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A competência para criar in abstracto o ICMS

No documento Incentivos Fiscais (páginas 50-56)

Vê-se, pois, que além de toda a estrutura normativa que se delineia a partir do texto constitucional, estabeleceu-se uma forma para que, em determinadas hipóteses, as pessoas políticas detentoras da competência tributária para instituir o ICMS e promover alterações na legislação, possam, por meio do veículo normativo Convênio ICMS, deliberar sobre a possibilidade, ou não de se promover alterações em suas legislações internas.

É de se destacar, no estrito limite do presente tópico que eventual problemática relacionada a tais instrumentos normativos fica reservada ao capítulo 4 em que se analisará a figura normativa dos Convênios ICMS em suas relações sintáticas, seu espectro semântico e como se dá no âmbito da aplicação, o viés pragmático.

Nesse ponto é importante rememorar uma das possíveis classificações das competências exploradas por Tácio Lacerda Gama92 ao se referir a Troben Spaak e Ulises Schmill ao indagar sobre se a competência poderia se resumir em um dever ou uma permissão.

Em suma, estabelece o autor que as competências podem se dar de forma condicionadas, em que o seu exercício é obrigatório ante sua natureza vinculada e traz como exemplo, a lavratura de um auto de infração; a prolação de uma sentença. De outra ponta, a competência incondicionada haveria de permitir o agente a exercê-la ou não, traz como exemplo, em regra, as normas gerais e abstratas.

Refletindo sobre este tema, Troben Spaak sustenta que “a competência pode ser reduzida a uma obrigação ou permissão”. A mesma relação jurídica, conforme o ponto de vista, poderá ser tida ora como obrigação, ora como permissão. Aquilo que é dever para o agente competente é direito dos demais sujeitos passivos; inversamente, o que for dever dos sujeitos passivos é direito dos sujeitos competentes. É como o verso e o anverso da mesma moeda.

[...]

Como separar então as competência modalizadas em obrigatório daquelas que são simples faculdades? A resposta é dada por Ulises Schmill, que afirma serem de exercício facultativo as competências não condicionadas e de exercício obrigatório as competência cujo exercício está sujeito ao preenchimento de certas condições. 93.

O exercício da competência tributária do ICMS no que toca a edição de normas que veiculem incentivos fiscais releva características e contornos específicos à medida que a própria Constituição Federal lhes condiciona a prévia deliberação entre as demais unidades federadas.

Já se anotou que essa exigência decorre da exigência de se conferir uniformidade ao tributo em questão em ostensiva realização do princípio federativo. O que permite a conclusão de que a Constituição Federal atribui uma vedação à instituição de incentivos fiscais sem a prévia edição de Convênios Interestaduais de Incentivos Fiscais de ICMS.

92 GAMA, Tácio Lacerda. Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. São Paulo:

Noeses, 2009, p. 90-92.

93 CARVALHO, Paulo de Barros. Substituição tributária no ICMS. Interpretação conforme a Lei Complementar nº 87/1996 e o Convênio ICMS nº 45/1999. In: CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e positivação. São Paulo: Noeses, 2016, p. 160.

4 A FUNÇÃO DOS CONVÊNIOS EM MATÉRIA DE INCENTIVOS DO ICMS

Quando da edição da Constituição Federal duas eram as funções constitucionais dos convênios, a primeira de estabelecer normas gerais do ICMS até que exercida a competência, pelo Congresso Nacional para editar lei complementar prevista no art. 155, XII. Destaque-se que, após a promulgação da Carta Política de 1988, referida lei complementar não foi editada, o que ensejou a aplicação do art. 34, § 8º do ADCT ao disciplinar que caso não fosse editada aludida lei no prazo de 60 (sessenta) dias, os Estados mediante convênio, celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24/1975, disporiam sobre as normas gerais do imposto, o que deu ensejo ao Convênio ICMS 66/1988. Note-se que a transitoriedade dessa função dos convênios é exaurida com a edição da Lei Complementar nº 87/96.

A segunda função é de estabelecer normas, em deliberação conjunta dos Estados e Distrito Federal, para diminuir conflitos e evitar a guerra entre as unidades federadas, convergindo para a manutenção de um espírito cooperativo do pacto federativo. Nesse propósito, a Constituição foi incisiva ao delimitar especificamente, nos art. 155, § 2º, VI94; XII,

“g”95; § 4º, IV96 e § 5º97, as matérias a serem ventiladas por meio de convênio.

Visando conferir uniformidade ao imposto, em vinculação direta com o conteúdo do art. 155, § 2º, IV que atribui ao Senado Federal fixar as alíquotas para as operações interestaduais, a Constituição delimita, no inciso VI do § 2º, que as alíquotas internas não poderão ser inferiores às alíquotas previstas para as operações interestaduais, exceto se, por deliberação dos Estados por convênio, houver disposição em contrário.

Em acréscimo pelo poder constituinte derivado reformador por meio da Emenda Constitucional nº 33/2001, acrescentou-se a função dos convênios prevista no § 4º, IV, que prevê a deliberação dos Estados e do Distrito Federal, nos casos de incidência monofásica sobre combustíveis e lubrificantes, na fixação das alíquotas a serem definidas por meio de convênio.

94 Art. 155, § 2º VI - salvo deliberação em contrário dos Estados e do Distrito Federal, nos termos do disposto no inciso XII, "g", as alíquotas internas, nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, não poderão ser inferiores às previstas para as operações interestaduais;

95 Art. 155, § 2º, XII, g - regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

96 IV - as alíquotas do imposto serão definidas mediante deliberação dos Estados e Distrito Federal, nos termos do

§ 2º, XII, g, observando-se o seguinte:

a) serão uniformes em todo o território nacional, podendo ser diferenciadas por produto;

b) poderão ser específicas, por unidade de medida adotada, ou ad valorem, incidindo sobre o valor da operação ou sobre o preço que o produto ou seu similar alcançaria em uma venda em condições de livre concorrência;

c) poderão ser reduzidas e restabelecidas, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, b.

97 § 5º As regras necessárias à aplicação do disposto no § 4º, inclusive as relativas à apuração e à destinação do imposto, serão estabelecidas mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, nos termos do § 2º, XII, “g”.

Atribuindo ainda aos convênios, nos termos do § 5º, a função de estabelecer regras relativas à apuração e destinação do imposto a fim de garantir a aplicação do aludido § 4º.

As disposições constitucionais referidas acima fazem remissão expressa ao art. 155, § 2º, XII, “g”, que determina que a deliberação pelos Estados e o Distrito Federal seja regulada por meio da Lei Complementar em matérias relativas a isenções, incentivos e benefícios fiscais.

Veja-se, portanto, que o Texto Constitucional delimitou o campo material de incidências que devem ser submetidas, previamente, à deliberação dos Estados – cuja forma deverá ser regulamentada por lei complementar. Ou seja, além das matérias previstas na supradita alínea “g”, existem outros campos materiais que devem ser objeto de deliberação prévia pelos Estados, cuja forma deve vir disposta em lei complementar.

Noutra toada, em paralelo às disposições constitucionais a respeito dos convênios, o Código Tributário Nacional, editado por meio da Lei nº 5.172/1966, também traz disposições acerca de convênios. Segundo seu art. 100 colaciona, são normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos, colocando-os ao lado dos atos normativos editados pelas autoridades administrativas98.

O Código Tributário Nacional ainda prevê, em seus artigos 10299 e 199100, que convênios estabelecidos entre os entes políticos possam ser estabelecidos com a finalidade de conferir extraterritorialidade à suas normas, incidindo fora de seus respectivos âmbitos de vigência; e, ainda, a deliberação conjunta dos entes, por meio de convênio colimando maior integração nas atividades de fiscalização.

É sabido que a doutrina aponta haver sensíveis distinções entre os convênios previstos no CTN, daquele previsto no art. 155, § 2º, XII, “g”, ao estabelecer que estes últimos, com sua estrutura disposta pela previsão da Lei Complementar nº 24/1975, possuem natureza autônoma seja no que toca seu objeto, seja em relação ao seu procedimento.

Nas lições de Leandro Paulsen apresenta-se, em uma possível classificação, em convênios de cooperação para aqueles previstos nos arts. 102 e 199 do CTN e convênios de

98 Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:

I - os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;

II - as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa;

III - as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas;

IV - os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

99 Art. 102. A legislação tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios vigora, no País, fora dos respectivos territórios, nos limites em que lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que participem, ou do que disponham esta ou outras leis de normas gerais expedidas pela União.

100 Art. 199. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio.

subordinação para os disciplinados no art. 155, § 2º, XII, “g” da Constituição de 1988, disciplinados na Lei Complementar nº 24/1975, em suas palavras melhor se infere:

Há convênios de cooperação entre os entes políticos, como os relacionados à permuta de informações e à assistência mútua para fiscalização. Estes assumem caráter de normas complementares das leis. Outros, todavia, são convênios de subordinação.

Dizem respeito a matérias reservadas constitucionalmente para deliberação entre os Estados, hipótese em que, inclusive, condicionam a validade das leis estaduais, do que é exemplo a autorização de benefícios fiscais em matéria de ICMS (art. 155, § 2º, XII, g). Nesse caso, não podem ser considerados propriamente normas complementares das leis, porquanto têm, inclusive, ascendência sobre elas.

A deliberação sobre a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais de ICMS é realizada mediante convênios entre as Fazendas de tais entes políticos, firmados no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ). Luis Eduardo Schoueri diz que estes equivalem a "tratados entre os integrantes da Federação". Esses convênios não são atos complementares, mas guardariam natureza semelhante a dos tratados internacionais.

Fabio Fanucchi, ainda na vigência da Constituição de 1969, acrescenta que a diferença entre os convênios do art. 100, daqueles disciplinados na Lei Complementar nº 24/1975 se daria em virtude destes serem dotados de “força constitutiva de direitos”, veja-se:

De outro lado, os convênios de que trata o texto são atos de igual característica que possuem os tratados e as convenções internacionais e não possuem, definitivamente, as mesmas características daqueles convênios citados no CTN, como normas complementares de legislação tributária (art. 100, n. IV). É simples demonstrar por quê: os convênios citados no CTN não têm forças constitutivas de Direito, desde que servem para complementar leis, tratados e decretos (“caput” do art. 100); enquanto os convênios ditados pela Constituição têm força constitutiva de direitos, tanto que criam isenções e as revogam, ou seja, tratam de matéria que é exclusivamente de lei. Daí ser simples sustentar que o CTN, no art. 100, não teria admitido essa pretendida força criativa de direitos para os convênios federais, estaduais ou municipais, pois se o fizesse entraria em contradição com o disposto no seu art. 97101.

Sob a ótica de Alcides Jorge Costa, igualmente sob a ordem constitucional anterior, não se tratam os convênios de ICMS de normas complementares, mas de fase peculiar do processo legislativo:

O CTN, em seu artigo 100, arrola entre as normas complementares das leis, dos tratados, das convenções internacionais e dos decretos, os convênios que entre si celebrem a União os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Como acentua Aliomar Baleeiro estes convênios são arranjos administrativos subordinados à lei.

Para nós, são normas complementares, não se confundem com os convênios de que aqui tratamos, que não complementam leis, tratados ou convenções internacionais, mas que são, eles mesmos, uma das fases do processo legislativo de concessão de isenções102.

Também foi essa a décima conclusão de artigo apresentado por Wagner Balera103 em que se consignou que “Diferem os convênios para isenção de ICM das normas complementares

101 FANUCCHI, Fábio. Convênios para isenção de ICM: inconstitucionalidades da Lei Complementar n. 24, de 1975. Revista de Direito Tributário. São Paulo, n. 01, p. 42-45, jul./set. 1977, p. 43.

102 COSTA, Alcides Jorge. O ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Ed. Resenha Tributária, 1979, p. 126.

103 BALERA, Wagner. ICM – isenções por convênios. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 21/22, jul/dez.

de 1982. p. 163-173.

previstas no art. 100, IV, do CTN”, o que foi aprovado pelos debatedores, cuja mesa era composta, dentre outros, por Geraldo Ataliba e Hamilton Dias de Souza, por maioria104, relatados os debates por Alexandre da Cunha Ribeiro Filho.

O mesmo paralelo traçado por Fábio Fanucchi ao estabelecer a relação com tratados internacionais foi feito por Luis Eduardo Schoueri105 endossado nas palavras de Ivan Ozawa Ozai que reforça a ideia da força normativa dos convênios da Lei Complementar nº 24/1975:

O convênio previsto no CTN como legislação “complementar” à tributária (veículos normativos infralegais) figura entre os instrumentos secundários e se prestam à troca de informações fiscais para prática de política tributária comum.

Já o convênio previsto na Lei Complementar nº 24/1975 é ato do plano do direito interno de natureza jurídica semelhante ao tratado no plano internacional. Tem natureza constitutiva e estabelece direitos e deveres entre as pessoas políticas que o celebram106.

Também anotam a distinção José Eduardo Soares de Melo107 e Roque Antônio Carrazza:

Em nosso ordenamento jurídico existem duas previsões para edição de convênios em matéria tributária. A primeira, genérica, contida no art. 199 do CTN; a outra específica para o ICMS, capitulada no art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF e explicitada na Lei Complementar 24/1975.

Só para registro, o art. 199 do CTN dispõe: “Art. 199. A Fazenda Pública da União e a dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral específico, por lei ou convênio".

A simples leitura deste artigo revela, a olhos vistos, que os convênios ali previstos visam, pura e simplesmente, à troca de informações entre as Fazendas Públicas, com o fito de facilitar os trabalhos conducentes à identificação da ocorrência de fatos imponíveis, de ilícitos tributários e de outros eventos relacionados ao perfeito funcionamento do sistema arrecadatório.

Tais convênios endereçam-se exclusivamente às Fazendas Públicas das várias pessoas políticas. Absolutamente não se prestam à imposição de obrigações acessórias aos contribuintes; tampouco à extensão de deveres instituídos numa esfera de tributação (v.g., aos contribuintes da União) a outra ou outras esferas (v.g., aos contribuintes dos Estados).

A proibição em tela deriva do próprio princípio federativo, que não admite que uma pessoa política comande o agir arrecadatório ou fiscalizatório de outra, ou dê ordens para serem cumpridas por contribuintes de exações de competência alheia108.

Permite-se, portanto, uma conclusão parcial no sentido de se estabelecer que a interpretação a ser conferida para as figuras dos convênios em matéria de incentivos fiscais no ICMS não pode perder de vista o evento da instauração na nova ordem constitucional, analisando-se de forma sistemática suas disposições constitucionais a fim de delimitar o poder

104 Ibidem, p. 181.

105 “Convênios são fonte de Direito Tributário. São – permita-se a metáfora na liberdade didática – tratados entre os integrantes da Federação”. SCHOUERI, Luiz Eduardo. Direito tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 122.

106 OZAI, Ivan Ozawa. Benefícios fiscais do ICMS. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 153.

107 MELO, José Eduardo Soares. Curso de direito tributário. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2007, pp. 189-190. No mesmo sentido ver AMARO, Luciano; TORRES, Ricardo Lobo.

108 CARRAZZA, Roque Antônio. ICMS. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 422.

e alcance dos sobreditos atos normativos enquanto veículos introdutores de normas.

Nesse ponto, calha anotar a sensível diferença entre os convênios editados nos interesses da administração pública a fim de melhor conferir eficiência às atividades de fiscalização109, em contraponto com os convênios objetos do presente estudo cuja estatura constitucional já os diferencia dos primeiros, inicialmente sob aspecto formal, o que é reafirmado pela relevância das matérias que lhes são reservadas, e, em grau máximo, a finalidade para o qual são erigidos no sentido de conferir maior uniformidade ao ICMS, em realização clara do princípio federativo.

No documento Incentivos Fiscais (páginas 50-56)