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Frei Servando no império de Iturbide e na república de Guadalupe Victoria

1. Rota servandina entre os anos de 1821 e 1827

1.2 Frei Servando no império de Iturbide e na república de Guadalupe Victoria

Desde a HRNE, escrita em 1813, frei Servando demonstrava seu desconforto em relação ao general regalista Agustín de Iturbide, como que antevendo o futuro político que a nação mexicana alcançaria caso os grupos militarizados, representados pelos caudilhos, tomassem o poder. Ainda que num primeiro momento Mier tenha nutrido tímidas esperanças acerca da opção política mexicana apresentada por Iturbide, como se verá na análise da MPI, o Plan de Iguala não seria

196 ALAMÁN, Lucas. Semblanzas y ideario. México: Universidad Autónoma de México, Biblioteca del Estudiante

instrumento suficiente para serenar o espírito do dominicano em relação à independência de seu país. Após anos de perseguição pelas autoridades regalistas e cônscio dos reais problemas de sua pátria, como a carência de instituições estáveis e a divisão de grupos locais que buscavam apenas a satisfação de seus interesses, o sacerdote vislumbrava com claridade os motores que moviam o processo de independência mexicano e expôs abertamente suas críticas ao Império de Agustín I, no Congresso, já como deputado.

Na opinião de Alamán, Mier era a mistura das mais opostas qualidades. Republicano decidido e inimigo dos monarcas, frei Servando teria reclamado na sessão em que se apresentou no Congresso a ausência do “de” anteposto ao seu sobrenome, sendo chamado apenas de don Servando Mier, o que o sacerdote considerou um disparate, visto que a partícula representaria um qualificativo da nobreza de que ele supunha ser descendente. Ainda que censor dos abusos da Corte de Roma, o mexicano exigia ser reconhecido como prelado doméstico do papa, e por isso, dizendo- se nomeado bispo de Baltimore, usava o traje peculiar ao portador de equivalente título. Alamán descreve a cena em que tendo chegado à cidade do México após sair dos grilhões de Veracruz, frei Servando foi se apresentar a Iturbide, e sem dar-lhe o tratamento de majestade, teria desaprovado às claras a proclamação e a coroação que iria ser realizada, não passando a consagração de Iturbide como imperador da aplicação do remédio conhecido com o nome de vinagre de los cuatro ladrones. Outro historiador contemporâneo a frei Servando, Miguel de Beruete y Abarca escreveu um diário sobre os momentos mais importantes da nação, sempre dando realce à presença de Mier nos primeiros instantes que marcaram a formação política do país, ao exaltar as frases do dominicano e apresentá-lo como o Apóstolo da República. As passagens apresentadas por Beruete em seu diário permaneceram inéditas durante mais um século e meio, sendo publicadas por outro historiador, Andrés Henestrosa, apenas em 1974, sob o título de Elevación y caída del emperador Iturbide197.

Pode-se vislumbrar a confirmação de grande parte dos relatos do historiador mexicano nos trabalhos historiográficos empreendidos por Carlos María de Bustamante e Lucas Alamán.

Beruete conta que, na cerimônia de coroação de Iturbide como imperador, Mier foi convidado pelo presidente do Congresso mexicano, Rafael Mangino y Mendívil, que o nomeou para a comissão de deputados que deviam assistir ao Te Deum da catedral no ato da coroação, acreditando que isso honraria o sacerdote. O frei agradeceu a cortesia, mas declinou ruidosamente ao dizer que era proibido aos clérigos presenciar comédias. Também, nesse mesmo dia, além de não assistir o ato do coroamento, o dominicano teria saído cedo de sua casa para ridicularizar a ordem de Guadalupe, milícia constituída naquele dia como guarda oficial do imperador. Mier teria gritado “¡Huehuenches!”, que significava os velhinhos, os dançarinos, em alusão a sua indumentária de aparência exuberante, com mantos e plumas que lembravam as utilizadas pelos indígenas em suas

197 Ver BERUETE, Miguel de. Elevación y caída del emperador Iturbide. Transcrição, prólogo e notas de Andrés

danças rituais. Dessa feita, frei Servando foi responsável por, pejorativamente, batizar a guarda com um apelido que pronto tomou gosto popular e passou a caracterizar os indivíduos que pertenciam àquela ordem.

Henestrosa esclarece que muitos pesquisadores questionaram se o papel atribuído a Mier pela pena de Beruete não seria em verdade obra do próprio frei, assinada sob um de seus pseudônimos, devido ao destaque dado às ações e pronunciamentos do sacerdote. Não há afirmativas conclusivas com relação a tais indagações levantadas. É fato que frei Servando era o maior divulgador de suas próprias glórias e façanhas em nome da pátria, como se pode vislumbrar em seus escritos. Porém, ele se teria tornado figura carismática em seu retorno ao México no pós- independência, elevado ao patamar de guia moral a quem se deveria ouvir com atenção.

A prisão de Mier em 27 de agosto de 1822, consignada no diário de Beruete, demonstra certo distanciamento e não observa a passionalidade servandina quando advogava a própria causa em nome da liberdade diante dos processos judiciais ilegítimos. Junto a outros deputados mexicanos, frei Servando opôs-se aos planos políticos de Iturbide, tornando-se seu crítico ferrenho ao declarar-se abertamente como republicano, forjando-se uma conspiração que se salientava a falta de liberdade do Congresso na eleição do imperador. Isso lhe valeu nova perseguição e o retorno à prisão no convento de São Domingos em razão das suas manifestações públicas de rejeição à fraca e instável política de governo do império de Agustín I. O sacerdote conseguiu fugir da prisão, porém foi novamente apreendido e posto em reclusão. A sublevação da milícia mexicana contra Iturbide pôs o frei novamente em liberdade sendo, junto a outros deputados, transladado para Toluca.

O imperador, por sua vez, diante das críticas dos oposicionistas em relação às prisões de deputados e de representantes do exército, dissolveu o Congresso mexicano em 31 de outubro de 1822. Os republicanos carentes de poder no ramo legislativo continuaram difundindo suas idéias entre os militares. Antonio López de Santa Anna proclamou a república em dezembro de 1822, contando com o apoio de Guadalupe Victoria, posteriormente acompanhados por Nicolás Bravo e Vicente Guerrero. Na data de 02 de janeiro de 1823, Beruete lança em suas anotações a notícia da tentativa de fuga de frei Servando e do seu aprisionamento em um calabouço. Ainda que estivesse encarcerado, Mier não cessara em sua luta contra Iturbide, satirizando, com seus escritos, todos os atos realizados pelo imperador, enxergando o império de Agustín I como uma grande pilhéria. O governo proposto por Iturbide tem seu desfecho em 19 de março de 1823, ao abdicar o trono após reunir novamente os parlamentares. Consta a seguinte passagem no diário, na data de 29 de março do mesmo ano, sobre o retorno dos parlamentares ao congresso reaberto:

“En la mañana de este día, se reunieron 103 vocales en el Congreso. A sus puertas se vieron, puestos de centinelas, dos coroneles, con fusiles al hombro y gran parte de la guardia se componía de una oficialidad muy

lucida de varios cuerpos. A la entrada en el salón del padre Mier, comenzó un viva y palmoteo muy largo del numeroso concurso que había en las galerías. La sala pareció más hermosa que antes, porque bajo el dosel no se veía ya el retrato de Iturbide. […] Acordóse que se nombrase una comisión para que se consultase quiénes deberían componer el Gobierno o Poder Ejecutivo. […] El padre Mier pidió que no se le llamase Regencia, porque ni había rey ni permitiera Dios que lo hubiese”198.

O jornal de 1º de abril publicava o juramento do congresso restabelecido:

“Ya tenemos gobierno. Esta sola expresión bastó para sacar muchas lágrimas a los que la oyeron. […] Yo vi correr dos hilos de los ojos del padre Mier; tal escena me trastornó y me hizo recordar los torrentes que ha derramado este anciano venerable, por la gloria y la libertad de un pueblo que justamente le adora”199.

Henestrosa chama a atenção para o fato de que o historiador Carlos María Bustamante teria publicado em sua obra idêntica frase sobre o mesmo acontecimento, estimulando-se, assim, as indagações sobre se teria sido o diário inédito de Beruete lido e aproveitado por seus contemporâneos mais de cem anos antes da publicação de 1974 ou se ambos os autores teriam extraído passagens de publicações anteriores que serviram de fonte para seus próprios estudos. A questão autoral sobre as primeiras passagens relativas à construção do aparelho estatal mexicano permanece ainda hoje carente de estudos abrangentes.

No que se refere às principais questões do segundo congresso mexicano (1823 - 1824), elas se alicerçavam na busca da formatação da república que iria se estabelecer, com discussões acerca do caráter constitucional, divisão de poderes, estrutura das instituições políticas e civis, sendo que o principal debate centrava-se na disputa entre federalismo e centralismo. Frei Servando foi reeleito para o Congresso também pela província de Novo Leão e tratou de alertar o Parlamento mexicano do perigo de se implantar um regime federalista pleno, a exemplo dos Estados Unidos, sugerindo um tipo de federação que fosse controlada por um centro de poder forte.

Mier e Carlos María Bustamante uniram suas forças para propugnar uma república centralizada, com um poderoso poder executivo. Mier participou e foi o principal colaborador do Projeto de Constituição da nação mexicana e seu voto pessoal circulou entre as bancadas do parlamento. Contudo, a maioria radical do Congresso optou por uma Constituição federal, movida pela pressão dos políticos locais que estavam impacientes em libertar seu território do domínio da cidade do México.

Em dezembro de 1823, Mier se levantou no Congresso e pronunciou o famoso discurso conhecido como Profecía del doctor Mier sobre la federación mexicana, em que argumentava que

198 HENESTROSA, Andrés. “Prólogo”. In: TERESA DE MIER, Servando. Historia de la Revolución de Nueva España.

México: Fondo de Cultura Económica,1986. p.08.

uma Constituição não deveria ser introduzida como instrumento de reformas, mas que se deveria observar o caráter nacional e a realidade social no momento de se legislar. Frei Servando condenou e alertou os mexicanos para o cuidado que deveriam ter ao olharem-se no espelho dos Estados Unidos e não enxergarem a verdadeira face do México. Seu discurso se tornaria um emblema profético dos anos posteriores que viveria a nação mexicana e suas preocupações viriam à superfície, demonstrando a acurada percepção do dominicano em compreender as mazelas sociais de seu país.

Uma observação que causa interesse e que surge das linhas de Beruete seria a concepção errônea que se tem sobre Mier no que se refere ao um desprezo desarrazoado em relação à Espanha. O historiador mexicano afirma que na sessão de 1º de fevereiro de 1824, o deputado Miguel Ramos Arizpe se teria exaltado contra a Espanha, o que frei Servando teria contradito e rebatido, passagem essa também descrita nos trabalhos de Bustamante. Henestrosa acredita que o dominicano era contra a Espanha dominadora da América, mais que reconhecia as dívidas que os americanos possuíam em relação aos europeus, assim como exigia respeito da antiga metrópole pela nação que surgia. Não que o sacerdote tenha, na maturidade intelectual, renegado os escritos em defesa da independência americana, mas sim que em seu posicionamento como guia moral da nação mexicana o frei possuía a consciência de que era preciso maior cautela nas afirmações para evitar que novos ódios fossem gerados ou derramamento de sangue causado. Dessa maneira, frei Servando pronunciava-se alternativamente a favor e contra os espanhóis, de acordo com o ângulo sobre o qual considerava a história do México.

Em 10 de outubro de 1824, Guadalupe Victoria assume como primeiro presidente eleito pela República Federal do México, tendo Nicolás Bravo como vice-presidente. Alamán dá a conhecer que o presidente Victoria havia alojado frei Servando Teresa de Mier em seu palácio presidencial e que lhe agradava escutar com paciência as “impertinências” ditas pelo sacerdote. Alfonso Reyes opina ao dizer que “acaso amenizaría las fatigas del amable general Victoria con sus locuras teológicas. Y de tiempo en tiempo el acordarse de sus luchas pasadas, que era la imagen de la patria, temblarían en sus mejillas dos hilos de lágrimas”200.

Havendo encontrado o reconhecimento de seus atos heróicos ainda em vida e sendo laureado como um dos pais da pátria mexicana, frei Servando, nos últimos anos de vida, gozou de prestígio social e carisma político. O pensador mexicano passou a ocupar uma das dependências do palácio de Guadalupe Victoria, bem como recebia uma pensão de três mil pesos anuais, oferecida pelo governo, em razão de sua trajetória pessoal em favor da independência. O derradeiro escrito, que gozou de ampla publicidade, antes do falecimento do frei, é o Discurso sobre a encíclica do papa Leão XII, onde revela as tramas políticas nos bastidores das cortes romanas e a manipulação do

papa por parte das políticas espanholas. Mesmo nos momentos finais de sua existência, o frei continuou exercendo a escrita como arma política de crítica e com o empenho habitual em alertar o povo mexicano contra as artimanhas utilizadas pela Espanha em busca do controle da América.

Em 15 de novembro de 1827, frei Servando recebeu o sacramento da eucaristia das mãos de Miguel Ramos Arizpe, amigo e adversário eventual nos anos de parlamento mexicano, devido a impossibilidade de sair de casa por sua avançada debilidade física. Ao receber os últimos sacramentos, contudo, o sacerdote advertiu os amigos e as pessoas próximas a ele dos perigos do federalismo e das lojas maçônicas e declarou que morria sendo um católico fiel. Mier faleceu de causas naturais aos sessenta e quatro anos de idade, em 03 de dezembro de 1827, no quarto do palácio nacional.

No obituário escrito pelo deputado e historiador José María Luís Mora (1794 -1850), consta que seu corpo foi sepultado com grandes honras oficiais e clamor popular no convento de São Domingos do México, local onde havia sido preso no império de Iturbide, o que, de certa forma, representou uma ironia final em sua vida201. O vice-presidente da República, Nicolás Bravo, dirigiu

as homenagens ao sacerdote e, segundo Mora, compareceram ao sepultamento as grandes autoridades da cidade do México e o povo, que se agrupou de tal maneira nas ruas por onde devia passar o féretro que impediu a livre circulação dos transeuntes, podendo-se ter uma idéia do sentimento geral em razão da multidão que se formou em seu funeral.

Homem de temperamento inquieto e aventureiro ao longo de toda sua vida, cujas façanhas e personalidade o transformariam em figura surreal e quase mítica, não poderia encontrar na morte o sossego simples da paz e do descanso eternos. Seu cadáver percorreria o mundo novamente. Em 1842, seu corpo foi exumado e, havendo sido encontrado mumificado, foi conservado no ossuário do convento. Em 1861, foram suprimidas as comunidades religiosas e por isso seu esqueleto teria sido novamente exumado, dessa vez pelos radicais mexicanos, sendo expostas treze múmias em São Domingos; quatro delas, entre as quais se encontrava a de Mier, foram vendidas a um certo Barnabé de la Barra, provavelmente um proprietário de circo italiano que as teria levado para Argentina e Europa. Dessa feita, o corpo mumificado de frei Servando Teresa de Mier teria saído novamente do México sendo encontrado exibido morbidamente como vítima da Inquisição espanhola. É sabido que seus restos mortais foram atração na feira de Bruxelas em 1882. Desconhece-se até hoje o verdadeiro paradeiro dos restos mortais do mexicano, embora seja homenageado no mausoléu de homens ilustres da cidade de Monterrey e também no panteão dos heróis da pátria na cidade do México. O nome de Mier perpetuar-se-ia na História em nome de ruas, avenidas, escolas públicas e bibliotecas, bem como por meio de estátuas e bustos comemorativos em honra aos préstimos que prestou à nação. A revolução se fez monumento, ao evocar no presente as glórias dos feitos

201 MORA, José Maria Luis. “Obituário”. In: TERESA DE MIER, Servando. Historia de la Revolución de Nueva

passados, legitimando-os, e com isso alicerçando na memória coletiva a suposta continuidade entre os líderes contemporâneos e os pais fundadores do país, ainda que as diferenças ideológicas fossem insuperáveis e o contexto histórico vivido fosse diverso.

2. Memoria político-instructiva, enviada desde Filadelfia en agosto de 1821, a los jefes