• Nenhum resultado encontrado

O nosso encontro com as políticas de gênero e de sexualidade na escola, com as atividades no campo e com as análises das falas das travestis foi atravessado pelas contribuições teóricas, principalmente de Michel Foucault (1995; 2004; 2005; 2005b; 2006; 2008b; 2008c; 2008d; 2012). Entretanto, compreendendo a complexidade da obra deste autor, nos propomos, modestamente, a realizar uma análise do discurso de inspiração foucaultiana, observando as regularidades discursivas, descontinuidades e rupturas.

Com a intenção de historicizar os fatos, e analisar a influência das estruturas econômicas das instituições na formação do sujeito individual, Foucault (2012) voltou- se para os discursos. Nesta perspectiva, o discurso é entendido, não no sentido linguístico, mas na relação entre conteúdo e contexto (SILVA, 2011). Diferentemente da linguagem com sua estrutura gramatical de sujeito e predicado, de orações, o discurso seria formado por um conjunto de enunciados, que emergem a partir de um contexto histórico singular de relações de poder, em meio a instituições e disposições arquitetônicas:

pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico – fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de

seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo (FOUCAULT, 2008, p. 133).

Em sua proposta metodológica da analítica do discurso, o autor não procura o que está “por trás” do discurso, a intencionalidade do interlocutor ou os seus aspectos inconscientes (FOUCAULT, 2008b). Pelo contrário, busca compreender o discurso, a partir da sua exterioridade, na materialidade de sua enunciação, ou seja, da sua aparição escrita ou verbal.

Sendo assim, os discursos são observados quanto ao contexto da enunciação e sua regularidade – em que emergem, como se repete, as transformações atreladas aos aspectos históricos e econômicos, os entrelaçamentos e distanciamentos entre os diferentes discursos, contemplando também a formação em torno de silêncios (FOUCAULT, 2012).

Vale lembrar, conforme o autor, que a impressão de uma unidade do discurso é um dos possíveis efeitos dos jogos de poder. Segundo Foucault (2008b), os enunciados são elementos dentro do discurso que possuem um sentido em comum, que analiticamente convergem, formando o discurso.

Ele é diferente de orações ou de proposições linguísticas, de tal forma que uma mesma frase pode assumir enunciados distintos, a depender do lugar da sua enunciação (FOUCAULT, 2008b). O enunciado, porém, estaria sujeito à repetição, deslocamentos, transformações não ligadas somente ao momento de sua enunciação, mas a outros enunciados, ele seria dotado de materialidade:

um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação; finalmente, porque está ligado não apenas a situações que o provocam, e a consequências por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o precedem e o seguem (FOUCAULT, 2008b, p.31-32) Os enunciados se entrelaçam formando discursos, de modo que: “[...] os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram e se cruzam” (FOUCAULT, 2012, p.50).

Parte-se do pressuposto de que nas sociedades os discursos não se dão aleatoriamente, eles são organizados, barrados, estimulados e silenciados: “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo, em nenhuma circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar qualquer coisa” (FOUCAULT, 2012, p.9).

Além de possuir uma dimensão regulatória, outra maneira de organização do discurso é a separação entre verdadeiro/falso, adquirindo legitimidade e status de verdade:

Assim, só aparece em nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa verdade e recolocá-la em questão” (FOUCAULT, 2012, p.19- 20).

Os discursos de verdade são sempre contingenciais, possivelmente arbitrários, sustentados por todo um sistema institucional “que não se exercem sem pressão, nem sem ao menos uma parte de violência” (FOUCAULT, 2012, p.13), isto é, em relações de poder.

Os jogos de poder e os dispositivos costumam produzir discursos com efeitos de verdade (FOUCAULT, 2005b). Dentro desse contexto, segundo ele, os dispositivos demarcam, organizam e articulam os discursos, com uma função estratégica dominante, em resposta a uma urgência histórica. Estimulam a produção deles, formando uma rede em torno de si, uma espécie de novelo discursivo, que confere sentido a elementos heterogêneos, tais como: disposições arquitetônicas, enunciados, leis e não ditos.

Funcionam como efeito de jogos de poder, ao mesmo tempo em que atuam como produtores do discurso. De tal forma que, para Deleuze (1990, p.155), são verdadeiras “máquinas de fazer ver e de fazer falar.” De sorte que os dispositivos acabam por produzir subjetividades fragmentadas e variados modos de existir (AGAMBEN, 2005), ou como Foucault (1999) prefere dizer, modos de subjetivação.

Outros princípios de formação discursiva são os de autor e de comentário. Eles deslocam o sujeito como centro do feixe de discursos e de enunciações e o reposicionam como um dos efeitos dos jogos de poder, de maneira que os sujeitos são atravessados pelos discursos e por ele produzidos (FOUCAULT, 2008b).

Essas noções desconstituem a disseminada ideia de autor como criador para um dos efeitos das relações de poder, que proporcionam uma dimensão de unidade aos emaranhados discursivos. O comentário funcionaria como um modo de repetição de enunciados e ao mesmo tempo de rarefação deles, rarefação essa que produz transformações.

Para melhor compreender os deslocamentos possivelmente produzidos pelo comentário e pela rarefação, recorremos a Deleuze (1988) em sua obra “Diferença e repetição”, que refere que toda a afirmação é, em sua essência, uma diferença. Por isso, ao se realizar uma afirmação necessariamente alguma coisa é repetida, mas algo se dispersa, escapa, se acrescenta ou se reinventa.

Com base em Foucault, Juliana Peirucchi (2008, p.132) define que o princípio do autor organiza uma unidade e o do comentário oferece credibilidade ao que fala como articulador de uma noção de individualidade, a partir de jogos de identidade:

O princípio do autor limita o acaso do discurso por meio do jogo de uma identidade que tem forma da individualidade e do eu. Já o comentário limita esse mesmo acaso com o jogo de uma identidade que tem a forma da repetição e dele. Enquanto o primeiro funciona como princípio agregador que dá unidade, coerência e credibilidade às significações, o segundo tem a função de dizer o que já estava articulado no texto.

A identidade e o sujeito em Foucault seriam efeitos que se dariam a partir de jogos de poder, da formação de feixes discursivos que produziriam uma ideia de unidade. Foucault (2012) acredita que um jogo de identidades se dá com a repetição e a afirmação dele, sem o qual não existiria um sujeito da razão, unitário, o que o faz preferir falar em modos de subjetivação (FOUCAULT, 1995; SOUZA et al, 2007). Essa perspectiva rompe com a separação interno/externo, sujeito/mundo a que estamos habituadas.

Ao se ater às rupturas, a descontinuidade dos discursos coloca em evidência o sujeito fragmentado, cindido e o instante, como momento historicamente construído, produzindo rasgos:

[...] cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e de funções possíveis. Tal descontinuidade golpeia e invalida as menores unidades tradicionalmente reconhecidas ou as mais facilmente contestadas: o instante e o sujeito (FOUCAULT, 2012, p.54).

Concluímos, portanto, que os discursos não são uma expressão singular do sujeito ou mesmo sinônimo de linguagem, mas são compreendidos como “[...] uma rede conceitual que lhe é própria” (FISHER, 2001, p.200). Vale salientar que o texto dessa dissertação também é permeado por discursos. Por conseguinte, é subordinado a regras de formação discursiva. Como tal, é situado em um dado contexto histórico e econômico, produz unidades do discurso, reafirma o princípio do autor e realiza comentários, sendo perpassado por zonas de silêncio. Esses discursos são formados através de relações de poder, mas em sua tessitura procuram produzir rarefações, deslocamentos.

No tocante à analítica do discurso, esse novo modo de pensar os sujeitos é tão distante do que estamos treinadas, que a sua utilização no trabalho em grupo provocou- me inquietações. Afinal, não se tratava tão somente de uma análise documental, de papéis frios a serem destrinchados, mas da análise de uma construção grupal, de sujeitos constituídos por discursos, mas também sujeitos que em seus atravessamentos provocam deslocamentos e transformações discursivas, numa relação em que as próprias pesquisadoras encontram-se imbricadas e afetadas.

A proposta do trabalho em grupo afina-se à proposta de uma analítica do poder, formulada em uma fase posterior da obra de Foucault, que sugere compreendermos: “como as coisas acontecem no momento mesmo, no nível, na altura do procedimento de sujeição, ou nesses processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem gestos, regem comportamentos” (FOUCAULT, 2005, p.33).

Ao mesmo tempo em que mantém certa ligação com a noção corriqueira de poder: “o poder é um conjunto de mecanismos e de procedimentos que têm como papel ou função e tema manter – mesmo que não o consigam – justamente o poder” (FOUCAULT, 2008d, p.4).

A noção de poder empreendida não seria apenas de um poder proibitivo, mas de um poder em sua positividade (produtividade) (FOUCAULT, 2005b), pois “os mecanismos de poder são parte intrínseca de todas essas relações, são circularmente o efeito e a causa delas” (FOUCAULT, 2008d, p.4). O autor pretende analisar o poder a partir de seus efeitos, em sua capilaridade, como os procedimentos investidos por fenômenos globais em suas extremidades vão ser deslocados, modificados e como se articulam com os jogos de poder (MACHADO, 1988).

Claramente, o poder não pode emanar apenas de si (FOUCAULT, 2008d; BUTLER, 1992). Baseando-se em Foucault, Butler (2004, p.20) concebe o poder da

seguinte maneira: “O poder não é estável nem estático, senão que é reconstruído em diversas conjunturas dentro da vida cotidiana; constitui nosso tênue sentido comum e está comodamente instalado no lugar das epistemes prevalecentes de uma cultura.” Ou seja, para a intelectual, as relações de poder são mutantes, e oferecem sentido e inteligibilidade, dizem como compreendemos o mundo.

Diferentemente da concepção de poder comumente difundida, Foucault (1995, p.242) considera o poder como relacional. Compreendendo-o como relacional e em trânsito, o poder não é algo a ser possuído por alguém, ele é analisado em sua operação, o qual se exerce nas relações e através do discurso: “só há poder exercido por ‘uns’ sobre os ‘outros’; não pressupõe sujeitos metafísicos. O poder existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade esparso que se apóia sobre estruturas permanentes.”

Ademais, não possui somente uma dimensão repressiva, em sua negatividade, o poder coíbe, barra, invalida, porém em outro polo, em sua positividade, estimula, produz, causa efeitos e resistências (FOUCAULT, 2005b). Apesar de considerar a existência da dominação, em que através da violência, da força, as possibilidades de resistência são praticamente anuladas, o autor volta-se para o estudo dos jogos de poder, em que é possível encontrar estratégias de resistência (FOUCAULT, 2006). A resistência estaria inserida em uma lógica de luta, em que o poder se exerce e inspira contrapoder (FOUCAULT, 2005).

O construto de governamentalidade permitiu ao autor conciliar as noções de resistência, de correlação de forças com a constituição de formas de subjetividades situadas (ORTEGA, 1999). Em dado momento, Foucault (2005b; 2008c) se interessou a respeito da arte de governar em suas variadas nuances, o governo de si, da casa, da família, a relação entre governo e Estado, as diferentes noções que orientam essa governamentalidade. Em suma, a governamentalidade em Foucault possui basicamente dois eixos: governo de si e governo dos outros. Ambos são desmembramentos de atos de governo que se articulam aos elementos de poder, ética e constituem formas de subjetividades (FOUCAULT, 2011).

Para Foucault (2008c), dentro do projeto moderno pautado na Razão e no Estado, o Liberalismo (constitutivo da modernidade) surge como um refinamento da arte de governar, ao constatar que governar demais é antieconômico e, por conseguinte, irracional. Assim, o liberalismo ocupa-se do governo da sociedade e propõe um modo de governar mais sutil, menos interventivo, porém não menos eficaz.

Buscou tipificar e contextualizar algumas formas de poder. Com isso, traçou a passagem e convívio do poder soberano, centrado na lei, com sistemas de punição e expiação do corpo em nome do rei (que demandava rituais de jurisdição e de condenação) para o poder disciplinar, caracterizado pela vigilância e exame contínuo dos corpos, inibindo comportamentos indesejados, controlando-os (FOUCAULT, 2004).

Essa transição não ocorreu sem sentido ou com o desaparecimento completo do poder soberano, haja vista que Foucault (2005) considera o poder disciplinar um dos principais instrumentos de implantação do capitalismo industrial. Para Foucault (2004), o exercício de poder, na sociedade moderna, a partir do século XIX, ocorre entre o direito de soberania e a mecânica da disciplina.

O primeiro fundamenta e reafirma a existência do Estado, através de práticas de coerção e punição dos corpos. Esse poder emana do “rei” e funciona através de mecanismos jurídicos, legislando, estabelecendo interdições (FOUCAULT 2004; 2005). O segundo, conforme o autor, estabelece mecanismos de coerção que garantem a manutenção do corpo social.

Sabemos que o poder disciplinar começou a ser exercido a partir do século XVIII na Europa, quando “se tentou um ajuste cada vez mais controlado – cada vez mais racional e econômico – entre as atividades produtivas, as redes de comunicação e o jogo das relações de poder” (FOUCAULT, 1995, p.242). Especificamente, este tipo de poder focaliza e produz indivíduos, não como um processo externo e independente, mas ao mesmo tempo em que atua, os constitui (MACHADO, 1988).

As disciplinas vão fazer emergir o discurso da regra natural, da normalidade (FOUCAULT, 2005). Concomitante a essa configuração de poder, a partir do século XVIII a biologia tornou-se um fato fundamental para a compreensão, inteligibilidade do ser humano. O biopoder, portanto, pode ser determinado por um conjunto de estratégias de poder aliadas ao discurso biológico e ao poder disciplinar (FOUCAULT, 2008d).

Por um lado, esse poder é ligado à vida, no sentido de controlar, estender e, por outro lado, ligado à morte, por ser capaz de deixar morrer algumas vidas menos desejáveis, elemento que remete ao poder soberano de decisão dos corpos e o poder de fazer morrer, característico do mesmo (FOUCAULT, 2005).

Como Preciado (1996) sintetizou, o biopoder seria compreendido como um total de práticas governamentais que investem na gestão da vida – com sua manutenção e seu melhoramento, incluindo questões eugênicas. Consequentemente, dentre um dos efeitos

dessas configurações de poder, Vera Portocarrero (2004) destaca o controle das vidas, a criação e o controle de suas anormalidades.

Nessa mesma direção, Izabel Passos (2008, p.15) destaca no biopoder um paradoxo, pois seria tanto o fortalecimento de uma potência mortífera, como um modo do governo que incide sobre os corpos e em sua dimensão produtiva é “uma potência de resistência e de experimentação de novos modos de vida.”

Fica evidente, para Fernando Danner; Nythamar Oliveira (s.d.) e Vera Portocarrero (2004), o entrelaçamento entre a biopolítica, o regime disciplinar e os Estados liberais com seu modo de produção capitalista, que demanda a docilidade e a longevidade dos corpos – delineando uma governamentalidade.

Somando-se ao biopoder, o poder pastoral seria um fruto da coesão entre o poder soberano e o disciplinar, inaugurando outra conformação de poder. Por um lado, o pastor é responsável pelo cuidado de seu rebanho (remetendo ao poder soberano); por outro, a definição do que seria cuidado estaria calcada no biopoder (FOUCAULT, 2008d). Destarte, o poder pastoral se configurou junto com o Estado moderno de mãos dadas ao biopoder, criando a necessidade e estratégias de governar a todos, individualmente, garantindo-lhes o bem-estar, a segurança, a saúde (FOUCAULT, 2005).

2 A PRODUÇÃO DE DISCURSOS ACERCA DA EXPERIÊNCIA TRAVESTI

A existência deste capítulo se deve ao fato de reconhecermos as encrencas geradas pela naturalização da categoria travesti. Neste sentido, não tomamos tal concepção como um pressuposto inquestionável, universal, a-histórico e a-político. Ao contrário, abordaremos a noção de travesti, situando-a historicamente, apontando para o seu caráter contingencial e situacional. Para isso, é fundamental compreender e situar como se organizam os discursos científicos acerca das travestis.