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Carta de Despedida a los mexicanos escrita desde el castillo de San Juan Ulúa por el doctor don

Um dos grandes compiladores da obra do dominicano, o historiador e político mexicano Armando Arteaga y Santoyo acredita que o dominicano talvez tivesse o projeto de fazer uma terceira edição dessa carta por haver encontrado vários manuscritos desse texto com erratas do punho do próprio autor na Biblioteca da Universidade do Texas, em Austin. Mier também teria escrito esta carta na prisão do castelo de San Juan Ulúa, em 1821, a caminho de uma nova deportação para a Espanha, e havia entregado uma outra versão desse documento a um amigo para que fizesse a impressão. O próprio frei Servando acrescenta que em seu regresso ao México, em 1822, advertiu que a publicação continha muitos erros na escrita e na pontuação, e que procedera apenas à correção dos primeiros, deixando ao leitor a emenda do segundo. Ao ver que a primeira versão dessa mesma carta fora feita com excesso de falhas ortográficas, o sacerdote quis corrigi-las numa nova versão.

Nessa carta de despedida aos mexicanos, frei Servando recorda os elementos substanciais da tese do célebre SG, apesar de que no, período em que escreve este texto, muitas de suas opiniões já haviam sido mudadas no que concerne à origem da imagem e ao milagre guadalupano. Preso na fortaleza, Mier teve motivos para acreditar que jamais voltaria à sua pátria e por isso quis se despedir e suplicar que não se perdessem as raízes mexicanas, com a supressão da letra “X” do alfabeto. Porém, esse era apenas o mote para ensejar um debate mais profundo sobre o esquecimento das tradições locais e da importância dos indígenas como herdeiros da velha cultura. Os mexicanos não deviam aos espanhóis o conhecimento do verdadeiro Deus nem do Evangelho, nem tampouco dos dogmas da Igreja. A América tinha seu apóstolo e verdadeira culpa tinha a Espanha em agir com violência e desrespeito aos povos americanos. Somente livre das forças espanholas, o México encontrava a glória almejada.

Mier é contra as novidades inúteis em razão de ter lecionado espanhol em Paris e Lisboa. Sente-se com autoridade para condenar a letra “J”, tão feia em pronunciação como em figura, e desconhecida pelos latinos. Dessa maneira, suplica a que não se suprima o “X” nos nomes de origem mexicana e asteca. O dominicano parte para novas associações feita pelos missionários entre a língua hebraica e o náhuatl, por isso não se poderia excluir a letra, por perder o sentido original das palavras. Por exemplo, México, com “X”, significa “onde está ou onde é adorado Cristo” e isso seria a maior glória da nação. Mesci era palavra hebréia que significa “messias” e seu correlato em náhuatl era Mexi, que significa “senhor da coroa de espinhos”.

A existência de um cristianismo pré-colombiano é provada na própria na carta de Hernán Cortez para Carlos V, cujo empenho estava em fazer acreditar ser o mesmo São Tomé por Montezuma e por quem as gentes esperavam. O chefe indígena teria sido convencido e acedeu com a reconversão em razão dos conquistadores terem as práticas mais presentes, já que os indígenas haviam esquecido no percurso do

tempo. No entendimento do mexicano, a pregação de São Tomé sobre a vinda de pessoas de sua mesma religião e que dominariam o país por algum tempo são a verdadeira chave da conquista das Américas. No entanto, se fosse somente em razão da fé a conquista teria sido pacífica e sem derramamento de sangue. Mas havia outros interesses em jogo.

O pensador mexicano parte para as já conhecidas associações ente México e as passagens bíblicas, como por exemplo, o fato de que os índios teriam em seu poder toda a Bíblia em hieróglifos, que foi sendo confundida com o tempo, transformando sua própria história e religião. A religiosidade mexicana não seria senão tradição cristã transtornada no tempo e na natureza dos hieróglifos. Dessa feita, os espanhóis, por incompreensão, destruíram a mesma crença que professavam e repunham as mesmas imagens que haviam destruído.

Mier relembra novamente que a Real Academia de História ratifica seu sermão, e esclarece que retoma tal teoria caso não tenha tempo de imprimir a HRNE antes de ser enviado para a Espanha. Frei Servando adiciona apenas a tese em que afirma que havia existido uma ilha desconhecida entre China e América, que promovia comércio entre ambas as localidades, o que explicaria as grandes semelhanças entre os calendários e culturas, bem como São Tomé teria peregrinado também ao Oriente. Além disso, reconta a tradição da presença do irlandês São Brendon – San Brendano ou mesmo Borodon –, na América do Norte, onde teria fundado sete igrejas, com a ajuda de sete discípulos. O dominicano acrescenta que Torquemada teria datado pontualmente o desembarque de Quetzacoátl, com sete discípulos, todos ruivos, brancos e de olhos azuis, além de um oriental. Ao que rapidamente Mier diz reconhecer elementos do ritual litúrgico Oriental nas igrejas mexicanas. Para ele, todos poderiam pensar que são fábulas, contudo, ele havia ganho o pleito e todos os direitos e honras, por isso exortava que todos os mexicanos lessem as obras dos sacerdotes e pensadores da conquista, autores que afirmam ser indubitável a antiga predicação do Evangelho na América.

6.1 Mier em defesa do patrimônio cultural pré-colombiano

Como primeira impressão na análise desse texto está a preocupação de frei Servando em preservar a memória e a tradição cultural mexicanas diante da invasão da modernidade na região. Viu-se que o ideário político servandino pautou-se pela construção de novas representações sociais e culturais do homem americano. Para alcançar seu objetivo, Mier descortinou o passado indígena numa clara tentativa de fazer reviver o fausto e a grandiosidade vividas pelos astecas, antes da conquista espanhola que os atiraria à degeneração e barbárie. Essa construção intelectual realizou-se em orientações políticas com a absorção de tais elementos com emblemas do estado que surgia. O mexicano não age apenas no intuito de proteger cultural e politicamente seu país, mas, sobretudo, de ressaltar o esplendor e a grandiosidade do passado indígena diante das importações européias e principalmente do povo espanhol, esses sim, visto como incivilizado pelos olhos do pensador americano.

Em vista do exposto, é corrente nos escritos servandinos a oposição entre riqueza e refinamento das sociedades americanas diante da dominação e a vilania cometidas pela Espanha. Todavia, Mier se utiliza do discurso bíblico e se arvora da posição de pregador para reafirmar a eleição das Américas, entre todos os outros povos, como aquele lugar em que se estabeleceria o paraíso na terra e onde a invocação do apóstolo São Tomé, em razão de suas possíveis peregrinações pelo continente, evidenciaria a natureza sagrada da América. Assim como no SG, nas cartas dirigidas ao El Español e na HRNE, se deslegitima a presença espanhola no Novo Mundo e se busca no passado a inteligibilidade do momento presente como garantia para reafirmar a necessidade da escolha da independência.

Frei Servando se vangloria por ter lecionado espanhol em Paris e Lisboa e seu discurso assume, portanto, o tom de autoridade que possui recursos suficientes para legitimar a sua fala, ainda que suas explicações sejam evidentemente questionáveis. O dominicano surge como homem versado na ciência humanística cujo grau de aprofundamento lhe permitiria dar opiniões sobre tudo o que se referisse à construção da nação mexicana. Nesse sentido, causa interesse notar o autocongrassamento de Mier como articulador da nação que se forjava. O sacerdote, como foi visto nas obras analisadas, não apenas opina sobre o alfabeto mexicano, especifica o formato do selo e a bandeira nacional, orienta a importância de uma estátua de Las Casas de frente para o porto de entrada no país e justifica a mudança nos nomes dos acidentes geográficos para que evoquem os tempos longínquos da majestosa sociedade asteca, expressando o ideal indigenista tão presente entre os ideólogos da revolução.

Frei Servando lista novos indícios para a sua análise do cristianismo trazido antes de aportadas as esquadras de Colombo, ao falar do irlandês São Brendon e do intercâmbio cultural ente América e China, país que também recebeu a visita de São Tomé. Esses rastros no Oriente se adequam perfeitamente às lendas nativas de que Quetzacoátl havia voado para o outro lado do mundo, de onde um dia retornaria para a América para levar consigo novamente à religião cristã. É importante ressaltar, como curiosidade histórica, que o SG que foi ratificado pela Real Academia Espanhola não continha em suas hipóteses as remissões relativas a missionários chineses ou irlandeses no continente americano. O sacerdote empreende, então, novos vôos inventivos sobre um debate retomado por ele na maioria de suas obras, ainda que tais teorias também não sejam originais, podendo-se notar que mesmo após 25 anos da pregação do sermão de 1794, Mier consagra a pregação como marco fundamental de suas aventuras intelectuais.

Ao encerrar este capítulo, pode-se concluir que as guerras pela independência americana se fizeram também por meio da palavra. A escrita de Frei Servando estava engatilhada e apontada para todos aqueles que se opusessem à causa da autonomia ou que não encontrassem o justo motivo por detrás das ações dos insurgentes. Assim como Thomas Paine reivindicou de maneira panfletária a autonomia dos Estados Unidos contra o jugo inglês, o pensador mexicano exige a retomada da soberania americana por meio de uma história apologética e dos direitos que repousavam na conquista da América, vistos por ele

como inquestionáveis. O ato de escrever do dominicano era automático e frenético, derramando no papel as suas angústias e razões sobre o processo de formação das repúblicas americanas. Era preciso falar sobre a causa, denunciar por todos os meios e repetidamente os anos de opressão vividos sob tutela espanhola, a única culpada pela rebelião, e a especificidade dos povos da América, em particular os mexicanos, fator que fazia do continente a nova terra prometida. Para Mier, porém, a escrita era a principal arma. Sua mente possuía munição suficiente para confrontar inimigos diante das batalhas em que eram necessários apenas o papel e a pena.