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2. Contexto dos territórios da Chapada Diamantina e Morro do Chapéu

2.2 Funções espaciais da Chapada Diamantina a partir do século XX

2.2.1 A construção enquanto função estratégica em Morro do Chapéu

A atividade da construção civil em geral é fundamental para realizarmos a descrição dos pro- cessos econômicos, políticos e sociais de formação do território posterior ao declínio da atividade garimpeira. Para isso, damos destaque ao caso do município de Morro do Chapéu. Consideramos como a intensificação das infraestruturas na região também determinou a economia. A estruturação das redes de transmissão de energia elétrica em Morro do Chapéu e a expansão mais recente da rede em diversas localidades da área rural do município são um dos elementos importantes para a forma- ção territorial e a evolução do mundo do trabalho. Além deste, outros elementos foram considera- dos, a exemplo da expansão das estruturas rodoviárias, das estruturas para a transmissão de infor-

mações, abastecimento de água, oferta de ensino, acesso aos estabelecimentos da saúde, entre ou- tros.

Alguns destes elementos afetam diretamente a evolução das práticas e usos dos saberes tradi- cionais empregados nas atividades econômicas compreendidas aqui como parte do patrimônio ima- terial do território. Se atentando às relações menos evidentes da construção, por exemplo, é impor- tante considerar que a chegada da energia elétrica possibilitou a instalação de maquinário necessário para o beneficiamento de peças de madeira destinadas para a construção civil, promovendo altera- ções nas atividades de marceneiros e também de mestres de obras. As olarias industriais também passaram a participar efetivamente nos mercados locais, especialmente com a melhoria das estradas. Conforme visto, um dos atores protagonistas da evolução das infraestruturas neste período é o Estado. Por isso, é importante considerar o papel desempenhado pelo poder público para a forma- ção territorial, em especial, do município de Morro do Chapéu. A maior parte dos núcleos populaci- onais passou a se desenvolver no município, em especial durante o século XX em Morro do Cha- péu. São todos povoados da zona rural, espaço no qual habitam aproximadamente 60% da popula- ção do município, o segundo município mais populosos de toda a Chapada Diamantina, com cerca de 35 mil habitantes.

Realizando o exercício de explicitar as formas geográficas do território do município se evi- dencia a diferença entre os espaços urbanos da sede do município e das sedes dos distritos, as comu- nidades rurais e das “roças”, todos interligados pelos caminhos terrestres. A análise realizada propõe considerar, principalmente, os territórios de algumas localidades específicas de Morro do Chapéu, além da sede do município. Tratam-se das comunidades nas quais a equipe do INRC-CD identificou grupos significativos de mestres artífices que realizam ofícios artesanais que utilizam o barro para construir.

Tratam-se das comunidades da Veredinha, Ventura, Duas Barras, Fedegosos, Dias Coelho, Ribeiro, Lagoa Nova e Barra I. Nos dedicaremos neste primeiro momento aos povoados de Fedego- sos e Ribeiro, nos quais a atividade de olaria é historicamente desenvolvida e segue ativa, ainda que sob forte risco de extinção, contribuindo para a edificação de novas construções e gerando renda para mestres e trabalhadores.

Fedegosos pode ser considerada uma das comunidades que possui algumas das terras mais valorizadas do município e que possui o conjunto de infraestruturas mais complexas entre os distritos de Morro do Chapéu. Escolas, casa de farinha, fábrica de blocos de cerâmica utilizados na construção civil, feira dominical regular – realizada no dia seguinte ao último dia de feira da sede. Parte da situação econômica e social pode ser explicada por conta do clima na localidade, caracterizado enquanto tropical subúmido (ROCHA; COSTA, 1995a), diferentemente do restante

do território do município, que possui climas mais secos. Abastecido pela bacia do rio Jacuípe, o clima tropical subúmido é considerado favorável entre os demais que incidem sobre o território de Morro do Chapéu pelo volume favorável de chuvas. Isso promove a diversificação da agricultura, além de contribuir com a criação de gado e melhora da produtividade.

O questionário de identificação dos ofícios e modos de fazer, que integra o conjunto de documentos do INRC da construção tradicional na Chapada Diamantina, realizado para identificar os trabalhadores e a olaria de Morro do Chapéu, descreve como se dá o acesso ao povoado de Fedegosos.

Partindo da sede do município é feito através da BA 052, Rodovia do Feijão, sentido Salvador, por 25km. (...) Para chegar a Fedegosos é preciso acessar a BA 422, sentido norte, por mais 28km de estrada de terra, que cruza a paisagem rural. Já próximo ao povoado de Fedegosos, nota-se uma fábrica de tijolos de alvenaria (IPHAN, 2016a, p. 2).

É provável que a formação de Fedegosos esteja associada de modo direto aos fluxos relacio- nados ao garimpo, dada a proximidade com a vila do Ventura, mas também à microrregião de Jaco- bina. As fazendas que existiam no entorno da comunidade passaram por um processo de adensa- mento demográfico a partir da intensificação da mineração em toda a região. Os assentamentos se transformaram em vilas, novas fazendas e localidades surgiram e se expandiram em sucessões de acontecimentos até a atualidade. O processo evolui até a emancipação dos distritos mais desenvolvi- dos ao nível de municípios com sede própria, como é o caso da vizinha Miguel Calmon, distante pouco mais de 40 quilômetros, e desmembrada de Jacobina.

A comunidade do Ribeiro de Morro do Chapéu também se localiza na mesma microrregião de Fedegosos. De acordo com o tópico de descrição etnográfica do contexto da entrevista realizada com o oleiro Calixto de Almeida Ramos, disponível no questionário de identificação do INRC ana- lisado (IPHAN, 2016b), o acesso ao povoado do Ribeiro a partir de Morro do Chapéu se dá pela BA 52, rodovia do Feijão, principal via de acesso à sede do município. Percorridos 42 quilômetros da rodovia asfaltada é necessário transitar por mais 30 quilômetros por estrada de terra passando pela comunidade que leva o nome do coronel mais notório de Morro do Chapéu, Dias Coelho, antigo proprietário da fazenda na qual se localiza o povoado.

A sede do município de Miguel Calmon está localizada mais próxima da comunidade do Ri- beiro do que a sede do município do qual a comunidade faz parte. Assim, serviços costumeiros, a exemplo daqueles prestados pelos setores da saúde, bancário, educação e comércio em geral, reali- zados pelos habitantes da comunidade são feitos na sede do município vizinho, distante 24 quilôme- tros. Entre as formas geográficas evidenciadas no caminho até Dias Coelho e o Ribeiro estão as es- carpas da Serra do Tombador e o rio Jacuípe que corre junto da estrada e possibilita a observação da

agricultura realizada nos baixios. Entre as culturas agrícolas cultivadas na área estão a carnaúba, o feijão, a mamona, entre outras.

Durante o trajeto são visualizadas dezenas de povoados e fazendas. Pode-se observar que a vida na referida zona rural conserva antigos hábitos, como casas de taipa cobertas com pa- lha e quintais floridos, com pequenas roças de mamona e árvores frutíferas diversificadas. A paisagem que remete a um modo de vida “do passado” também indica os traços da mo - dernização, como grandes fazendas com maquinário agrícola, cisternas plásticas e antenas parabólicas nos telhados das casas (IPHAN, 2016b, p. 2).

Ainda de acordo com o relato, o povoado de Dias Coelho conserva diversas construções se- culares e parte da estética do início do século XX, tempo “áureo das lavras”, tendo sido o espaço contíguo à comunidade aproveitado para a exploração agrícola das terras férteis. Na comunidade do Ribeiro, a família do oleiro Calixto resguarda técnicas ancestrais de produção de tijolos, telhas e utensílios de barro cozido, com um primor destacado pelos pesquisadores do INRC-CD. O povoado está a 12 quilômetros de distância de Dias Coelho. A fazenda na qual está localizada a olaria do mestre oleiro Carlixto é possível de ser avistada das proximidades do núcleo urbano da comunida- de. A olaria está instalada no baixio próxima do riacho, afluente do rio Jacuípe, que inspira o nome do povoado. “O riacho, que passa pela baixada das serras onde encontram-se as dispersas casas que compõem o Ribeiro, limita as terras dos municípios Morro do Chapéu e Miguel Calmon” (IPHAN, 2016b, p. 2).

De maneira geral, é possível afirmar que a situação na qual se encontram as localidades cita- das e a forma como se dá o acesso aos lugares atualmente está muito relacionada aos processos que se deram nos últimos 30 anos. Antes disso, as dinâmicas de crescimento econômico e desenvolvi- mento das infraestruturas aconteceram num ritmo menos acentuado. Os processos de abertura dos caminhos até as duas localidades são um exemplo disso. As trilhas utilizadas pelas comunidades que viviam no espaço durante a pré-colonização foram transformadas em estradas carroçáveis a par- tir da dinamização das localidades de interesse, de acordo com cada época. Aqueles acessos que atingiram maior intensidade de fluxos se ampliaram para comportarem veículos maiores que passa- ram a circular, a exemplo dos caminhões, já na segunda metade do século XX. Atualmente, o acesso às comunidades é feito pelas estradas de chão, da mesma forma que a maior parte das localidades do município.

Além de confirmar a agricultura e a pecuária como atividades econômicas precursoras, um levantamento geológico do município de Morro do Chapéu (ROCHA, 1997, p. 5) fez considerações sobre os aspectos socioeconômicos da época. Na época, a extração mineral era limitada aos garimpos remanescentes de diamantes na região da sede de Morro do Chapéu, município no qual foi reconhecida significativa produção de material para construção civil, a exemplo de paralelepípedos

e pedra britada. A atividade industrial estava limitada a uma cerâmica na área de Fedegosos e a uma unidade para produção de corretivo de solo nas proximidades da cidade de América Dourada (ROCHA, 1997, p. 6), já no caminho para Irecê, um dos municípios desmembrados de Morro do Chapéu no século XX.

Mesmo tendo sido perdida parte significativa do território da freguesia, Morro do Chapéu preserva localidades com economias influenciadas por fluxos comerciais e informacionais que acontecem vinculados diretamente aos elementos contíguos ou distantes do espaço, seja física ou simbolicamente. A complexidade das redes formadas pelas formas que se estabeleceram vinculadas a estes distritos ou comunidades rurais, de relações intensas, integra um dos territórios de extensão mais significativa para as dinâmicas históricas, que também ainda influenciam o mundo de forma diversificada da maior parte do estado da Bahia.

Na sede se concentram a administração pública, as principais representações dos poderes judiciário, policial, legislativo, o sistema financeiro entre outros serviços públicos e privados. Os povoados se consolidam como elementos importantes das estruturas política e econômica e dos conjuntos de dimensões simbólicas, centralizando relações com vários outros elementos, entre formas naturais, espaços construídos, de uso geral, de uso restrito, a exemplo das propriedades que os rodeiam. Neste processo, aprofundam as relações com a sede do município e as sedes dos territórios vizinhos.

Fedegosos é uma das comunidades que alcançaram nível de desenvolvimento considerável na comparação com as demais comunidades de Morro do Chapéu. A regularidade da feira semanal, evento que reúne os produtores das imediações e promove o comércio de diversas mercadorias entre os habitantes da microrregião, na comunidade é exemplo disso. No caso de outras comunidades, mais distantes da sede, a feira é realizada nas sedes das cidades vizinhas. A existência de uma casa comunitária de farinha na comunidade de Fedegosos e de, pelo menos, outras quatro casas do tipo próximas ou na localidade mostra a importância da mandioca para a microrregião da comunidade.

É possível estabelecer que algumas comunidades de Morro do Chapéu possuem territoriali- dades mais baseadas em determinadas atividades econômicas, pois diversos elementos políticos e simbólicos derivam das relações estabelecidas por meio do campo do trabalho. De maneira comple- xa, a atividade da construção civil possui influência sobre todos os territórios construídos, principal- mente, aqueles nos quais se apresentam formas edificadas. A maneira como a atividade influencia as relações econômicas, sociais e políticas das localidades, sejam rurais ou urbanas, varia da mesma forma que as demais atividades econômicas. Aquelas comunidades nas quais há maior concentração de formas dedicadas à produção de materiais destinados à construção ou produtos beneficiados pos-

suem maior influência sobre a estrutura da construção civil do território do município. Nas escalas locais, os efeitos também são melhor identificados.

Nas comunidades onde há maior concentração de trabalhadores e mestres da construção civil é notável que a influência dos rendimentos gerados a partir da atividade beneficie o lugar de manei- ra mais intensa. Do mesmo modo, o espaço de uma pedreira pode fazer com que as atividades de extração de pedras para utilização em diversos tipos de construção seja a principal renda de um nú- mero significativo de trabalhadores. Algumas vezes a economia das localidades é movimentada ba- sicamente pelas dinâmicas da atividade. Acontece o mesmo no caso das olarias, que garantem que o rendimento obtido com o trabalho de produção e queima dos tijolos, telhas e cerâmicas permaneça na comunidade, gerando novos fluxos financeiros. De outro modo, seria necessário remunerar algu- ma das casas de material de construção mais próximas para realizar a entrega de um produto origi- nado, muitas vezes, em localidades distantes, que anteriormente não se relacionavam de forma dire- ta com o destino do material.

É possível considerar que para os trabalhadores que executarão a obra de determinada edifi- cação utilizar com um material produzido na própria comunidade ou em outro lugar pode represen- tar especificações técnicas diferentes, mas também há significados simbólicos distintos. As técnicas de levante de uma parede, por exemplo, são diferentes, pois o tipo de produto produzido nas olarias, o tijolinho, possui especificações diferentes do bloco cerâmico furado feito nas indústrias. Os custos com o transporte de produtos de origem distante são outra diferença, pois encarecem o material para o consumidor. Há ainda a diferença dos tipos de materiais complementares à edificação, já que as construções feitas com tijolos de adobe, por exemplo, não necessitam de cimento na argamassa. As diferenças significativas nos valores simbólicos de uso dos diferentes materiais para os trabalhado- res serão exploradas mais adiante.

No caso desta pesquisa, a identificação dos valores relacionados à produção e ao uso dos ma- teriais produzidos de maneira artesanal pelos trabalhadores da construção civil tradicional foi reali- zada por meio das informações obtidas dos trabalhadores das localidades de interesse no município e ao uso de relatos orais sistematizados. Isso faz com que tornemos possível identificar alterações no padrão de trabalho e uso dos produtos da construção na Chapada Diamantina, dada a abrangên- cia do INRC da Chapada Diamantina.

Do mesmo modo, a participação das localidades de Morro do Chapéu no inventário nos per- mitiu analisar a economia da construção tradicional e os territórios simbólicos da atividade de forma qualificada. Tornou-se necessário, neste caso, a confirmação em campo de informações sistematiza- das por meio das entrevistas.

Outra localidade de Morro do Chapéu que se destacou no INRC-CD é a vila do Ventura. An- tigo distrito que originou Morro do Chapéu, foi criado por lei provincial datada de 1838, elevado à condição de vila e desmembrado de Jacobina em 1864. De acordo com a crônica do ex-vereador do município, Jubilino Cunegundes, estes dois distritos possuíam a maior proporção de propriedades valorizadas do território de Morro do Chapéu. “Essas terras, em parte, muitos descendentes dos pri- meiros donos ainda as possuem” (CUNEGUNDES, 1981, p. 105). A atração de pessoas promovida pela mineração nas serras das proximidades da vila do Ventura foi tamanha que relatos dão conta de, aproximadamente, 18 mil habitantes o contingente que vivia nos arredores da vila no período de auge do garimpo.

É apenas em meados do século XX, que Morro do Chapéu passou a receber investimentos que alteram de maneira significativa a rede de infraestrutura do município. É nesta época que é ins- talado o mercado municipal, forma edificada que beneficia os produtores e comerciantes locais com a melhoria das condições para relações comerciais e demais trocas relacionadas à atividade. Do mesmo modo, o prédio da “Usina Força e Luz” (CUNEGUNDES, 1981, p. 42) é edificado e o ser- viço de luz instalado em 1951. Acontece ainda a construção da rodovia do Feijão, a BA-52, que pas- sa às margens da sede do município, indo de Feira de Santana até Xique-Xique, principal acesso às comunidades de interesse da pesquisa.

Cunegundes (1981, p. 45) informa que o trajeto original da rodovia passaria mais próximo do distrito do Ventura, dado que o caminho escolhido isolou a vila da influência mais direta de dinâ- micas promovidas pelos fluxos de mercadorias, pessoas, informações e energia que passam pela es- trada. As disputas políticas pela emancipação do distrito teriam motivado o isolamento, promovido pelos donos do poder de outras territorialidades influentes do município, interessados em enfraque- cer ainda mais as limitadas dinâmicas pós decadência do garimpo, em benefício das atividades em vigência nos próprios espaços de influência. De acordo com o autor, a rodovia teria sido o serviço mais importante já realizada até a redação das próprias memórias, publicadas no início dos anos de 1980.

A vila do Ventura é o único espaço do município que, atualmente, possui algum tipo de pro- teção legal, definida por órgão público estadual ou federal, dedicada à preservação de aspectos vin- culados à cultura. A localidade possui tombamento provisório do Ipac, realizado em 17 de janeiro de 2005. O dispositivo de preservação visa proteger o casario da vila, cuja ocupação se deu de for- ma intensa no final do século XIX, época do auge da mineração de carbonato e diamante. As edifi- cações que resistiram ao processo de abandono da vila pela quase totalidade dos habitantes, que mi- graram para a sede do município e outras regiões após o declínio do garimpo, apresenta característi- cas semelhantes às de outras localidades mineradoras. Os casarões com dois pavimentos reserva-

vam o espaço de comércio na parte térrea, assim como as casas térreas possuíam salas de negócio na parte dianteira. De acordo com o levantamento do INRC da construção tradicional, todas as ca- sas da comunidade “são construídas com adobe e cobertas com telhas cerâmicas” (IPHAN, 2016c).

O Ventura é um elemento importante do território-rede do município de Morro do Chapéu, e contribui para a análise tanto das dinâmicas econômicas que promoveram a produção espacial do município, quanto as relações políticas entre líderes, que determinavam diretamente a vida dos tra- balhadores. A descrição dos elementos do território-rede de Morro do Chapéu ajuda a compreender quais fatores estavam envolvidos nas formas pelas quais se desenvolveu o campo da construção ci- vil em geral no território, com atenção especial ao segmento tradicional da atividade, representado pelas relações de produção e comercialização, entre outros elementos.