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Um modo de atravessar regras que favorece um status de verdade na metodologia seria o uso instrumental de variadas técnicas e conceitos de autores de diferentes lugares epistemológicos, conforme a proposta de uma metodologia queer (LEÓN, 2012).

A metodologia queer concebe o método como singular, híbrido e permite o uso de técnicas de diferentes lugares, subvertendo-as, utilizando-as para uma finalidade específica e situada. Sendo assim, usamos diferentes instrumentos: questionários sociodemográficos e oficinas.

Por ser uma pesquisa integrada ao Projeto Diálogos, não houve necessidade de ser submetido, individualmente, ao Comitê de Ética da Universidade. Os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido foram, portanto, os termos previstos no Diálogos.

As transcrições, gravações de áudio e audiovisuais ficaram armazenadas em armário fechado no Laboratório de Estudos sobre a Sexualidade Humana (Labeshu) – localizado no sétimo andar do Centro de Ciências Humanas e Filosofia da UFPE –, onde permanecerão durante os cinco anos seguintes, para preservar os participantes e servir de consulta com finalidade acadêmica. Ao chegar esse prazo, o material escrito será recortado, o audiovisual desgravado e encaminhado para reciclagem, de acordo com as recomendações da resolução do CFP (016/2000).

26Durante a pesquisa, uma das integrantes arranjou trabalho como cozinheira, mas continuou “na lida” (gíria usada para falar prostituição).

As oficinas nessa pesquisa se constituíram através da problemática da escola e da diferença. Conforme orientação de Dirce Backes et al (2011), o grupo poderia variar entre 6 e 15 participantes, para facilitar a comunicação entre os membros, porém esse quantitativo está subordinado ao número de pessoas disponíveis para a proposta, que variou ao longo da pesquisa. Flexibilidade semelhante encontramos na pesquisa de Maria Eduarda Barbosa e Karla Adrião “Menina, fecha as pernas” e outras questões de

gênero, que também realizou oficinas, como proposta metodológica.

As oficinas possuíam um caráter interventivo. Elas podem ser vistas como um espaço de acolhimento e de reflexão de questões que estimulam a participação de seus integrantes (JEOLÁS; FERRARI, 2003; BARBOSA; ADRIÃO, 2011).

Essa modalidade de intervenção possui uma dimensão formativa, ao mesmo tempo pode prever um procedimento de ação, como, por exemplo, a produção de materiais de intervenção em conjunto com as integrantes, que conduz à reflexão sobre as atividades desenvolvidas (MARTINS, 2013). Neste estudo, compreendemos a oficina em seu aspecto eminentemente reflexivo, como espaço de troca, de formação.

O seu caráter interventivo privilegia a discussão coletiva, com o objetivo de refletir sobre questões consideradas relevantes para o grupo, que faria uma síntese de seus achados e o produto final envolveria a troca entre pesquisadoras/pesquisadores e o grupo (FREIRE, 1984). O autor deixa método em aberto para modificações de acordo com necessidades e especificidades da pesquisa, dos/das pesquisadores/pesquisadoras e do grupo.

Faz-se necessário, contudo, ponderar a respeito do ideal de libertação presente na obra freireana, pois uma “[...] emancipação dos indivíduos garantindo-lhes a prerrogativa de agir segundo suas próprias decisões, é um mito racionalista” (COSTA, 1995, p.128) baseado numa concepção de sujeito autônomo, liberal e iluminista.27 Neste sentido, a reflexão do grupo e das pessoas não traria consigo uma promessa ou anseio de libertação e conscientização do outro, mas sim o estímulo a práticas de liberdade.

As oficinas foram conduzidas em consonância e a partir da articulação entre a noção de práticas de liberdade e de cuidado de si em Foucault, com a intenção de proporcionar um espaço de cuidado e de reflexão. O primeiro termo (em itálico) é uma expressão usada por Foucault (2006) para designar o exercício da condição de liberdade

humana de uma maneira mais reflexiva. A ideia de prática de liberdade encontra-se em estreita ligação com a concepção de cuidado de si.

Esse último adveio da Grécia Antiga, quando as pessoas eram convidadas a praticar o cuidado, de um modo muito bem sintetizado na máxima de Sócrates: “ocupai- vos de vós mesmos” (FOUCAULT, 2011). O cuidado de si, segundo ainda o autor, foi disseminado em diferentes escolas filosóficas da época, desdobrava-se em variadas práticas (meditação, autorreflexão, exercícios físicos, regimes de alimentação, valorização do estabelecimento de laços de amizade), cujo ponto em comum era o olhar voltado para si, sem a intenção da vigilância, mas de cuidado.

Essa aparente sutil diferença entre cuidado e controle se desdobra em práticas menos autoritárias e mais acolhedoras dos diferentes modos de ser. Todavia, essa atenção não se encerra no “si mesmo” a que estamos acostumados/as a pensar, desconectado de tudo e de todos. Pois o sujeito desse período era o sujeito da polis (cidade), logo o cuidado de si tinha como objeto último, não o indivíduo isolado de tudo, mas o sujeito em suas relações, em sua comunidade.

Com isso, as intervenções da pesquisadora durante as oficinas buscavam acolher suas formulações, esclarecer alguns aspectos das falas, confirmar se havia compreendido o que diziam, problematizar algumas certezas, trazer informações sobre seus direitos, motivar e garantir o espaço para expressão de todas as presentes.

Há de se ressaltar que a escolha em trabalhar com grupo e com essa população- alvo não se deu aleatoriamente. O Plano Nacional da Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT elege os trabalhos em grupo como uma alternativa metodológica indicada para o levantamento de informações a respeito dos processos de exclusão social nesse campo (BRASIL, 2009b). Além do mais, Peres (2005) indica a realização de oficinas com travestis discutindo seus direitos, devido à peculiar vulnerabilidade dessas pessoas e à fragilidade nos laços sociais a que estão usualmente submetidas.

Nesse sentido, o trabalho em grupo favoreceu a expressão dessas pessoas, facilitou certa dissolução do poder e controle da pesquisadora em sua função condutora, quando em diversos momentos permanecia observando tão somente o diálogo entre as interlocutoras. Neste ponto, percebemos as oficinas como espaços estratégicos de instrumentalização e de articulação política, mas também de fortalecimento e de estabelecimento de laços de solidariedade, de reflexão sobre si e seu meio.

Por conseguinte, com a preocupação em não somente conhecer sobre as participantes, mas de estabelecer um processo de troca no qual elas também poderiam se

beneficiar diretamente, as oficinas aconteceram em torno de três eixos (ver roteiro no apêndice B): “Experiências na Escola” (EIXO 1), “Debatendo a legislação” (EIXO 2) e “O que dizer? Como queremos dizer?” (EIXO 3).

As oficinas foram organizadas de modo que tinham começo, meio e fim em cada um dos momentos. O grupo era aberto, permitindo a entrada e saída das participantes ao longo do trabalho. Na primeira oficina, foram escutadas histórias, narrativas da vida escolar, investigando suas dificuldades e suas estratégias de inserção na escola de cinco coparticipantes (EIXO 1), com o objetivo de desanuviar a problemática da evasão escolar das travestis (ou melhor dizendo exclusão) encontrada na literatura científica.

No segundo encontro, foram abordadas questões relativas às políticas públicas, considerando o direito à educação, uso do nome social, do banheiro, das recomendações quanto às discussões de gênero e de sexualidade na escola (EIXO 2). Sabemos que fazer circular os discursos, particularmente o discurso jurídico, é um modo de favorecer tensionamentos nas relações de poder estabelecidas:

em nossas sociedades (e em muitas outras, sem dúvida), a propriedade do discurso – entendida ao mesmo tempo como direito de falar, competência para compreender, acesso lícito e imediato ao corpus dos enunciados já formulados, capacidade, enfim, de investir esse discurso em decisões, instituições ou práticas – está reservada de fato (às vezes mesmo, de modo regulamentar) a um grupo determinado de indivíduos (FOUCAULT, 2008b, p.75).

Dessa maneira, essa oficina cumpria a função de retribuir, mais diretamente, a participação das pessoas na pesquisa com informações de seus direitos, oferecendo um certo panorama dos direitos adquiridos no país (distribuiu-se pasta com compilado de legislações, ver apêndice C).

No último encontro, o grupo foi convidado a condensar as informações consideradas relevantes, com vistas a elaborar um material de comunicação que contribua para uma melhor convivência das travestis nas escolas (EIXO 3). A quarta oficina foi uma oportunidade não só para sintetizar aquilo que acharam de mais importante, como também para avaliar os encontros.

Como contrapartida à participação na pesquisa, articulamos oficinas28 para a construção de material audiovisual (a linguagem de documentário escolhida pelo grupo

28 Nessa etapa, o papel das pesquisadoras foi tão somente de ponte, de apoio. Contamos com a contribuição voluntária do educador Raphael Alário, e da comunicadora social Gabriela Torres (ver currículos em anexo 2).

para comunicar suas discussões). Essas oficinas favoreceram a apropriação de uma ferramenta de comunicação, produtora de efeitos de visibilidade.

Os resultados e produtos finais das oficinas, juntamente com o resultado da pesquisa, serão publicizados em diferentes veículos e locais, dando prioridade ao Cabo de Santo Agostinho.

Complementando este estudo, foi realizada a análise do documento, de cartilhas educativas do programa Saúde e Prevenção nas Escolas, com a intenção de contribuir para o repensar de políticas públicas de gênero e sexualidade no sistema de ensino formal brasileiro.

No subtópico a seguir, descreveremos os conceitos a partir de que foi empreendida a análise das oficinas no Cabo e das cartilhas do Ministério da Saúde, em parceria com o da Educação.