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1. Contexto histórico da pré-independência – mutações e permanências em combate no século das

1.3 Bases ideológicas da emancipação hispano-americana

Conforme a análise do historiador espanhol J. Vicens Vives, a emancipação hispano- americana tem um amplo período prévio de formação ambiental. O primeiro corresponde ao ciclo revolucionário iniciado com a revolução industrial na Inglaterra durante o século XVII, na evolução da América anglo-saxã – fator que culminou na independência das Treze Colônias – e na Revolução Francesa. O segundo período corresponde à formação interna de uma consciência emancipadora, manifestação de um antagonismo racial iniciado no momento da conquista. Esses pressupostos, porém, não têm fim com a simples proclamação das independências. Os motivos da emancipação

15CHIARAMONTE, José Carlos (org.). Pensamiento de la ilustración: economia y sociedad iberomamericana en el

siglo de la ilustración:economia y sociedad iberoamericana en el siglo XVIII. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1979.

p.xx.

permanecem em vigor depois de 1824 e constituem uma ampla problemática de fundo a que se unem novos fatores sociais, econômicos, ideológicos e políticos17.

Antes de compreender o momento de questionamento da autoridade da Coroa espanhola pela Hispano-América, é preciso compreender que a autoridade absoluta tropeçava desde o século XVI com a hostilidade manifesta de importantes minorias intelectuais procedentes tanto do campo católico quanto calvinista, cujas teorias pactistas e populistas, como já foi dito, supunham atitudes de freio aos princípios absolutos da monarquia18.

As teorias populistas foram desenvolvidas pelos juristas e teólogos ibéricos no século XVI, com base na doutrina de São Tomás de Aquino, do século XIII. Ao diferenciar autoridade religiosa da civil, era preciso a subordinação da segunda à primeira, sendo que a civil deveria se estabelecer sobre as idéias fundamentais de liberdade e de justiça humanas, contra as quais não se poderia atuar tiranicamente. A doutrina se assentava em três postulados: a soberania radica na comunidade, nenhuma autoridade poderia ser despótica e, caso o fosse, o povo teria direito a rebelar e até mesmo matar o tirano.

De acordo com o filósofo da Universidade de Boston Knud Haakonsen, essa construção intelectual foi utilizada pelos pensadores ibéricos diante das disputas contra o ideário protestante e sua compreensão de direito natural, embates centrados na figura de Hugo Grotius (1585 – 1645), considerado o precursor do moderno direito natural19. Grotius delineou uma teoria que convinha aos

protestantes. Porém, ainda que as novidades contidas em seu ideário fossem consideradas perigosas em demasia por muitos pensadores escolásticos espanhóis do século XVI, seu jusnaturalismo racionalista teria bastante influência nos reinos hispânicos no século XVIII, encontrando expressão nos fenômenos políticos vividos neste período.

Tais doutrinas populistas, como foi o tomismo, surgem como fonte de explicação para a origem do poder civil em rebate às teorias protestantes, ao renovar a força do escolasticismo diante das novas questões que se impunham, como a conquista territorial das novas colônias, no intuito de harmonizar a convivência entre as autoridades civis e religiosas, e subordiná-las à ordem eterna, encaminhando-as para o bem comum, a perfeição individual e a salvação ultraterrena. A lei natural também seria a fonte de explicação para as origens da sociedade civil, pois era marcada no coração de cada homem pelas mãos de Deus e era superior às leis positivas. Além disso, por ser a sociabilidade intrínseca à humanidade, a origem da autoridade pública seria divina; por isso o poder dos reis estaria enraizado na vontade de Deus, por meio do consenso estabelecido entre o divino e os homens, e orientado para a realização do bem comum. Dessa maneira, o povo transferia ao

17 VICENS VIVES, J. Op.cit., p.446. 18 Idem.

19 HAAKONSEN, Knud. Natural law and moral philosophy – from Grotius to the Scottish Enlightenment. Cambridge:

soberano o poder de fazer leis e governar a comunidade para o bem público, investindo o monarca da autoridade para estabelecer as leis positivas20.

Embora essas doutrinas tenham sido desenvolvidas pelos dominicanos, tendo em Francisco de Vitória (1485 - 1546) um de seus maiores expoentes, elas começariam a ser adotadas pelos jesuítas, que se dispuseram a difundi-las com grande empenho, e encontraram no jesuíta espanhol Francisco Suárez (1548 - 1617) seu grande sintetizador, cuja obra De legibus ac Deo legislatore expõe o cerne dessa escola21. Como atesta Barboza Filho, a preocupação básica de Vitória e Suárez

não seria a de diminuir o poder da Igreja, mas o de redefinir o seu papel e sua estrutura em condições históricas distintas da Idade Média, permanecendo, entretanto, como autoridade máxima em questões espirituais ao oferecer justificações para a Ibéria diante das conquistas territoriais ao reafirmar o ideal messiânico de suas sociedades22.

Outra teoria aplicada era a pactista, que se assentava no fato de a realeza não poder impor seu critério absoluto ao povo por haver subscrito com ele um pacto. Haveria um acordo entre Deus e o povo, ao qual se encontra integrado o rei, bem como existiria um pacto do povo com o próprio rei. Esse segundo pacto estabeleceria as relações e obrigações mútuas entre o monarca e a coletividade, o primeiro comprometia-se a governar com justiça e o segundo com o dever de obedecê-lo. Se o rei não cumprisse seu dever de respeito ao povo, era lícito à comunidade se sublevar contra a autoridade do monarca e depô-lo, no chamado direito de resistência, caracterizado pela utilidade social do poder, diferente da raiz cristã das doutrinas populistas. Ao ver de Antônio Manuel Hespanha, Suarez expressaria, dessa forma, a ascensão de um ideal consensualista, mais que contratualista, garantindo ainda o direito de resistência a uma lei ou autoridade injustas que não prezassem pelo bem comum, sendo possível notar que autoridade aparece sempre delegada, respectivamente, por Deus e pelo povo23.

É importante realçar que esses ideais setecentistas, representados pelo pactismo, pertenciam à uma tradição política legal, um tanto esquecida à época do absolutismo, mas que seria revivida por alguns ilustrados espanhóis e hispano-americanos, como justificativa para o processo de ruptura. Tais teorias alicerçaram também as bases do chamado constitucionalismo histórico, que teve na figura de Melchor de Jovellanos seu grande defensor, como já foi dito antes. O constitucionalismo histórico surge no século XVIII como uma clara proposta de reação ao despotismo ilustrado, em

20 O que expressava uma visão corporativa de uma sociedade rigorosamente hierarquizada por uma ordenação superior.

Cada estatuto comportava direitos e também deveres, bem como a obrigação de assumir em tudo uma atitude social correspondente ao estado. Na sua forma mais difundida, a auto-representação da sociedade medieval e moderna via-se dividida em três estados: clero, nobreza e povo. (XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, Antônio Manuel. “A representação da sociedade e do poder”. In: HESPANHA, Antônio Manuel. História de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Estampa, 1998. p. 120).

21 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1996.

p.415-416.

22 BARBOZA FILHO, Rubem. Op.cit., p.309. 23 HESPANHA, Antônio Manuel. Op. cit., p.121.

busca de um governo livre, apto a garantir a liberdade dos súditos e frear a arbitrariedade excessiva do monarca. Tal dispositivo político tinha o objetivo de legitimar um diálogo mais aberto entre rei e reino, em prol do estabelecimento de uma nova sociedade.

Diante das inevitáveis transformações sócio-políticas do contexto do processo de independência, as idéias pactistas perderiam lugar para as idéias de caráter eminentemente revolucionário, por não ser mais possível falar em reforma monárquica diante da omissão das Cortes espanholas às necessidades de expressão política e administrativa das colônias, assim como no retorno ao poder de Fernando VII e sua tentativa de restabelecimento do regime absolutista. Tal foi o caso de frei Servando Teresa de Mier que, primeiramente, defendeu a causa americana tendo por base as teorias pactistas e invocaria essa tradição jurídico-filosófica para embasar o direito à autonomia. Porém em um momento posterior já não mais falaria de acordo entre Coroa e colônias, mas sim, pregaria a independência absoluta. Seu ideário se inspiraria igualmente nas proposições de Rousseau, Voltaire e Montesquieu, que o frei não assume abertamente e mesmo condena como inspiradoras do terror e das revoltas populares.

A doutrina pactista teve oportunidade de manifestar-se historicamente na Inglaterra, no direito de resistência real de João Sem Terra e com Oliver Cromwell e a política do Commonwealth, que proclamavam o princípio da soberania popular, segundo o qual todos os poderes do governo procedem do povo. Por tal acordo se pedia a extensão do sufrágio, uma constituição e um parlamento, maior difusão dos direitos civis e de propriedade, a proibição dos monopólios e dos direitos e tribunais feudais, com o restabelecimento do direito aos bens comunais. A influência dessa reforma política pode ser sentida em John Locke nos tratados Sobre o Governo Civil, de 1690, que constituem um desenvolvimento de tais idéias e foram base para a Declaração de Independência da América do Norte e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada na França em 1789. Essa, por sua vez, foi traduzida e impressa pelo colombiano Antonio de Nariño, em 1794, obtendo uma larga difusão no continente americano.

Ainda que os princípios ideológicos estivessem em vigor desde o século XVII, é somente no século XVIII que incidiriam na América espanhola, coincidindo com o anacronismo vivido pela administração política da Espanha diante das modernas tendências ocidentais. Na opinião de Vicens-Vives, o reformismo burbônico buscava a revitalização da empreitada colonial ao final do século XVIII, consubstanciada no protecionismo econômico, patriarcalismo político, assimilação racial e difusão do catolicismo e da cultura. Contudo, no seio colonial havia sido gerada uma força social, matriz da consciência revolucionária, servidora dos interesses econômicos e políticos da elite colonial, consubstanciada no fenômeno do criollismo, que estava apto a receber todos os influxos da ideologia cosmopolita, a qual vinham implícitos os pressupostos da emancipação24.

Antes de finalizar este tópico, é preciso pôr em relevo o debate ressaltado pela historiografia contemporânea sobre a negação do pensamento de que a independência hispano-americana seria fruto da simples fusão entre as ideologias barrocas e as anglo-francesas. Como já dito nas linhas acima, a Hispano-América estava permeada de ingredientes ideológicos díspares, ocorrendo um fenômeno de modernidade legal, mas com tradicionalismo na base social. Por muitos anos a historiografia considerou que as revoluções de independência eram fruto das idéias modernas da Revolução Francesa sem considerar outros fatores de ordem cultural e interna das colônias americanas. É válido ressaltar que para Guerra, nem mesmo a pluralidade e a diversidade não poderiam explicar sozinhas a unicidade de um fenômeno, sendo importante perceber que todas as Américas possuem em comum o pertencimento a um mesmo conjunto político e cultural que vivenciou a construção de um novo fazer político25.

A preocupação em rotular as bases em que a ideologia emancipadora se apoiou existe por medo de se correr o risco de uma visão unilateral e restritiva, tendo em vista a complexidade teórica ser tamanha que exclui qualquer possibilidade de intenções exclusivistas. Reconhece-se a percepção de tendências a que as diferentes regiões do mundo colonial se enquadrariam. Haveria no mundo hispânico a existência de dois eixos no interior do processo de independência que conduziriam à tomada de posições diferentes em relação ao grau de influência exercido pelos ideais iluministas. Trata-se do eixo Buenos Aires – Caracas, no qual prevaleceu o Iluminismo francês de tendências mais liberais e reformadoras da estrutura social vigente, exemplificado pela proclamação das Repúblicas de Caracas e Buenos Aires em 1811; e do eixo Lima – México, caracterizado pelo Iluminismo espanhol de tendências conservadoras, cujas mudanças dar-se-iam dentro da ordem estabelecida.

O processo revolucionário na América dá-se em decorrência de um processo político único, que desemboca na fragmentação da monarquia espanhola no continente americano, onde se vê surgir múltiplos Estados soberanos. A revolução começaria, no mundo hispânico, não por uma simples maturação interna, mas por uma profunda crise administrativa na monarquia espanhola, provocada pela invasão napoleônica. Uma nova noção de identidade surge, invocando-se a certeza na mudança dos sentimentos das colônias, no que se referia a seus direitos individuais e coletivos. Portanto, em um cenário de disputa pelo poder, as forças vitoriosas procuraram embasar suas conquistas em uma nova construção intelectual que legitime sua permanência. Somente uma ação reformista poderia tentar por fim a um contraste entre o real e o ideal, indivíduos ao invés de corpos e estamentos, igualdade ao invés de hierarquia, poder fundado na vontade dos cidadãos e não na Providência entre outras idéias dentro contexto histórico nascente. Todavia, tendo-se em conta o contexto das

insurgências da Hispano-América, é preciso considerar que mesmo com a independência formal, seus valores, vínculos e comportamentos seguiriam de forma tradicional.