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4 A ESCOLA E PRODUÇÃO DA DIFERENÇA

4.2 Travesti e o cotidiano escolar

4.2.2 O nó do banheiro

Jeane assevera que “o único problema era o banheiro...”, ou seja, mesmo para as travestis que afirmaram ter sido bem acolhidas na instituição, o banheiro era um tabu, que funcionava como um divisor de águas, de corpos. Neste sentido, Bruna afirma: “Tem mulher que não gosta.” Bárbara acrescenta: “não gosta... ôxe, se é um homem tá

fazendo o que, aqui?”, revelando que nesse lugar a separação dos corpos obedece à lógica biologizante (pênis =homem→ banheiro masculino). Seguindo essa linha de pensamento, as escolas as orientavam, usualmente, a usar o banheiro masculino. Contudo, essa aparente solução não resolve o problema, pois no banheiro masculino estavam ainda mais sujeitas à violência: “Porque eu já fui expulsa do banheiro

masculino. Já… de pé a pé, não quiseram saber não. Disseram que se eu quisesse

urinar, eu fosse no banheiro feminino, porque lá não era meu lugar não” (Bárbara).

Ora, sabemos que o banheiro serve como marcador dos corpos generificados, que ratificam as normas de gênero. Sendo assim, a utilização dos banheiros pelas travestis gera desconforto e violência, pois coloca em xeque a divisão dos espaços, a partir dos critérios que alinham sexo, gênero e prática sexual.

As palavras de Bárbara ecoam nessa complexa trama: “Tento voltar (para a escola), mas quando eu penso a barbaridade que a gente passa, ter que estar entrando

em banheiro masculino, eles botam a gente pra fora, porque pensam que a gente vai

estar se enxerindo pra eles, não vai fazer nossas necessidades” (Bárbara).

Vale pontuar que elas não obedeciam cegamente à regra de usar o banheiro masculino, exercendo suas vontades, nas brechas institucionais, cometendo pequenas transgressões:“Quando ele não aparecia, o diretor, eu usava o banheiro feminino. Mas

quando ele aparecia, era o masculino” (Jeane). O relato de Carla também nos oferece

vestígios das transgressões, pois retrata que quando ninguém estava olhando, também usufruía do banheiro feminino: “Não podia, mas mesmo assim a gente frequentava, né?

Nas horas, assim, vagas, que a gente via que não estava circulando, aí eu olhava assim,

tanto o masculino como o feminino: a hora é essa!” Neste caso, o olhar do outro surge

enquanto vigilância e ratificação da norma de gênero. Já no uso do banheiro feminino, a presença de conhecidas gerava maior confiança:

Jeane: “porque as meninas que estudavam comigo... eu ia mais com as meninas da minha sala. Aí as meninas como tão todas habituadas comigo, acostumadas comigo, então não tinha nada.

Jeane: “E porque era banheiro individual, né? Aí não tinha como elas estarem falando nada porque tem porta.

A segurança e tranquilidade de Jéssica eram garantidas pela divisão público/privada presente na organização arquitetônica do banheiro. Sobre esse aspecto, na dissertação de Andrade (2012), o banheiro na escola aparece tanto como um lugar de escapamento do “panóptico”, da vigilância cerrada aos corpos, lugar de “pegação”, como também de ratificação da norma, da divisão entre masculino/feminino, de situações de violência por constrangimentos verbais e agressões físicas, assim como nos estudos de Juncais e Silva (2008).

Em relação à proibição do acesso ao banheiro feminino por travestis e transexuais, o relatório Reprolatina (2011) identificou as seguintes justificativas: serem menores de idade, a família não permitir, bem como a recorrente sugestão do uso de terceiro banheiro (de servidores) ou do masculino.

Diante dos impasses para a permanência de travestis nas escolas, em seu artigo “Banheiros, Travestis e Relações de Gênero e Diferença no Cotidiano da Escola,” Elizabeth Cruz (2011) problematiza a escola em relação aos entraves e às violências institucionais cotidianas geradas, quanto ao uso do banheiro por travestis. Assim, verifica que em geral a solução apaziguadora que a escola adota é disponibilizar o banheiro de professores e funcionários, algumas das interlocutoras de seu trabalho chegaram a sugerir que usassem o banheiro em casa, sem com isso refletir sobre “O que ensinamos quando a travesti não tem lugar para fazer xixi?” (CRUZ, 2011, p.77). Ora, uma das possíveis mensagens que pensamos é de que não têm um lugar e que suas necessidades mais básicas não nos importam.

Sob o viés do conceito de tecnologias do eu em Foucault, a autora considera a escola como um dos lugares onde a produção de subjetividades costuma acontecer, tomando forma, e provoca, afinal: “Seria a escola dona do banheiro, dona dos corpos e dona das identidades? O sujeito é posse da escola? Quais sujeitos cabem na escola?” (CRUZ, 2011, p.86). Parece que alguns corpos, identidades e sujeitos ficam à margem, tornam-se invisíveis ou anormais.

Tal no discurso de Jeane “Aí é que tá o problema, que a gente fica indecisa pra

que banheiro vai, né?” Preciado (s.d, p.1) nos convoca a enxergar nas portas dos

banheiros públicos uma constante interpelação e produção de gênero. O banheiro, sendo, portanto, uma tecnologia de gênero:

Ali onde a arquitetura parece simplesmente colocar-se a serviço das necessidades naturais mais básicas (dormir, comer, cagar, mijar...), suas portas e janelas, seus muros e aberturas, regulando o acesso e o olhar, operando silenciosamente como a mais discreta e efetiva das “tecnologias de gênero.”

A divisão dos corpos pelo critério de gênero é inscrita arquitetonicamente pelo jogo de mostrar e esconder, do público/privado que enseja as atribuições sociais masculino/feminino, ativo/passivo, respectivamente. O pênis pode ficar à mostra, com uso de mictórios, enquanto a atividade que envolve o ânus deve ser resguardada às cabines individuais, assim como a que envolve a vulva (PRECIADO, s/d)

Curioso perceber que os banheiros são comumente diferenciados em públicos e privados. Os banheiros privados são de uso doméstico e não têm invariavelmente símbolos de gênero estampados em suas portas ou legislações específicas para os regulamentarem. Enquanto os públicos são alvo de muitas recomendações, são regulados e normatizados pela esfera municipal. Existem leis específicas para banheiros públicos masculinos e femininos, banheiros familiares, que versam sobre banheiros para uso infantil e trocador de fraldas (RECIFE, 2006), leis que orientam banheiros para pessoas com deficiência. Todas elas determinando quem deve frequentar quais espaços, como deve ser a sua disposição arquitetônica, o número de instalações por estabelecimento, de cabines individuais, dentre outros meticulosos detalhes.

Recentemente, o incômodo no uso do banheiro feminino por travestis virou alvo de produção legislativa.57 O deputado estadual de São Paulo-SP, integrante da bancada evangélica, Carlos Apolinário (do Partido Democrata Cristão), e o vereador de Florianópolis-SC Deglaber Goulart (PMDB) redigiram, respectivamente, os projetos de Lei n.36/2012 e PL 15327/2013.

Essas iniciativas propõem a criação de banheiros Unissex, voltados para homossexuais, travestis e transgêneros. Elas tendem a reduzir a um único sexo todas as categorias que não cabem nas definições ortodoxas homem/mulher, calcadas nos padrões heteronormativos. Ciente dessa proposta, o nosso grupo se posicionou terminantemente contra:

[...] eu sou totalmente contra isso, porque se se luta, se briga por inclusão social, por qual motivo criar um banheiro especificado só para travesti? Pra que criar uma delegacia especializada só para travesti? Não. Eu acho que se

57 No projeto de lei de Deglaber Goulart, consta como justificativa a situação do cartunista brasileiro Laerte (que costuma se vestir com trajes considerados femininos) e a polêmica que houve em um restaurante, quando decidiu usar o banheiro feminino.

existe um banheiro feminino, do jeito que algumas travestis se sentem mulher, porque elas também não [poderiam] usar aquele ali? Não é válido o título dela na hora de votar? O governo federal, o governo municipal, o estadual, eles não acolhem bem aquela votação, que vem do título da travesti? Porque também não acolher leis que incluam elas naquele banheiro? (Xuxa)

Xuxa questiona que quando é interessante para a sociedade reconhecê-las enquanto pessoas e cidadãs que votam, em outros momentos esse mesmo critério não é utilizado. A pesquisadora suscitou a crítica da separação entre banheiros para sexo feminino e masculino, com o que o grupo concordou. Sugere ainda que as/os docentes sejam capacitadas/os para lidar melhor com essa situação:

acho que deveria existir uma capacitação entre professores, diretores, dentro da própria secretaria da gestão municipal, ou estadual, não sei como vocês, pra... como eu acabei de falar, como se fosse uma matéria de história, de matemática, pra conscientizar os professores que enquanto não chamar pelo nome social, não ter aquela inclusão social da travesti, fica complicado, sempre vai existir uma ou duas travestis marginalizadas (Xuxa).

4.3 Estratégias de sobrevivência: “em terra alheia, pisa no chão devagar”

Diante das diversas adversidades encontradas na escola, mapeamos algumas práticas que serviam como proteção, verdadeiras estratégias de sobrevivência: a tendência de se anular ou se afirmar a partir de uma aparente submissão; a amizade como elemento, tanto de proteção, como de violência; a visibilidade através de engajamento político, do “barraco”, da ameaça.

4.3.1 Tornar-se invisível, docilidade e submissão estratégica

Um dos modos de lidar com a violência na escola era se anular, abdicar de circular nos espaços públicos (nas ruas, nos corredores, no pátio, evitar aglomerações de pessoas, momentos de grande circulação), de vestir-se, conforme os padrões locais, ou seja, como uma garota, seja lá o que isso signifique!

Essa estratégia de invisibilidade, por um lado protegia, mas por outro isolava e fragilizava ainda mais, gerando sofrimento, isolamento social e perdas escolares que perpassam, tanto a aprendizagem em sala de aula, quanto a socialização com pares:

Bárbara: “Eu já chegava atrasada, chegava atrasada pra não ter que olhar para a cara do povo.”

Pesquisadora: “Pra evitar?”

Bárbara:“Para evitar aquela greação.”

Bruna: “Faço minhas as palavras de Bárbara porque eu era a última a sair e sentava lá atrás.

Evitar o contato social violento, na escola, teve como consequência máxima o abandono dos estudos. “Eu mesma deixei de estudar porque não aguentava tanto pau

no colégio. Pau e pedrada” (Bruna). Esta frase, retratando a realidade, trazida por Bruna nos choca por escancarar a violência cotidiana, comumente banalizada. Assim, indago: “E apanhava na frente de todo mundo? Dos professores?”:

Na frente de todo mundo, ele jogava pedra, eu apanhava, vinha pra casa chorando. Não queria mais ir pra o colégio e aí eu desisti do colégio, e não queria mais estudar. Porque causa, através disso, que eu já não aguentava mais, já ficava dois, três me esperando, quando eu vinha pra o colégio... era pau. Eu tinha que sair. Tinha que sair do colégio.

Além da violência física e psicológica por parte de colegas, havia o desrespeito, a indiferença por professores e até mesmo diretores, inviabilizando a permanência na escola. Essa situação reafirma muitos dos estudos sobre os motivos da evasão de travestis da escola (BENTO, 2011; PERES, 2009).

Nara, por sua vez, afirmou que durante o período escola “era boy,” ou seja, vestia-se com signos masculinos e se identificava como um rapaz. Desse modo, pôde evitar constrangimentos e violências durante seus estudos e concluir o ensino médio. Todavia, essa estratégia pode ter um preço alto, o de postergar um desejo, uma necessidade de se portar, de se vestir e de se mostrar em sua singularidade.

Uma outra maneira de inserção nas escolas era recorrer à simpatia e à solicitude. Assim, a despeito dos maus-tratos, e com a esperança de criar laços de amizade e receber proteção, Xuxa afirma que sempre tentou se enturmar:

assim com pessoas que vêm me acompanhando de outras séries, mas você sabe, ao longo dos anos vai se mudando de série vai chegando pessoas novas, então no colégio e não tem como você ter a base daquilo ali, infelizmente o contexto dali muda... mas eu tentei ser simpática, porque eu sou simpática, sou muito dada com as pessoas que Ave Maria! Tenho medo até do povo querer me levar pra casa! (risos).

O esforço de Xuxa para ser aceita nos grupos esbarrava na organização seriada na escola, que separa as/os estudantes por turmas, na qual a cada ano entravam e saíam muitas/os estudantes, o que tornava ainda mais difícil a sua tarefa de ser (re)conhecida e aceita. As suas estratégias, porém, extrapolavam a simpatia e flertavam com a subserviência:

Eu até me oferecia quando era trabalho em grupo fazer os trabalhos pra ver se as pessoas já ficavam no meu grupo e mesmo assim tinha gente que não queria... “ah, não vou não ficar no grupo desse gay, não gosto de gay não” Unxe! E tinha uns que eram bem afoitos “vou ficar no teu grupo agora tu vai fazer o trabalho sozinho, viu veado? Eu faço! Eu faço! Era já pra poder pegar amizade com o grupo...(Xuxa).

Neste caso, percebemos a submissão de Xuxa para com os colegas como um modo de aproximação, pois fazer amizade permitiria que fosse incluída, o que a faria se sentir mais protegida. Mais ainda, podemos dizer que o que se entende por resignação aqui é subvertido. Neste caso, retomamos os estudos pós-coloniais de Spivak (2010) e de Prakash (1994), que trazem essa dimensão relativa dos binômios vítima/opressor, colonizador/colonizado, na qual as vítimas e colonizados não são agentes tão passivos. A oferenda de Xuxa e sua aparente subordinação dizem de um lugar menos prestigiado, mas também demonstram uma tentativa de seduzir e de ganhar força.

Jeane também utilizou algumas estratégias de sobrevivência, mas, felizmente, foi mais bem-sucedida do que Xuxa. Ao contrário de Bruna e de Bárbara, ela era bastante sociável, chegando a assumir, muitas vezes, o papel de líder da bagunça: “eu

ficava no meio do foco da sala, então era quem puxava o assunto da sala todinha.” Mergulhava na vida escolar: almoçava junto com docentes, gestores, estudantes e vivia intensamente o cotidiano na escola: “eu vivia quase 24 horas dentro da escola, eu só

saía quando fechava o colégio, porque eu estudava de manhã e passava o dia inteiro.

4.3.2 A amizade: entre a ratificação e a resistência

O tema amizade foi recorrente nas falas de nossas interlocutoras para se referirem ao processo de exclusão e de inclusão. Xuxa e Jeane buscaram esse apoio na escola, através de amizades. Elas afirmam, porém, que tinham mais amigas quando eram gay, ou seja, ao se assumirem como travestis, as ditas amizades se diluíram. Vale

salientar que a prostituição surgiu como mais um elemento que provocava afastamento e perda de amizades.

Nesse sentido, a relação de amizade não é sempre isenta de conflitos, ela pode servir para ratificação das normas, como alertou Martha García (2005) em seu estudo etnográfico em escolas públicas do México, no qual as amizades eram ao mesmo tempo lugar de reconhecimento, de angústia e de violência.

Todavia, dentre as possíveis atividades elencadas como práticas de cuidado de si na Grécia Antiga, a amizade situa-se como lugar de apoio e de reflexão de si a partir do contato com o outro (FOUCAULT, 2011). Semelhantemente, a amizade surgiu como riqueza, apoio, que pode transpor preconceitos, prover conforto e proteção. Xuxa, apontando para Bruna e Bárbara, afirma: “hoje moro com duas amigas, tem hora que a

gente tem nossas desavenças, mas a gente é feliz!”

Antônio de Paiva pontua a amizade entre homossexuais, como uma forma de amenizar o isolamento social: “a relação amical, ao estabelecer práticas de reciprocidade no cuidado de si e do outro, permite alterar a sentença de solidão imposta aos homossexuais” (PAIVA, 2008, p. 66), articulando ao cuidado de si em Foucault (2011) que passa por práticas de reflexão, em que a amizade com o dizer franco pode servir como um catalisador de transformações, por possibilitar se colocar em xeque, olhar com outra perspectiva.

Sobre esse movimento de apoio mútuo, Alexandro Silva e Renato Barboza (2005) alertam para o risco da criação de guetos marginalizados: “Em busca de amenizar e diminuir os riscos da violência, as minorias constroem guetos que funcionam como espaço de solidariedade e de resistência. Entretanto, estes espaços se originam como paradoxalmente do controle social exercido pela maioria dominante” (SILVA; Barboza, 2005, p.40). De modo que essas pessoas ficam limitadas a um grupo restrito, isolado.

Ao falarem do aumento da violência contra travestis no município, explicavam- no através do enfraquecimento dos laços sociais e comunitários que sustentavam uma convivência mais harmoniosa: “ninguém se conhece” (sic) e numa cidade em que as pessoas são anônimas, a violência parece mais provável.

Parece que a disputa por mercado da prostituição dificulta o estabelecimento de laços de solidariedade, torna uma novata como potencialmente inimiga e concorrente, gerando agressividade verbal e física, para garantir o território e preservar o ganha-pão. Xuxa, Bárbara e Bruna não costumam permitir a chegada e permanência de novas

travestis no município do Cabo e na prostituição, usando de ameaças verbais e de violência física para tal propósito.

Esse descompasso entre a amizade, como proteção, e a impossibilidade da amizade, na situação de batalha, dividia a opinião do grupo de travestis sobre o tema, nas oficinas realizadas por Peres (2005), em Londrina/PR, relatadas no texto “Travestis brasileiras: construindo identidades cidadãs.” Desse mesmo modo, não se conformavam muitos laços de amizades e solidariedade entre as travestis do Cabo, principalmente devido às disputas por ponto de prostituição e por clientes. Diante dessa conduta,

Carla: “Quanto mais a gente se unir, mais forças a gente tem de enfrentar a sociedade e o preconceito.

Nara: “Se nós que somos travesti... se nós não formos amigas, como é que vamos conseguir chegar lá?

Quanto à identidade como estratégia de mobilização social, Scott (2005, p.19) descreve os perigos e a sedução de a pessoa ser identificada, de se enquadrar em uma categoria, mas em contrapartida considera a possibilidade do estabelecimento de laços, a partir dessa caracterização:

O elevado senso de identificação que surge da redução de um indivíduo a categoria é, ao mesmo tempo, devastador e embriagador. Como objeto de discriminação, alguém é transformado em estereótipo; como membro de um movimento de luta esse alguém encontra apoio e solidariedade.

A respeito das reivindicações por categorias identitárias, vive-se um paradoxo, pois “os termos do protesto contra a discriminação, tanto recusam, quanto aceitam as identidades de grupo sobre os quais a discriminação está baseada” (SCOTT, 2005, p.20).

Nesse sentido, Foucault (2006) propõe uma mudança na relação com identidade, saindo da “caixinha”, da regra, da mesmice, pois a mesmice nos limita e nos restringe. Nessa proposta, a identidade e amizade se articulam e adquirem um significado e uma importância ímpar: “se a identidade é apenas um jogo para favorecer relações, relações sociais, relações de prazer sexual que criem novas formas de amizade, então ela é útil” (FOUCAULT, 2006, p. 265).

Em suma, segundo ele, a amizade pode ser uma potência criativa capaz de impulsionar novas formas de relação e de existir, uma forma de resistência,

compreendendo resistência como muito mais do que a negativa ao poder, mas enquanto produção criativa.

A amizade, conforme Francisco Ortega (2000b) em “Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault,” é considerada um campo fértil para esses pensadores, por se tratar de um modo de relação ainda não mapeado, institucionalizado. Por conseguinte, adquire a possibilidade de se inventar, de criar novas lógicas e de produzir deslocamentos. Uma ilustração de amizade que ultrapassa preconceitos e regras sociais é relatada por Jeane e suas amigas da escola, coniventes com a transgressão no uso do banheiro feminino.

Retomando a antiguidade, a amizade era um relevante modo de relação. Esse tipo peculiar de relação estabelecia laços de confiança, de troca (mesmo econômica) fora dos sistemas estabelecidos de consanguinidade e de aliança inseridos no dispositivo da família. As pessoas tinham liberdade para escolher seus pares, mas com o advento da homossexualidade, essa liberdade foi cerceada, vigiada, inclusive pelas escolas (FOUCAULT, 2004; 2006).

De acordo com Ortega (1999, 2000), a amizade constrói um modo de relação, uma política distinta da usual fraternidade, fundada na ideia de igualdade (pilar da modernidade) e no dispositivo familiar. A amizade estabeleceria uma relação, uma política em que seria possível e inerente à existência do conflito, da parresia,58 por conseguinte a possibilidade de reflexão ética, de práticas de liberdade e cuidado de si (FERNANDES, 2008; ORTEGA, 1999; FOUCAULT, 2011).

Importante salientar que o trabalho em grupo estimulou a formação de laços de amizade. Muitas das participantes não se conheciam, ou se conheciam apenas superficialmente. Com a realização da pesquisa, havia encontros entre elas antes e após as oficinas, nos finais de semana em outros espaços para se divertirem, se ajudarem, para se mobilizarem politicamente. A fala de Xuxa revela o lugar da amizade associado à felicidade:

Vê como é bom ter amigos... você falou agora de influência, eu acho tão complicado esse negócio com influência [...]. Mas vê, você pode transitar no meio de todo mundo, pode brincar, que eu acho que o importante é isso, é

58

A parresia é um conceito trazido por Foucault (2011) na Grécia antiga para designar um ato de coragem, por poder dizer aquilo que estava fora do esperado, com a intenção de falar a verdade para provocar transformações. A parresia é um ato de “dizer verdadeiro” que se estabelece numa relação em