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Antes de adentrar, propriamente, nos meandros da natureza da pesquisa, se faz mister refletirmos sobre a metodologia e seus prováveis efeitos de verdade. Neste sentido, Lucía Rojas (2012, p.1, trad. nossa) nos alerta como uma ficção garantiria legitimidade, através da eliminação das incertezas dos processos de construção do conhecimento:

[...] uma metodologia é sempre uma ficção. Como uma biografia, um corpo, uma identidade. Quando penso a figura da metodologia, especialmente na academia, imagino como um algoritmo, um conjunto de regras sucessivas que têm como objetivo eliminar a dúvida em torno dos procedimentos. Ora, se a metodologia é uma construção humana, historicamente situada, artificial e forjada, nos parece evidente que ela é, possivelmente, falha. Em outras palavras, a escolha de instrumentos respaldados, cientificamente, não garante uma pesquisa eticamente viável ou que haverá a descoberta de uma resposta única, com valor de verdade absoluta.

É comum a definição da metodologia como um meio, um caminho em busca da verdade. Para Veiga-Neto (2007), essa concepção encontra-se embebida de toda uma assepsia e uma performance que lhe confere credibilidade. Nesta mesma direção, João Ferreira Neto (2008) considera que a metodologia envolve muito mais do que a mera descrição de passos, mas uma discussão com relação aos aspectos éticos e posicionamento da pesquisadora/pesquisador.

Assim, Maria Cecília Minayo (2011) explicita a pesquisa qualitativa, apresenta como característica principal proporcionar uma interrogação e reflexão dos processos que ocorrem numa dada realidade. Além do mais, Cecília Minayo e Odécio Sanches (1993) destacam que a pesquisa qualitativa favorece a compreensão das dimensões da subjetividade e do simbolismo, voltando-se mais especificamente para as relações e atividades humanas.

O objetivo da pesquisa qualitativa não seria descobrir a realidade, que estaria lá fora, constante, estável e única à espera da coleta de dados ou da investigação esclarecedora do/da pesquisador/pesquisadora. Pelo contrário, seria muito mais produzir novas perguntas e reflexões.

Consequentemente, desconsidera o número de sujeitos na pesquisa qualitativa como estatisticamente representativo, ou seja, a quantidade de interlocutores não precisa ser, matematicamente, proporcional ao universo de sujeitos investigados (MINAYO, 2011). Outra característica importante deste viés de pesquisa é que ocorre e se reconhece uma aproximação entre sujeito e objeto, bem como possibilita “[...] aprofundar a complexidade de fenômenos, fatos e processos particulares e específicos de grupos mais ou menos delimitados” (MINAYO; SANCHES, 1993, p. 247).

A nossa pesquisa se alinha com a abordagem qualitativa do tipo interventivo. A obra Pesquisa Participante de Carlos Brandão (1984), um dos primeiros livros que procura definir a pesquisa participante no Brasil e na América Latina, salienta os usos sinonímicos dos termos pesquisa-ação, pesquisa intervenção, pesquisa participativa e observação participante.

Nas raízes desse tipo de pesquisa, destacam-se dois marcos. Primeiramente, os trabalhos de Kurt Lewin (no hemisfério norte) sobre Pesquisa-Ação, que apresentaram os participantes da pesquisa como sujeitos ativos (SYSMANSKI; CURY, 2004). Em seguida, a Pesquisa Intervenção sugerida por Paulo Freire, que seria uma proposta teórico-metodológica explicitamente engajada na transformação social. Como nos fundamentamos, fortemente, nos escritos desse autor, preferimos adotar sua terminologia Pesquisa Intervenção.

Historicamente, ela é a preponderante na América Latina, sendo bastante influenciada pelos teóricos de esquerda, Karl Marx e Antonio Gramsci (BRANDÃO, 2006). Esta última vertente é aquela com que mais nos identificamos pela posição demarcadamente crítica e política das/dos pesquisadoras/pesquisadores em relação à sua realidade e pela finalidade interventiva de sua transformação.

Esse tipo de pesquisa nasceu e cresceu na América Latina nos movimentos sociais, na educação popular, muitas vezes à margem das universidades, questionando as novas configurações coloniais e de hierarquização de saberes. No Brasil, além de ter surgido aliado à educação popular, estava ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT), ao Movimento dos Sem Terra (MST) e ao movimento eclesial da Teologia da Libertação.

Assim como os estudos feministas, que têm compromisso com a transformação social, como indicam Mary Gergen (1993) e Sandra Harding (1996), a pesquisa participante problematiza as situações de opressão em direção a possibilidades de mudança, com o intuito de motivar e de instrumentalizar a comunidade para lidar com suas necessidades cotidianas com um maior repertório de atuação (BRANDÃO, 1984).

Sabemos ainda que “[...] todo pesquisar é uma intervenção, criação de sujeitos, objetos, conhecimentos, de territórios de vida” (MARASCHIN, 2004, p. 105), porém a pesquisa interventiva reconhece, especialmente, que o seu objeto é capaz de criar, de subjetivar e busca a utilização de um dos métodos que proporciona a troca entre seus envolvidos.

Nesse sentido, a pesquisa, para Julia Cammarota e Michele Fine (2008), é um processo de transformação na dimensão pessoal e social, a partir do qual se adquire um olhar mais crítico do nosso cotidiano. Em outras palavras, esse tipo de pesquisa costuma fomentar o desejo de provocar outras pessoas e pode se reverter em ações e mudanças, tanto em nós mesmos, quanto em nossas comunidades.

Além do mais, Mary Gergen e Keneth Gergen (2006) conferem à metodologia participante a possibilidade de aparecimento de múltiplas vozes, que descentram o conhecimento enquanto construção individual e igualmente propiciam a abertura para o desconhecido, o redesenhar de caminhos metodológicos e teóricos.

Enquanto Brandão (2006) a entende como um salto em relação à observação participante, pela implicação do intelectual com o locus da pesquisa, ao criar juntamente com os/as integrantes da pesquisa um ambiente favorável para trocas, havendo a relativização do papel do intelectual erudito.

Na reflexão sobre os limites e as potencialidades da metodologia participativa, Marisa Costa apesar de reconhecer as relações de poder inerentes à relação pesquisadora/pesquisador-pesquisada/pesquisado, enaltece as trocas como potencialidade de visibilidade, do transpassar de discursos e deslocamentos de poder: “a oportunidade do diálogo aberto, como virtual possibilidade de fusão de discursos e, quem sabe, de deslocamento de poder” (COSTA, 1995, p.136).

Afinal de contas “Conhecer é pôr-se em relação com uma coisa,” sentir-se determinado por ela e, em troca, determiná-la. É, portanto, em qualquer caso, uma maneira de constatar, de designar, de tornar conscientes relações (não perscrutar seres, coisas, uns ‘em si’)” (NIETSZCHE, 2010, p. 99). Dito de outra maneira, a produção de saber não pode ocorrer senão a partir de relações entre pesquisadora/pesquisador e objeto de pesquisa e de oferecer um olhar, de uma relação e por isso mesmo não pode prescindir de uma afetação.

Desta forma, Maria Tereza Freitas et al (2003) propõe o rompimento dos termos, separados hierarquicamente entre objeto de investigação e investigadora/investigador, sugerindo que os sujeitos são coparticipantes e parceiros na construção da pesquisa. Semelhante a esse posicionamento e com um viés pós-estruturalista, acrescido das preocupações com as relações de poder, nas palavras de Peters (2008, p.196), “[...] tanto a pesquisadora/pesquisador quanto a pesquisada/pesquisado são seres constituídos, efeitos do discurso e dos regimes de verdade.”

Essa relação de poder é reconhecida a tal ponto que Foucault propõe ao intelectual uma função muito mais cautelosa e modesta, na qual sem a pretensão de elaborar teorias universais, volta-se para a construção de saberes locais com responsabilidade reflexiva (FOUCAULT, 2005b).

Quanto ao processo de elaboração e escrita da dissertação, a metodologia feminista e queer contribuem, ao propor, como uma das estratégias de subversão da escrita acadêmica, evidenciar o sujeito-pesquisadora/pesquisador, através da escrita ocasional na primeira pessoa (quando importante salientar essa dimensão).

A escrita, na primeira pessoa do singular, que por vezes adotamos, faz aparecer a/o pesquisadora/pesquisador em sua materialidade, como um elemento constitutivo desse olhar. Esta perspectiva encontra-se ancorada em Mary Gergen (1993), cuja concepção de pesquisa feminista deve ter consonância teórica e metodológica, ou seja, a visibilidade do/da pesquisador/pesquisadora é um posicionamento ético-político de desconstrução da neutralidade científica.

O intuito é evidenciar e desmistificar um narrador pretensamente imparcial. Esse tipo de escrita rompe com o distanciamento emocional, com a noção positivista de neutralidade e mitiga/borra os limites entre pesquisadora/pesquisador e pesquisa (SAMUEL-LAJEUNESSE, 2007). Além do mais, permite subverter a escrita formal, favorecendo o uso de uma estética e da linguagem literária, a qual evidencia toda a escrita científica como fictícia (AZEREDO, 2010).

Somando a essa apreciação, tomamos o caminho de uma escrita mais despida de floreios, menos austera e formal do que a literatura científica normal. Afinal, a pesquisa participante faz uma tentativa de aproximar a pesquisa da vida das pessoas, usando uma linguagem intencionalmente mais acessível, que se contrapõe aos conteúdos inacessíveis e termos complexos restritos aos estudiosos (BRANDÃO, 1984).

Quanto ao nosso esforço em articular teoria e prática, nos aproximamos da concepção de Rosi Braidotti (1997, p.131) sobre a teoria feminista, que afirma ser “um modo de relacionar o pensamento com a vida.” Assim, o pessoal e o pensamento são eminentemente políticos.

Além disso, avançando nessa discussão, a visão latino-americana desenhada por Paola Ríos (2011, p.113, trad. nossa) acredita que tudo é político: “Se as feministas norte-americanas e europeias dos anos sessenta e oitenta ‘revelaram’ que o pessoal é político, os e as intelectuais de (LGBT) latino-americanos/as acentuam uma relação inversa: o político permeia tudo, determina tudo, limita tudo.”

Desta maneira, compreendemos que os relatos das vidas das coparticipantes são atravessados pelas dimensões histórica, política e social. Em consonância com o pensamento de Harding (1993) de que a vida social poderia ser um dos objetos de estudo dentro do feminismo, sem com isso pretendermos domesticar o campo feminista, ao propor um só objeto ou apenas uma metodologia possível.

Ao contrário, outro modo de transgredir as regras de uma escrita científica formal que favorece um status de verdade seria o uso instrumental de variadas técnicas e conceitos de autores de diferentes lugares epistemológicos, conforme a proposta de uma metodologia queer, uma metodologia transgressora (LEÓN, 2012).

A partir de todas essas perspectivas expostas, será alicerçada a relação entre a pesquisadora e as participantes, bem como delimitados os instrumentos metodológicos.