas em relação à Europa, como em relação a si mesmo105.

Consta que a primeira reação em prol da América a esse tipo de construto intelectual pôs em evidência a incipiente Ilustração ibérica na figura do padre beneditino Benito Jerônimo Feijoo. Em suas obras Población de España e Mapa intelectual y cotejo de las naciones insistia na comparação elogiosa de que os criollos possuíam mais vivacidade mental que a Espanha, combatendo com ênfase a hipótese de imbecialização dos criollos, assim como a defesa dos engenhos americanos render-lhe-ia grande popularidade na América espanhola. Suas idéias influenciaram a reforma da Universidade de Havana e

104 BARRERA ENDERLE, Victor. Op. cit.

eram estudadas com predileção por um dos maiores apologistas da América, Clavijero e também com avidez por Mier.

Com a revolução científica e a ascensão do racionalismo, o século XVIII viu ascender um novo ideal de civilidade baseado em pesquisas com base nas ciências naturais, expedições, dados estatísticos, colheita de testes e mecanismos de prova que foi responsável pela criação de um gênero literário que esquadrinharia não apenas o globo terrestre, como aos seus seres viventes, atribuindo-lhes taxações, definições e conceitos que por muito tempo far-se-iam presentes nas estantes de qualquer biblioteca do planeta. Ao lado de Georges-Marie Leclerc, o conde de Buffon (1707 - 1788), e de Charles-Marie de la Condamine (1701 - 1774), um dos maiores expoentes dessa literatura é o padre e filósofo holandês Cornelius de Pauw (1739 - 1799), que a serviço de Frederico II, o grande, publica a obra Recherches

philosophiques sur les Américains ou Mémoires intéressantes pour servir à l’histoire de l'espèce humaine, em 1768, em Berlim. Para o historiador italiano Antonello Gerbi, “De Pauw é um

enciclopedista típico, não tanto por seus ataques à religião nem pelo seu pedantismo, mas porque reúne a mais firme presença da crença no progresso e a ausência completa de fé na bondade do homem. Para ele, o homem se aperfeiçoa somente na sociedade, e que o homem só, em estado natural, é um bruto, incapaz de progresso”106.

Para De Pauw, os americanos seriam animais que odeiam as leis da sociedade e os obstáculos da educação, vivendo cada um por si, em um estado de indolência, inércia, de completo aviltamento. Idéias tão bem recebidas na Europa que ensejaram a publicação de sua obra em várias edições e cuja influência é sentida nos historiadores Guillaume-Thomas Raynal (1713 – 1796) e William Robertson (1721-1791). O radicalismo de De Pauw faz enxergar o americano como um degenerado completo cujo determinismo climático exercia poder decisivo sobre o caráter dos homens, as leis e os costumes das nações. O clima da Ásia e dos trópicos engendrava homens propensos à indolência de mente e espírito, pois seriam mais apropriadas para eles as formas despóticas de governo, visto que o clima era terrivelmente úmido, tendo a terra brotado das águas do oceano, assim como os seres que delas saíram deram origem aos povos da América. Esta por sua vez, teria o solo impregnado de sais, incapaz de produzir um fruto que prestasse e cujas espécies animais eram menos numerosas e pequenas de tamanho, se comparadas às do outro lado do Atlântico.

Racionalista e contrário à mitificação do selvagem, De Pauw se investe na polêmica contra os missionários humanitários, apologistas do Novo Mundo e vistos como padres ignorantes que inventaram fontes e manipularam a história sobre as realizações dos povos incas e astecas. Assim, prepara terreno para os reacionários católicos do romantismo ao colocar os americanos e não a fauna e a flora no centro de sua investigação. De Pauw centra suas críticas em Las Casas ao denunciá-lo como intrigante, cuja defesa do indígena havia sido inspirada em causa própria, no desejo de se tornar soberano dos índios. A

debilidade indígena surgia em Las Casas não para humilhar os índios, mas para enaltecê-los. “São as gentes mais delicadas, fracas e tenras em compleição que menos podem suportar trabalhos, e que mais facilmente morrem de enfermidade”107. O que Las Casas não contava era que suas cândidas apologias do

miserável, débil, lânguido e inocente índio se converteriam em provas da natureza corrupta e degenerada dos índios. Gerbi ressalta que o indígena, como qualquer outro objeto de defesa apaixonada, variava de qualidades físicas, mudando de natureza, perdendo e renovando suas forças, conforme as exigências da polêmica.

Essa discussão obviamente se estenderia às Américas no embate criollo vs. peninsulares. De acordo com Brading, para os hispanoamericanos, ainda submetidos à dinastia dos Bourbons, o ataque da Ilustração resultou ainda mais doloroso, pois a combinação de determinismo climático e de ceticismo histórico feria sua tradição patriótica em cada ponto108. Na opinião do historiador italiano Gerbi, o conflito

não possuía a rígida fatalidade dos conflitos entre raças, pois espanhóis e criollos eram igualmente brancos, de sangue puro; a distinção era geográfica: o jus soli prevalecia sobre o jus sanguinis. A terra que os gerara pesava sobre os americanos como uma condenação, cancelando qualquer privilégio conquistado ou herdado. Seu patriotismo nascia assim, em legítima reação a pressupostos naturalistas, como mais apego à terra que às tradições, já que os americanos não podiam se vangloriar do seu passado ou de uma antiguidade mítica109.

A chegada dos jesuítas expulsos revelavam à Europa um apego vivo às terras, numa espécie de protopatriotismo. Lá, os padres eram surpreendidos ao se defrontarem com as calúnias atribuídas à natureza e ao homem originário das Américas, ferindo a terra onde haviam crescido ou ensinado por muitos anos. Tal ideologia, permeada de cunho político, se apresentava sob vestes científicas ao denegrir o solo americano. Gerbi acredita que por obra deles e de seus relatos escritos, foi forjada a imagem do bom selvagem de Rousseau, explicitando a inocência desconcertante dos selvagens, a presença de animais ferozes e gigantescos que impediam o caminho apostólico e a existência de passarinhos melodiosos e terras cultiváveis em abundância. Com suas defesas e contra-ataques os jesuítas colocavam à disposição dos americanos todo um arsenal de glórias e tradições nacionais110.

Os ataques dos jesuítas expulsos às obras de De Pauw podem ser evidenciados nas obras Historia

del reino de Quito, do equatoriano Juan de Velasco e nos textos primordiais sobre a história chilena de

Juan Ignácio de Molina (1740 – 1787), Historia geográfica, natural y civil del reino del Chile e El

Araucano. Todavia, seria a Storia antica del Messico, de Clavijero a mais extensa e particularizada defesa

da América, tendo nascido em polêmica aberta contra De Pauw, e cujo objetivo era servir à pátria e restabelecer “verdade ofuscada por uma turba incrível de escritores modernos sobre a América”. Dos

107 GERBI, Antonello. Op. cit., p.70-71. 108 BRADING, David. Op. cit., p.483. 109 GERBI, Antonello. Op. cit., p.150. 110 Ibidem, p.155-156.

quatro tomos que a compõem, os três primeiros são ocupados pela história propriamente dita, o quarto e mais volumoso, é dedicado ao Conde Gian Rinaldo de Carli111. Esse último volume contém dissertações

sobre a terra, planta, animais e habitantes do México entrando em polêmica cerrada com prussiano no que tange aos animais e à biologia em geral. Clavijero escolhe como alvo a obra de De Pauw: “porque nesta, como em uma sentima ou cloaca, são recolhidas todas as imundícies, ou seja, os erros de todos os outros”112.

Reação mais complexa se observa na Carta crítica sobre la Historia de América del sr. Juan

Bautista Muñoz, escrita em Roma pelo jesuíta de Santa Fé, Francisco Iturri, exilado na Itália com seus

confrades. Iturri adentra no terreno de De Pauw ao discutir fauna, flora, geografia, e torna-se o típico exemplo do criollo que vê no enciclopedista um instrumento ideológico da monarquia dos Bourbons113.

Seu trabalho é uma pequena obra que teve repercussão política quando as nações americanas reivindicaram autonomia, pois foi reproduzida como um manifesto de um americanismo embrionário, que consistia num ataque ao escocês Robertson e ao prussiano De Pauw, cujas informações teriam guiado a

Historia del Nuevo Mundo de Juan Bautista Muñoz. Muñoz teria sido convidado pela Real Academia de

História para escrever uma história geral das Índias com documentos seguros e incontestáveis, em rebate à Historia da América escrita por Robertson para retificar os erros cometidos pelo escocês contra os espanhóis, porém não as difamações concernentes às províncias americanas.

Mier, embora amigo de Muñoz, recordava o feito de Iturri também seu colega, em dar uma violenta surra intelectual no primeiro, porque no quadro de sua história este fundiu disparates de Pauw, Raynal e Robertson. Feijoo, Clavijero, Carli, Muñoz e Iturri fazem parte do universo literário e mental ao qual frei Servando recorre constantemente nos escritos de caráter insurgente para fazer valer sua própria defesa da América em combate aos preceitos de De Pauw, como ocorre na Historia de la Revolución de

Nueva España. O contato com os jesuítas expulsos da América foi responsável por acender do

dominicano a centelha da tomada de consciência identitária do solo americano de onde saiu. Embora já houvesse dado prova de defesa dos ideais criollos em seu SG, é nesse momento que, definitivamente, sua percepção dos valores americanos se torna mais evidente para si mesmo. Se Las Casas combateu Sepúlveda e Vitória nos tribunais espanhóis acerca da natureza do índio, Mier chama para embate De Pauw e todos os intelectuais europeus que compartilhavam das falácias do enciclopedista, tornando-se assim, o defensor dos habitantes da América.

De volta às aventuras servandinas, é, contudo, somente em 06 de julho de 1803 que lhe foi outorgada um tipo de secularização que não o reduzia completamente ao estado temporal, e outras concessões do papa, como, por exemplo, a continuação do rito dominicano, com um rescrito na

111 Autor de Lettere americane e contestador de De Pauw que não defende a inocência do primitivo, mas reivindica para os

mexicanos e peruanos o grau mais elevado de civilização e sabedoria administrativa.

112 GERBI, Antonello. Op. cit., p.161. 113 Ibidem, p.225.

congregação dos ritos e o direito de permanecer a usar o hábito, em razão da ignorância dos seus paisanos (que viam com maus olhos a um secularizado). Seu pedido lhe foi concedido, porque, segundo ele mesmo acrescenta, obteve grande honra como teólogo nas congregações do Concílio de Trento e na Inquisição Universal, logrando ainda a licença para ler os livros proibidos, sem nenhuma exceção.