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1. Poder e cultura: contradições da teoria e da prática

1.6 Contribuições da geografia cultural para a pesquisa

Neste tópico referenciamos a utilização da geografia humana como forma de análise da economia do patrimônio cultural imaterial relacionada aos saberes e fazeres localmente desenvolvidos, em especial do ofício da construção tradicional na Chapada Diamantina e no município de Morro do Chapéu. Para isso, faremos uma análise da evolução das pesquisas e autores responsáveis pelo campo de estudo que se convencionou chamar de geografia cultural, que busca revelar os aspectos simbólicos relacionados à ocupação humana do espaço.

Compreendemos, assim, a geografia cultural como uma das principais disciplinas às quais esta pesquisa está dedicada, pois este campo de conhecimento está tão impregnado por outros segmentos de estudo, a exemplo da antropologia, história e sociologia, que – assim como o conceito de território que utilizamos – também se trata de um híbrido, que nos oferece bases suficientes para compreender a totalidade da economia do ofício tradicional praticado por oleiros e adobeiros na zona rural de Morro do Chapéu.

Consideramos que a abordagem da geografia cultural contribui à produção do conhecimento relacionada ao desenvolvimento da interdisciplinaridade. Também porque os estudos sobre as relações simbólicas de valores representam a continuidade das pesquisas das dimensões políticas e econômicas já realizadas pelo pesquisador.

Nos baseamos em um dos principais estudiosos do campo de estudos, o geógrafo francês Paul Claval, que em conferência realizada em 2011 na Universidade Estadual de Londrina rememora ao fim do século XIX a influência da antropologia de Edward Burnett Taylor e de sua obra Primitive Culture (1871), na ecologia dos homens de Friedrich Ratzel e na escola francesa de Vidal de la Blache. Estes autores amplamente analisados na obra de geógrafos que os sucederam superando as limitações dos estudos anteriores, a exemplo do francês Claude Raffestin, no estudo da geografia do poder, e do baiano Milton Santos, na análise das influências e processos para explicar a totalidade do espaço (SANTOS, 2008).

Ratzel e Vidal de la Blache aceitariam o conceito de cultura adotado por Taylor, mas questionavam a qualidade da cultura ser inerente ao indivíduo, já que “o meio ambiente podia determiná-la ou influenciá-la” (CLAVAL, 2011, p. 6).

Daí, uma ênfase sobre as relações entre os grupos humanos e o seu ambiente. A curiosidade se dirigia mais em direção às técnicas materiais, permitindo a transformação delas que as representações. A epistemologia dominante neste tempo era o positivismo: daí a disposição de ignorar as dimensões subjetivas do homem. A abordagem cultural tinha um papel importante na geografia da primeira metade do século XX, mas ela permanecia limitada: a ênfase dizia respeito aos meios usados pelos grupos humanos para modificar o ambiente; a domesticação das plantas e dos animais, as técnicas da agricultura e da criação de gado (…), as técnicas de construção de casas e outros edifícios (CLAVAL, 2011, p. 6).

Conforme a organização dos processos de formação do território sertanejo realizado nos capítulos anteriores, consideramos o caso do Alto Sertão baiano, no qual também se localiza a Chapada Diamantina, como uma das "áreas povoadas por grupos tradicionais de agricultores ou de criadores" na qual "a semelhança entre as atividades de todos era tão forte como a descrição de uma agenda pessoal, de seu 'gênero de vida', o que dava uma boa idéia da vida de todos" (CLAVAL, 2011, p. 6). Na virada dos séculos XX e XXI, a geografia cultural ainda lidava quase somente com a atividade humana e as marcas que imprimia às paisagens. A evolução das formas de acessar as informações por meio da comunicação e o avanço da padronização das técnicas fizeram os autores pensarem que o sub-segmento de interesse da geografia, assim como os conhecimentos tradicionais, também poderia desaparecer.

O avanço do quadro epistemológico relativo à geografia cultural teria se dado a partir das décadas de 1960 e 1970, quando a inspiração ideológica deixou de ser "positivista ou neo- positivista" (CLAVAL, 2011, p. 6). Poucos anos antes, o estruturalismo teria passado a atrair os pesquisadores das ciências sociais por conta das configurações sociais, ou estruturas, que se caracterizariam por permanecerem estáveis durante longos períodos. De acordo com Claval, na época, "o estruturalismo foi criticado pelas suas fraquezas – ele explicava a permanência das estruturas, mas não suas evoluções; ele ignorava a história" (CLAVAL, 2011, p. 7).

As obras dos europeus Anthony Giddens (1984)9 e Pierre Bourdieu (2009)10 teriam avançando ao complementar os aprendizados do estruturalismo com a importância da iniciativa individual. Surgia o estruturacionismo que, principalmente, nos trabalhos de Giddens considerava as contribuições da geografia e da escala local, na qual era possível conferir a contribuição dos indivíduos na "construção das realidades sociais" (CLAVAL, 2011, p. 7). Antropólogos estadunidenses também passaram a preferir a ênfase na dimensão simbólica, ao contrário das teorias

9 GIDDENS, A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

tylorianas, a exemplo de James Clifford (2016)11. Diminuía assim a "curiosidade pela base material da vida e para as técnicas de produção" (CLAVAL, 2011, p. 8).

Já no Reino Unido, as correntes do pensamento de Raymond Williams (195812; 198113) e Stuart Hall (200714) promoveram mudanças na ideia de cultura. O primeiro relacionava a interpretação marxista sobre os modos de produção também para as formas de comunicação, o que pode ser comparado à visão gramsciniana de que o poder das classes dominantes também é reproduzido nos modos de representação desenvolvidos. Já Stuart Hall "analisava o papel das representações na gênese da imagem do outro, e as diversas formas da exclusão e de segregação" (CLAVAL, 2011, p. 8). Como resultado dos conceitos discutidos nas escolas de língua inglesa, durante as décadas de 1960 e 1970, "a cultura torna-se um instrumento de dominação, usado pelas classes mais altas para impor às classes mais baixas comportamentos conformes seus interesses" (CLAVAL, 2011, p. 8).

A partir da década de 1970, as dimensões culturais passaram a influenciar diretamente os geógrafos que caracterizaram-se por desenvolver a corrrente do pensamento da "Nova Geografia". Entre as razões para a reprodução desta vertente estava a crítica ao perfil conservador da disciplina. Apesar de não ser reconhecido pelos pares da disciplina como um pensador que tivesse privilegiado os aspectos culturais nos estudos do espaço, a "Geografia Nova" defendida pelo baiano Milton Santos traz uma série de aspectos relativos à crítica aos modos conservadores com o qual a geografia lidava com os temas de interesse.

De acordo com Claval, teria sido a partir da dedicação pessoal às questões das dimensões sociais e políticas da nova geografia que o pesquisador teria descoberto a importância de empenhar- se sobre a abordagem cultural no campo de estudos.

Após fases de crítica ao modernismo ocidental e ao movimento pós-moderno, o campo que passou a ser caracterizado como geografia cultural teria tomado duas formas a partir dos anos de 1980 e 1990. A primeira seria a interpretação da geografia cultural de Denis Cosgrove15 e Peter Jackson16, concentrada integralmente no conteúdo simbólico das culturas, criticada por David Harvey, dado o desprezo aos aspectos da base material da vida social. Na França, a relevância teria sido dedicada ao estudo sobre a importância do espaço para a formação das identidades, ou da territorialidade.

11 CLIFFORD, J; MARCUS, G. A escrita da cultura: poética e política da etnografia. Rio de Janeiro: Papéis

Selvagens/edUFRJ, 2016.

12 WILLIAMS, R. Culture and Society. Londres: Chatto and Windus, 1958.

13 WILLIAMS, R. Culture. Londres: Fontana, 1981.

14 HALL, S. Identités et cultures. Politiques des Cultural Studies. Paris: Amsterdam, 2007.

15 COSGROVE, D. Social Formation and Symbolic Landscape. Londres: Croom Helm, 1984.

O segmento francês teria mantido a inspiração no conceito de cultura tayloriano. Este modelo de geografia cultural daria ênfase aos processos de comunicação e diferenciação entre as culturas de tradição oral, escritas e baseadas nas mídias contemporâneas. Neste caso, os mecanismos de comunicação utilizados para a transmissão da cultura são analisados, colocando em evidência as etapas de formação do indivíduo por meio da cultura. As identidades individuais e coletivas seriam resultado deste processo de construção, que resultaria também na formação de uma dimensão normativa da existência daquelas identidades.

A partir do fim da década de 1980 e nos anos 1990, o campo da epistemologia teria experiementado uma maior permeabilidade de influência entre as áreas de estudos das ciências humanas, em especial por conta do pós-colonialismo. O trabalho de intelectuais como Jacques Derrida e Edward Said teria contribuído com o que Paul Claval (2011, p. 13) convencionou intitular de "virada cultural da geografia", momento no qual se flexibiliza a fronteira que dividia as ciências sociais e a geografia. De acordo com o autor, para entender a realidade de um período, seria "importante analisar as suas culturas subalternas, essas das minorias, dos excluídos, dos grupos marginais" (CLAVAL, 2011, p. 13).

A virada cultural na geografia significaria que "a totalidade dos saberes geográficos tem uma dimensão cultural: eles são relativos a uma época, a um lugar ou a uma área" (CLAVAL, 2011, p. 13). Assim,

no domínio da geografia política, o poder sempre tem dimensões culturais. (...) Construir uma geografia cultural como um compartimento isolado da geografia não tem sentido. A construção duma sub-disciplina deste tipo tem um valor prático, mas o que é importante é entender o papel da cultura no conjunto dos fenômenos geográficos: daí o sentido novo da abordagem cultural na geografia (CLAVAL, 2011, p. 13).

A geografia cultural poderia ser caracterizada como base de toda a disciplina e isso poderia ser evidenciado por meio de alguns aspectos. Entre eles, o fato de que os conhecimentos relativos ao mundo se dariam por meio de representações. Além disso, Claval (2011, p. 16) afirma que a cultura seria formada com elementos transmitidos ou inventados:

A cultura é o conjunto de práticas, conhecimentos, atitudes e crenças que não é inato: eles são adquiridos. Daí o papel central dos processos de transmissão, de ensino, de aprendizagem, de comunicação na geografia cultural: a natureza e o conteúdo da cultura de cada indivíduo refletem os meios através dos quais ele adquire as suas práticas e os seus conhecimentos: transmissão direta pela palavra e pelo gesto (...). Os lugares onde a transmissão ocorre têm também um papel estratégico na gênese dos indivíduos e na construção da cultura. Os lugares e as suas paisagens servem de suporte a uma parte das mensagens transmitidas (CLAVAL, 2011, p. 16).

Ainda para o geográfo, a cultura existiria por meio das pessoas que têm acesso e a modificam, se formando como indivíduos durante aquele processo. O segmento da geografia

cultural daria atenção especial ao indivíduo, que seria "uma construção ligada ao processo de transmissão das práticas, das atitudes, dos conhecimentos e das crenças" (CLAVAL, 2011, p. 16). O processo de construção da geografia cultural também seria social, assim como o processo de construção do indivíduo. Os valores transmitidos num grupo e que lhe imprimem coerência, tal qual as representações, fazem com que a geografia cultural seja sócio-cultural. Para Claval (2011, p. 17), entre os processos sociais, a transmissão é o mais importante, dado que esta "faz de cada um, um ser social, que lhe dá uma certa semelhança com os outros membros do grupo; é este processo que suscita a formação duma consciência comum".

O surgimento de sentidos de identidade seria a tradução da construção da figura social no indivíduo. De acordo com o geógrafo, a identidade seria formada sempre por muitas dimensões, dado que ao tempo que é individual também é coletiva. Muitas vezes as identidades coletivas se sobrepõem.

O sentido de identidades depende da experiência direta de cada um na escala da família ou da vizinhança. Ele resulta duma construção intelectual e dum ensino sistemático no caso dos sentidos de identidade à escala duma nação, (...) trata-se de identidades imaginadas, no sentido de Benedict Anderson. Como consequência do desenvolvimento das mídias modernas, uma parte das identidades cessa de ter ligação estreita com um território específico: daí os sentidos de desterritorialização e reterritorialização analisados por Rogerio Haesbaert (CLAVAL, 2011, p. 17).

É nesta ordem que embasamos os processos de enfraquecimento dos elementos que integram as estruturas da economia do patrimônio cultural imaterial contido nos saberes herdados e desempenhados por mestres e trabalhadores da construção civil da Chapada Diamantina. Ao passo que o avanço das formas de comunicação fortaleceram a influência dos elementos dedicados à produção de itens para a construção civil em escala intensiva, a rede de formas materiais e intangíveis da construção tradicional também foi enfraquecida, minimizando o poder da economia que flui por meio dos elementos tradicionais. Por isso a dedicação à obra do geógrafo brasileiro Haesbaert da Costa e dos movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização das estruturas de trabalho baseadas nos saberes tradicionais na Chapada Diamantina, em especial a estrutura dos saberes vinculados à construção tradicional em Morro do Chapéu.

Um dos aspectos utilizados por Paul Claval para justificar a geografia cultural como base da disciplina que interessa diretamente a esta pesquisa é a construção do espaço pela cultura. Isso porque a geografia cultural esclareceria a construção do espaço. "A organização do espaço reflete constrangimentos de natureza ecológica – esses que os homens têm de superar para extrair do ambiente a sua alimentação, para proteger-se do frio, do vento, da chuva, do calor – e outros de origem social" (CLAVAL, 2011, p. 18). Os saberes relativos à construção civil podem ser compreendidos como uma resposta dos indivíduos aos constrangimentos de ordem ambiental e

social, este último, explicado, por exemplo, pelo fator da segurança.

A organização do espaço seria o resultado da percepção dos homens, "das técnicas e modelos de ação do grupo, e da socialização do espaço" (CLAVAL, 2011, p. 18). Esta socialização se daria de maneira mais favorável aos elementos mais poderosos dos grupos sociais. As formas materiais realizadas seriam reflexo das práticas e conhecimentos dos artesãos que participam no trabalho nas sociedades tradicionais, entre estes, construtores e agricultores. "A construção do espaço reduz muito as possibilidades de expressão espacial das categorias mais pobres e fracas da população. Esses grupos esforçam-se por um reconhecimento da sua existência através de ações visíveis com forte carga simbólica" (CLAVAL, 2011, p. 18).

Assim, Claval conclui a análise sobre o papel da geografia cultural afirmando que a principal mudança nos estudos relacionados à disciplina se deu a partir da década de 1970, quando as dimensões materiais e técnicas da cultura deixaram de ser o foco para ceder lugar às dimensões simbólicas. Ao discordar do fato desta passagem ter se caracterizado na forma de revolução científica ou de ruptura epistemológica, o geógrafo afirma que houve uma evolução da disciplina com a continuidade de formas de pensar que já vinham em desenvolvimento. O interesse contínuo da geografia sobre "os processos de comunicação, de transmissão e de invenção" (CLAVAL, 2011, p. 21) seria testemunho disso. Outro testemunho "é o lugar da dimensão material da cultura na pesquisa contemporânea, mesmo se essa dimensão não é mais centrada sobre as atividades produtivas, mas sobre o corpo como base da experiência humana e dos sentidos, (...) ou sobre a paisagem ou o patrimônio" (CLAVAL, 2011, p. 21).

A análise da base material da cultura não se reduz mais às instalações produtivas, aos edifícios, às ferramentas. (...) O papel do corpo nos processos de percepção é sublinhado. A paisagem (...) tem uma dimensão simbólica: a preservação de algumas de suas formas aparece como um imperativo social, mesmo se ele é custoso. (...) A geografia cultural de hoje (...) aparece como um fundamento comum, que explica a construção dos indivíduos, da sociedade, do espaço e de sistemas normativos. Ela permite compreender uma boa parte dos conflitos sociais na escala local como também na escala das nações e no nível internacional – daí o sucesso da geopolítica crítica. Ela esclarece também (...) o interesse para com o patrimônio (CLAVAL, 2011, p. 20-21).

Tendo assim realizado uma abordagem geral do histórico da geografia cultural, recorremos à principal obra do autor da análise. No livro que leva o nome da disciplina, uma das principais referências do campo, Claval define a cultura enquanto "a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos (...) pelo conjunto dos grupos de que fazem parte" (CLAVAL, 2007, p. 63). De acordo com o geógrafo, a cultura tem origem em tempos distantes e "mergulha no território" (CLAVAL, 2007, p. 63). É também uma herança cuja transmissão é realizada em várias etapas, a exemplo daquelas realizadas no espaço familiar e pelos mestres. Ambos representam soluções para a transmissão das técnicas necessárias

ao desenvolvimento dos grupos. Em comunidades mais complexas, posteriores à revolução industrial, momento no qual as unidades agrícolas ou artesanais familiares deixam de serem necessariamente transmitidas dentro do núcleo familiar, de pais para filhos, "o aprendizado e o estágio com um mestre ampliavam o recrutamento" (CLAVAL, 2007, p. 66). Nestes casos, o acesso à escrita rompe as formas de reprodução de culturas em comunidades cujas dimensões de ação são baseadas na tradição oral.

No caso dos ofícios tradicionais remanescentes na Chapada Diamantina, cujas dinâmicas percebemos enquanto parte da economia da cultura do patrimônio imaterial do território, consideramos que, apesar de parte dos participantes mais contemporâneos incorporarem informações vindas dos conhecimentos escritos e novas tecnologias, a transmissão de conhecimento oral é o principal meio de reprodução da tradição. No caso da construção civil tradicional, a maior parte dos mestres e trabalhadores identificados durante o INRC da Chapada Diamantina possuem a oralidade como principal fonte de aprendizado e difusão dos saberes. Para Claval (2007, p. 66-67),

a comunicação oral e gestual não necessita de nenhum instrumento e é utilizável por todos. O movimento observado e a palavra que o acompanha frequentemente permitem a aquisição de práticas: o aprendiz brande seu martelo e mira o prego para introduzi-lo direito: 'Segure bem a ponta, olhe o prego, dê um bom golpe!' aconselha o mestre.

Com a escrita, desvincula-se a necessidade de acessar as memórias dos elementos que se dedicam aos ofícios para a preservação das experiências do passado. Assim, "o privilégio do local", e as especificidades que o espaço imprimiu às qualidades dos artesãos de dada localidade, "desaparece em parte" (CLAVAL, 2007, p. 67). A importância dos saberes técnicos se limitaria a algumas áreas específicas. Consideramos que a Chapada Diamantina ainda é um território no qual muitos saberes técnicos tradicionais permanecem vivos por meio dos detentores. No entanto, as influências de técnicas e produtos de ordem externa e contemporâneos têm reduzido o protagonismo destes saberes na formação intelectual e profissional dos indivíduos, promovendo a desterritorialização dos saberes e descaracterizando as localidades enquanto espaços de guarda dos saberes.

Para um dos principais pensadores da geografia da cultural, a escrita desempenharia um fator de desigualdade social, já que o esforço e o poder necessários para o domínio dos textos fundamentais que normatizam e legitimam a participação do indivíduo na sociedade limitaria a difusão do conhecimento a um número restrito de pessoas.

Para Claval, os indivíduos daqueles territórios nos quais as dimensões de valores são reproduzidas em maior parte pela informação falada teriam o mesmo tipo de acesso à cultura. Por meio das observações do geógrafo poderíamos dizer que a cultura inerente aos trabalhadores da

construção tradicional no sertão, protagonizada pela reprodução de intenso meio simbólico relativo às trocas de gestos e conversas, se oporia aos conhecimentos escritos dominados pelas elites. Consideramos aqui todo o arcabouço normativo verbal e escrito reproduzido pelos elementos deste grupo nas escalas locais, ampliando-se também às municipais e regionais, incluindo as ações dos poderes públicos que se realizam nestas escalas. É possível estabelecer vínculos com as possibilidades do que pode ter ocorrido com as categorias de trabalhadores construtores desde o desenvolvimento intensivo da civilização e das formas de convivência.

Desde os megalitos, os templos, os palácios, a decoração das cidades constituem os ancestrais da mídia moderna (...)17. Trata-se de meios de comunicação que definem as mensagens muito concretas e imediatamente legíveis para todos. (...) mensagens forçosamente assimétricas, cuja emissão é monopolizada por uma estreita elite, seres de exceção, muito dotados e submetidos a uma longa formação. Eles exaltam e exprimem a força, a beleza e o bem, a vida, a morte e o além: o que há, para todos os seres, de mais essencial. Sua mensagem é também aquela de seus comandatários – as classes no poder. Quando se fala da cultura, não se trata frequentemente de evocar as obras dos artistas que souberam, no seu tempo, exprimir melhor a genialidade original de um grupo (...). Eles testemunharam a cultura da humanidade (CLAVAL, 2007, p. 73).

Seria possível estabelecer uma série de vínculos históricos sobre a importância da