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1. Rota Servandina entre 1795 e 182

1.3 França e as novidades em matéria de pensamento

Frei Servando chega ao território francês em 1800, e se instala em Baiona, na sexta-feira da Paixão do ano de 1801. Sua entrada no país representava o confronto real, em sua própria postura de vida, entre duas tradições religiosas distintas e opostas, o anticlericalismo ilustrado francês e o modelo barroco espanhol. Esse choque representaria a pedra de toque para o questionamento do dominicano não apenas como clérigo, mas como pensador. Conforme a opinião de Victor Barrera Enderle, o desterro de frei Servando respondia a um debate teológico, uma discussão intelectual, o qual propiciou que várias instâncias se fechassem para ele, porém, ao mesmo tempo elevou sua categoria de interlocutor, sendo isso pouco comum entre os americanos que visitavam a Europa90.

90 BARRERA ENDERLE, Victor. Artigo: La fuga como arte escritural: el grafocentrismo en las

Memorias de fray Servando Teresa de Mier. In: Revista Síncronia, outono de 2001. Disponível em:

Sem ter como prover seu sustento, Mier, em suas andanças, conhece o bairro judeu e lá estabelece um contato profundo com a comunidade judaica. Ao ver do historiador e crítico literário mexicano Christopher Dominguéz, os judeus de Baiona representam uma ponte entre a lei de Moisés e a modernidade na vida do mexicano; por meio deles, o vilipendiano exegeta do Novo Testamento, se converte em um homem do século XVIII91. Todos os judeus da França e de quase toda Europa são

espanhóis de origem, e em espanhol estava sua bíblia, suas práticas e orações. Além disso, sua ordem e prosperidade, ligadas estreitamente ao tráfico comercial na costa Atlântica, provariam que os judeus haviam se salvado da superstição e não voltariam a ser exterminados por motivos de consciência. Mier iniciou um debate intelectual, que visava à conversão doutrinária, onde supostamente teria convertido um rabino à religião cristã, refletindo os ideais da herança medieval espanhola. Segundo Dominguéz, Mier se transformou numa espécie de São Paulo moderno, sendo esse contato com os judeus uma das mais interessantes passagens da sua obra Memorias, embora muito se indague acerca da veracidade de tal encontro, como se verá no quarto capítulo.

Ainda em Baiona, o dominicano passa a viver da ajuda dos clérigos emigrados da Espanha, que o haviam ajudado também na sua transladação de Burgos a La Coruña e mantém contato com diversos tipos de intelectuais como o embaixador da Espanha em Paris, José Nicolás Azara (1730 - 1804) e do doutor Francisco Antonio Zea (1770 - 1822). Azara foi um personagem consistente da Ilustração espanhola, especialista em Garcilaso de La Vega, letrado na universidade de Huesca, agente de Carlos III na Corte pontifícia até 1765, ministro plenipotenciário da Espanha durante as campanhas italianas de Napoleão até se tornar embaixador de Paris.

Zea, entretanto, é o primeiro nome relacionado à independência americana com quem Mier trava contato. Nascido em Medellín, advogado, botânico e teólogo, Zea ensinava latim ao vice-rei quando foi implicado na conspiração de Antonio Nariño, em 1794. Todos os revolucionários colombianos foram processados e remitidos a Cádiz. Todavia, o caso do colombiano cai em mãos mais liberais que o de Mier, e por isso foi desterrado a Paris. Zea se reuniria posteriormente a Simón Bolívar (1783 - 1830) em Londres no ano de 1814, e o alcançaria no Haiti já como independentista. No seu retorno à Colômbia ele presidiria o Congresso e proclamaria a república, em 17 de dezembro de 1819. O botânico Zea se interpôs na vida de Mier como um autêntico representante da sua geração e como ponte ao futuro político do dominicano, pois foi também o responsável por introduzi-lo na literatura ateísta e proibida da época.

Uma outra ajuda providencial para o dominicano é a de José Sarea, conde de Gijón, natural de Quito e rico investidor de açúcar em Havana. Mier o incentiva a ir a Paris, onde o acompanha como intérprete, bem como serve de conselheiro financeiro diante dos aproveitadores franceses. No pouco tempo que estava na capital francesa, ocorre a chegada de Simón Rodríguez (1769 – 1854), filósofo e pedagogo venezuelano, que desterrado em razão de seus ideais políticos assumiu o nome de Samuel

91 DOMINGUÉZ, Christopher. Artigo: Fray Servando entre los judios de Bayona. Fractal n. 13, abril-junho, 1999, ano

Robinsón. Ambos travam amizade e abrem uma escola de língua espanhola, tão em voga, em razão da cessão de terras que Espanha concedia a Napoleão – como a ilha de Santo Domingo e a Louisiana. Também realizam a tradução do poema épico sobre a natureza americana de François-René de Chateaubriand (1768 - 1848), Atala, trabalho sobre o qual paira até hoje o enigma quanto ao verdadeiro tradutor. Mier não entra em detalhes sobre o tempo em que trabalhou com Rodríguez e expressa certo azedume ao relembrar as circunstâncias que envolveram o trabalho de tradução, como se verá em suas

Memorias.

Rodríguez – conhecido futuramente como o mestre e mentor mais importante do Libertador das Américas, Simón Bolívar – era já um ideólogo da república, de princípios inflexíveis no que concernia a advogar em prol das nações ainda não estabelecidas. Conforme relato do historiador Reinaldo Villegas Astudillo, sua vida teria sido permeada por idéias revolucionárias, tendo vivido na Jamaica, nos Estados Unidos e finalmente na Europa92. Sua estadia no velho continente lhe teria permitido dominar os idiomas

francês, italiano, alemão e português, bem como aprofundar seus estudos filosóficos, ao entrar em contato com as teorias revolucionárias que implantariam uma nova ordem política e social de largo alcance e que seriam amplamente absorvidas por seu mais ilustre aluno.

Uma dissertação de Mier sobre a existência de Cristo, em rebate a autores franceses que a negavam, é responsável por lhe granjear a Paróquia de São Tomé no centro da capital francesa. Dessa forma, dominicano conheceria a dimensão da difícil situação da Igreja católica após a Revolução de 1789 e questionaria a herança clerical espanhola. Em algumas passagens é perceptível não só o seu desconforto em seguir os ritos da tradição religiosa da península Ibérica, bem como seu encantamento com as novas formas de manifestação espiritual lançadas pela França. O clero católico francês estava em cisma, dividido em sacerdotes que juraram e não juraram à Constituição Civil do Clero, republicanos e realistas, jansenistas e jesuítas ou constitucionais e refratários. O exílio dos sacerdotes franceses na Espanha, após o período revolucionário, foi complicado tanto para os refratários, que fugiram desde 1792, como para aqueles que mesmo tendo jurado a Constituição Civil do clero, sofreram os terrores da descristianização, entre 1793 e 1797.

Frei Servando admitia em sua igreja os fiéis constitucionais, porque não acreditava que eram excomungados os seus ministros. Dessa maneira, entra em contato com essa nova tradição espiritual ao se tornar amigo do bispo de Blois, Henri Grégoire (1750 - 1831), chefe do clero constitucional por ter sido eleito na Assembléia Nacional de 1789. Criador do Conservatório de Artes e da Sociedade de Amigo dos Negros, o clérigo foi grande expoente da religião católica na França durante o Concílio Nacional. Grégoire foi autor das obras Essai sur la régénération physique, morale et politique des juifs, obra que prega a tolerância religiosa e civil e que muito provavelmente influenciou a inventiva mente servandina

92 VILLEGAS ASTUDILLO, Reinaldo. Artigo: El discurso lacerante de Simón Rodríguez. In: Pagina Digital.

Disponível em: http://www.paginadigital.com.ar/articulos/2002rest/2002oct/textos/23124-10.html. Último acesso em 10 de julho de 2006.

quando retrata o encontro com a comunidade judaica nas Memorias, e na Histoire des sectes religieuses

au XVIIIe siècle.

Mier foi encaminhado a ele por Jovellanos e pelos padres que auxiliaram Servando na sua saída do território espanhol, em sua maioria afeitos aos jansenismo, sendo entre eles que o dominicano teria escutado as primeiras referências diretas ao bispo. Para Brading, se frei Servando pode se transladar tão facilmente de um a outro país da Europa foi em parte porque havia se tornado jansenista, embora em questões de disciplina eclesiástica seguisse o modo tradicional93. Por ser vítima da perseguição da Igreja,

e pelo fato da maioria dos homens que o protegeram na Espanha terem sido acusados de pertencimento a tal partido, nada era mais natural que Mier também fosse envolvido nessa nova postura espiritual, ao afirmar: “los jansenistas, así se llamavam en Europa todos los hombres solidamente instruidos en la religión y amigos de la antigua y legitima disciplina de la Iglesia”94.

O jansenismo foi uma teologia cristã surgida entre França e Bélgica no século XVII pelas mãos do bispo de Ypres, Cornelius Jansen (1585 – 1638), uma espécie de versão católica do calvinismo, cujas idéias principais eram o retorno ao cristianismo primitivo e a negação das autoridades eclesiásticas como únicas capazes de representar a vontade de Deus na terra, valendo o mesmo para os soberanos temporais. Isso explicaria o fato de os jansenistas serem vistos como os grandes opositores do absolutismo ao longo do século XVIII. Tal ideário foi facilmente aliado ao galicanismo que, no entendimento de Jean Gaudemet, nunca foi uma doutrina claramente definida, devendo ser examinada dentro dos processos históricos que a geraram, como o galicanismo do Grande Cisma (1378 - 1438) ou do período revolucionário e imperial (1789 - 1815), cujos aspectos primordiais, porém, referem-se à autonomia francesa em relação às interferências da autoridade pontíficia de Roma nas questões de cunho político- religioso95. Com a Revolução Francesa, a Constituição Civil do Clero foi entendida como um dos frutos

do galicanismo por pregar que as ordens do mundo temporal seriam independentes da Santa Sé e que o Concílio francês estaria acima do poder do Papa, o qual deveria respeitar as regras, constituições e costumes formulados em consenso pela Igreja Galicana.

O historiador Dominguez revela que o bispo de Blois, antigo jansenista, acreditava que a cristandade era incompatível com o despotismo, porém não com a Revolução Francesa, a qual tentou cristianizar à custa de sua reputação96. Grégoire, não teve dificuldade em aceitar a Constituição Civil de

1791 que prescrevia também a eleição popular para padres e bispos. Republicano ferrenho, o bispo foi odiado pelos monarquistas e pelos jacobinos por se abster de votar a decapitação de Luís XVI. Era ainda

93 BRADING, David. Orbe indiano – de la monarquía católica a la república criolla, 1492-1867. México: Fóndo de

Cultura Económica, 1991. p.632.

94 Servando de Teresa. Memorias. v.II. Edição e prólogo de Antonio Castro Leal. México: Porrua, 1946. p.17.

95 GAUDEMET, Jean. “Galicanismo”. In: BOBBIO, Norberto et alli. Dicionário de Política. São Paulo: Editora

Universidade de Brasília, 2004. p.531.

contrário às idéias de Rousseau e Voltaire, bem como se opunha à divindade do Estado proposta por Robespierre.

Grégoire, que exerceria uma influência determinante sobre Mier, daria apoio à tese do frei sobre uma provável pregação de São Tomé nas Américas, bem como nutriam em comum uma admiração por Las Casas, haja vista que o clérigo francês era grande difusor das obras do confrade de Mier na França, tendo reconhecidamente recebido a ajuda do mexicano para a publicação das obras daquele que foi o grande protetor dos índios. O sacerdote se referia a Grégoire como seu amigo e como um grande bispo, com quem compartilhou muitas de suas opiniões, tendo boas razões para fazer suas muitas idéias lançadas pelo clérigo, pois, de maneira jansenista, em muitos de seus escritos, Mier roga pelo retorno à primitiva constituição da Igreja, em que todos os sacerdotes e não somente os bispos, figuravam como herdeiros dos apóstolos.

Outro marco notável na estada francesa de frei Servando se dá com sua aceitação no Instituto Nacional da França. No tempo da primeira república francesa haviam se restituído as Academias Nacionais, fundidas num único instituto, dividido em várias classes de disciplinas, onde se escolhiam os maiores sábios da nação e, como correspondentes, outros de toda a parte do mundo. Mier teria sido o único americano a ter a honra de ocupar um lugar na terceira classe, ligada à disciplina de História. É nesse período que o mexicano trava amizade com o viajante prussiano Alexander von Humboldt (1769 – 1859), notável expoente da Ilustração germânica que acabava de regressar de suas famosas viagens pela América, que o teriam conduzido da Venezuela a Lima, incluindo visitas a Cuba, terminando com onze meses de permanência na Nova Espanha. Humboldt se instalara na capital francesa para publicar a extensa massa documental de material recolhido ao longo de suas jornadas.

Os trinta volumes surgidos da pena do viajante mostraram uma gama sem paralelo de interesses, ricamente ilustrados com a fauna, a flora, a geologia americana, ao lado de ensaios sobre a história asteca e a economia política de Cuba e da Nova Espanha, acoplados de uma imensa quantidade de dados precisos, consubstanciados no Ensayo político sobre el reino de la Nueva España. Humboldt realizou um fecundo trabalho de investigação; sua poderosa capacidade sintética e organizadora lhe permitiu obter excelentes e abundantes frutos dos ricos arquivos e centros documentais que abriram suas portas ao viajante. Segundo conta Juan Ortega y Medina, a autorização real que recebera abriu as portas de todos os cadeados e fechaduras, devendo-se ressaltar que a liberalidade informativa do vice-reino da Nova Espanha foi incrível, tendo Humboldt acesso a grande parte do que quis graças à generosidade e desinteresse de José de Iturrigaray97.

Ortega y Medina acrescenta que o ensaio de Humboldt significou o reconhecimento da Nova Espanha e seu encontro com a sabedoria ilustrada do século; ainda que escrito por um estrangeiro, deveria ser apreciado como a culminação do movimento moderno mexicano, evidenciado pelo fato de que o

97 ORTEGA Y MEDINA, Juan A. “Estudo preliminar”. In: HUMBOLDT, Alexander von. Ensayo político sobre el

prussiano e os ilustrados do vice-reino sorveram das mesmas fontes e com isso estabeleceram entre si um diálogo estimulante 98. Nesse sentido, esse texto é essencial para todos os estudiosos da história do

México e do imperialismo espanhol, por seus efeitos políticos transcendentes, já que a elite criolla interpretou suas revelações como uma confirmação da riqueza e maturidade do México para a independência. Além disso, este ensaio permitiu que o resto do mundo tomasse conhecimento de uma parte do globo até então inóspita e desconhecida.

Em 1803, o México ainda era a cidade mais populosa do hemisfério e o vice-reino ocupava uma extensa região de terra que incluía a Guatemala e a Califórnia, e as análises do prussiano comprovavam o grande potencial mineiro e comercial do território, características que não poderiam deixar de ressaltar o valor de um possível Estado independente, ao comparar explicitamente as perspectivas da província com o extraordinário progresso logrado pelos Estados Unidos99. Conforme Brading, o rasgo mais notável da

descrição da cidade do México seria a sua modernidade, ficando Humboldt impressionado com os efeitos da revolução burbônica do governo no que se referia às instituições e organizações de ensino, como a Academia de San Carlos, que, desde 1782, formava uma geração de novos artistas, expressando sem dúvida que o México participava da cultura universal da Ilustração.

Todavia, foi o estado degradado dos índios mexicanos que mobilizou o prussiano a expressar suas mais enérgicas críticas ao país e sua reserva sobre a capacidade de progresso indiscriminado sem preocupação social, revelado pela monstruosa desigualdade de direitos e fortunas e dos domínios da terra, haja vista que os latifúndios se mantinham intactos geração após geração. Em uma das passagens, Humboldt diz:

“Las castas, descendientes de los negros esclavos, están notadas de infames por la ley, y sujetas al tributo, el cual imprime en ellas una mancha indeleble, que miran como una marca de esclavitud transmisible a las generaciones más remotas. Entre la raza de mescla, esto es, entre los mestizos y los mulatos, hay muchas familias que por su color, su fisionomia, y modales, podrian confundirse con los españoles; pero la ley los mantiente envilecidos y menospreciados. [...] Los indios y las llamadas castas, están abandonados a las justicias territoriales, cuya imoralidad ha contribuido no poco a su miseria”100.

As leis das Índias, destinadas a proteger os indígenas, tornaram-se sua pior cadeia, cujos remédios propostos pelo viajante englobavam mudanças políticas, como a abolição das restrições da atividade econômica dos índios, a divisão de suas terras em base individual e a comutação de seu tributo sobre

98 Ibidem, p.xlv.

99 BRADING, David. Op. cit., p.566.

forma de imposto. Rechaçando a literatura européia sobre as Américas, o prussiano afirma que os índios eram uma raça vigorosa e bem formada.

Sobre a difícil situação dos criollos, Humboldt conta que:

“El gobierno, desconfiado de los criollos, da los empleos importantes exclusivamente a naturales de la España antigua. [...] De aquí han resultado mil motivos de celos y de odio perpetuo entre los gachupines y los criollos. El más miserable europeo, sin educación y sin cultivo de su entendimiento, se cree superior a los blancos nascidos en el Nuevo Continente; y sabe que con la protección de sus compatriotas, y en una de tantas casualidades como ocurren en parajes donde se adquiere la fortuna tan rapidamente como se destruye, puede algún día llegar a puestos cuyo aceso está casi cerrado a los nascidos en el país, por más que estos se distingan en saber y en calidades morales. Los criollos prefieren que se les llame americanos [...] palabras que descubren los síntomas de un antiguo resentimiento” 101.

Essas observações e informações não passariam despercebidas aos olhos de Frei Servando, que embasaria boa parte dos seus escritos de caráter insurgente em documentos e análises de Humboldt. Além disso, Mier apresentou ao viajante suas teses sobre a tradição cristã pré-colombiana no novo continente. A bem da verdade, o prussiano aceitaria o argumento de Clavijero sobre a teoria tradicional de migração dos asiáticos para o continente americano, porém retornaria aos mitos dos grandes legisladores, como Quetzacoátl, onde sugeriria a presença de apóstolos budistas, ao invés de cristãos, pois seria possível que uma missão de monges chineses possa ter aportado no Novo Mundo, o que explicaria as analogias correntes entre ambos os continentes com comunicações antigas entre ambas as regiões102.