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3. Política do patrimônio cultural e ambiental na Chapada Diamantina e economia

3.5 Estabelecendo parâmetros para definir a economia do patrimônio imaterial

Não são muitos os trabalhos dedicados a analisar a economia relacionada ao campo do patrimônio cultural. Menos referências ainda existem vinculadas às análises do patrimônio cultural

imaterial. Uma das referências no estudo da economia do patrimônio em geral é o cientista econômico espanhol Juan Alonso Hierro que já produziu trabalhos relacionados à questão da construção civil e do turismo vinculados ao patrimônio cultural (HIERRO; FERNÁNDEZ, 2004, p. 4). Na obra, em parceria com o colega economista de instituição de ensino, Hierro aborda "a importância do turismo cultural como fator de desenvolvimento econômico sustentável e sua vinculação com as despesas na preservação do patrimônio histórico" (HIERRO; FERNÁNDEZ, 2004, p. 14), além das dinâmicas do campo para a geração de emprego e fomento territorial.

Entre as referências utilizadas está a ideia de que o desenvolvimento dependeria mais da incorporação dos recursos que não estão sendo bem utilizados, que são mal disseminados, ou ocultos, ao invés das combinações entre recursos e fatores de produção (HIERRO; FERNÁNDEZ, 2004, p. 14). Nos interessamos, em especial, pelas formulações conceituais do trabalho dos espanhóis relativas às considerações sobre o patrimônio cultural e economia:

a preservação do patrimônio histórico não implica apenas objetivos de proteção e restauração, mas também de sua rentabilidade (...). Este último objetivo de 'valorização' do patrimônio histórico está infalivelmente vinculado ao de desenvolvimento econômico, confirmando que há uma clara correspondência entre este e a promoção dessas atividades culturais (HIERRO; FERNÁNDEZ, 2004, p. 53, tradução nossa).

Na opinião dos autores, para que o campo do patrimônio cultural tenha condições de representar possibilidade de geração de recursos financeiros para outras áreas, é necessário preservar ou proteger os bens. No caso analisado pelos autores, o campo da construção civil contribuiria com a restauração de bens imóveis e o setor do turismo cultural se beneficiaria dos conjuntos dos bens imóveis conservados, a exemplo do que acontece na Chapada Diamantina.

A preservação do patrimônio deveria ser realizada a fim de possibilitar a transmissão dos bens para as gerações futuras, evitando a exposição aos riscos "pelo aproveitamento da geração atual" (HIERRO; FERNÁNDEZ, 2004, p. 53, tradução nossa).

É esperado que as perspectivas de desenvolvimento socioeconômico vinculadas às dinâmicas do patrimônio cultural imaterial também priorizem elementos como a expansão das "liberdades reais", a "emancipação dos sujeitos", "amplificação das diversidades" e "reivenção das tradições" (BANDEIRA, 2015, p. 187-188). Acreditamos na possibilidade de um modelo de desenvolvimento para a construção tradicional que promova a valorização da atividade em acordo com estas prioridades.

Complementamos as considerações de Hierro e Fernández afirmando que seria necessário preservar também os saberes construtivos relacionados aos conjuntos arquitetônicos das cidades tombadas, num processo de valorização do patrimônio imaterial vinculado à construção das edificações. De acordo com o desenvolvimento das políticas internacionais do patrimônio, os

saberes e os indivíduos detentores destes conhecimentos são tão importantes quanto a existência dos centros históricos, que atraem os turistas. Os trabalhadores poderiam ser incorporados ao processo de preservação dos espaços produzidos por seus antepassados a partir da inclusão da necessidade do uso de técnicas e materiais artesanais, aqueles que originalmente foram utilizados nas construções, nas obras de restauração das edificações.

Este fator não é exigido nos projetos de revitalização dos centros históricos da Chapada Diamantina, que priorizaram a transformação das fachadas em cenários de estética cênica, sem garantir o uso dos materiais originais, promovendo a substituição de técnicas, saberes e materiais e, consequentemente, reduzindo a dedicação e os recursos destinados aos trabalhadores detentores dos saberes tradicionais, que trocaram a preparação e uso da argamassa de barro, areia e cal pelo cimento, o bloco cru de adobe pelo tijolo industrializado e a tinta de cal hidratada e pigmentos pelas tintas sintéticas.

As empresas fornecedoras de produtos construtivos industrializados baseados em processos contemporâneos se beneficiaram com a incorporação dos recursos relativos ao tempo de dedicação dos trabalhadores que deixou de ser empregado por estes. Este recurso, possivelmente, é inferior ao lucro das empresas que administraram os projetos de revitalização, gerenciando o repasse de verbas de órgãos internacionais transferidas ao poder público federal e posteriormente às empresas e destas ao pessoal contratado.

A sustentabilidade sugerida pelos autores espanhóis citados se daria caso a mão de obra local tivesse sido empregada, assim como os materiais de construção disponíveis nas localidades ou proximidades, cuja extração também é realizada por meio da mão de obra local, gerando maior renda e emprego às localidades. Para isso, no entanto, o nível de institucionalização do envolvimento das políticas e órgãos responsáveis pela cultura e meio ambiente deveria ser intensificado, a fim de equacionar o uso racionalizado de recursos naturais disponíveis na escala local para o setor da construção com destinação à preservação do patrimônio cultural, evitando a incorrência em crimes ambientais.

A proposta e Hierro e Fernandez (2004, p. 53, tradução nossa) é avaliar empiricamente a

correlação entre o esforço na preservação do patrimônio cultural e sua consequente contribuição ao crescimento [que] poderia servir de base para enfatizar a conveniência de políticas de desenvolvimento sustentável que tiveram o objetivo intenso da virtualidade econômica dos bens culturais.

Para isso, criaram o medidor que chamaram de “gasto histórico de conservação patrimonial”, baseado em dados fornecidos pelas administrações públicas de países europeus para diversas finalidades culturais, entre elas, a reforma de monumentos, de maior interesse no nosso

caso. A proposta dos autores era verificar a relação entre estes e a contribuição do percentual dos recursos para o produto interno bruto (PIB) e a geração de emprego nacional que essas atividades de investimento ou despesa dão origem (HIERRO; FERNÁNDEZ, 2004, p. 54).

Os autores consideram complicada a tarefa de determinar a representatividade econômica das empresas que se dedicam à restauração e reabilitação dos bens culturais com os dados disponíveis à epoca do trabalho. As empresas que concentravam as atividades na restauração de bens móveis foram consideradas de tamanho pequeno e modelos de negócios reduzidos, mas altamente qualificados. "Sobre estas é impossível avançarmos na valoração de conjunto hoje em dia" (HIERRO; FERNÁNDEZ, 2004, p. 54).

No caso da nossa pesquisa, temos a vantagem de partir de uma base de dados qualificada produzida pelo órgão federal responsável pelo patrimônio, o que qualifica o trabalho. No momento atual, não há como verificar a representatividade da economia do patrimônio imaterial da construção civil sem utilizar uma ampla pesquisa de base. O recorte utilizado pela pesquisa do INRC-CD nos induz a tomar o território de identidade como caso e a restringir ainda mais a análise para verificar a representatividade de ofícios específicos em um município, no caso o de Morro do Chapéu. A proposta permite estimar não só dados financeiros relativos à capacidade econômica do ofício e dos saberes tradicionais da atividade de forma direta, mas verificar também as dimensões simbólicas nas quais operam os saberes.

Partimos não apenas dos resultados do INRC-CD, mas sim do pressuposto verificado nos capítulos anteriores de que os saberes tradicionais da construção se vinculam direta ou indiretamente com praticamente todas as atividades econômicas que se dão no território de identidade na atualidade, sendo estratégicos para a produção do PIB territorial. Isso acontece porque as formas físicas das estruturas econômicas são quase na totalidade diretamente condicionantes para a realização de operações das demais atividades econômicas, não só do turismo, nos casos aplicáveis, mas também nos demais setores da economia do território.

Conforme vimos nos capítulos anteriores, compreendemos que o estímulo ao exercício dos saberes relacionados à construção civil tradicional está na intersecção da preservação dos conhecimentos ancestrais necessários à preservação dos conjuntos urbanísticos tombados enquanto patrimônio material, de modo a preservar também a característica de permanência do modelo de produção dos bens, considerado mais sustentável que os padrões industrializados. Isso acontece, em parte, pois a reterritorialização dos elementos contemporâneos da construção se dá a partir da desterritorialização dos mestres e trabalhadores da construção tradicional e suprime a possibilidade de controle local da extração dos materiais de construção necessários à preservação ou expansão urbana.

De acordo com Hierro e Fernandez (2013, p. 1136):

Para a Economia da Cultura, o conceito de sustentabilidade tem especial relevância, a partir de uma dupla perspectiva. Por um lado, para a consideração da preservação do patrimônio como uma estratégia para promover o desenvolvimento econômico sustentável. De outro, porque a ativação de recursos vinculados ao Patrimônio Cultural requer, dada a sua natureza, uma utilização responsável dos mesmos, o que impõe a sustentabilidade como critério inescapável.

Por mais que a hipotética supressão total do emprego dos saberes e técnicas tradicionais da construção civil, substituídas pelos implementos industrializados, não seja possível, dado que os trabalhadores remanescentes do setor são oriundos da transmissão ancestral dos conhecimentos do ofício, é notável que o enfraquecimento do território dos trabalhadores dos modelos tradicionais representa também a redução das economias locais.

Conforme vimos, apesar da dificuldade de apresentar o processo, já que quase a totalidade do setor se encontra na informalidade, basta verificar in loco a participação dos trabalhadores do setor na população economicamente ativa das localidades e considerar a quantidade de tempo dedicado às técnicas baseadas nos modelos de produção artesanal. É notório que o estímulo a maior dedicação ao emprego da mão de obra local se reverte em recursos financeiros para as localidades.

Os autores espanhóis dividem em três as características consideradas para a economia relativa ao patrimônio cultural. A primeira seria aquela cujos elementos do patrimônio são públicos. A segunda considera a valoração econômica do patrimônio cultural como um ativo, dado que para "sua construção foi necessário um investimento de recursos físicos e humanos" (HIERRO; FERNÁNDEZ, 2013, p. 1137). Além disso, os bens seriam depreciados com o tempo, o que exigiria recursos para a manutenção.

Ao contrário dos autores consultados, consideramos que os conjuntos arquitetônicos tombados enquanto patrimônio cultural, ao menos do caso da Chapada Diamantina, não têm apenas o setor de turismo como uma das principais atividades econômicas relacionadas. Mesmo considerando os serviços e outra série de negócios vinculados ao setor de turismo, reconhecemos o papel fundamental que o campo da construção civil oferece para os bens culturais imóveis. Primeiramente, pois são os ofícios que possibilitaram a edificação dos bens, o que faz deles parte do patrimônio cultural, mas porque também é uma atividade que atende os demais espaços do meio urbano e rural, por meio da prestação de serviços para construção ou reformas. A atividade atende de forma geral toda a sociedade dedicada às demais atividades econômicas e é pressuposto para a realização de qualquer atividade relativa à ocupação dos lugares.

A característica considerada por Hierro e Fernandez de que a economia relacionada ao patrimônio cultural vincula o campo ao conceito de capital cultural, cunhado pelo economista

australiano David Throsby, definiria o bem como ativo que incluiria, valorizaria ou daria origem a um valor cultural determinado, além do valor econômico que aquele bem poderia ter. De acordo com o australiano:

Mais precisamente, o capital cultural é o estoque de valor cultural incorporado em um ativo. Este estoque, por sua vez, pode dar origem a um fluxo de bens e serviços ao longo do tempo, ou seja, para mercadorias que podem, por si mesmas, terem valor cultural e econômico. O ativo pode existir em bens tangíveis ou intangíveis (THROSBY, 1999, p. 6-7, tradução nossa).

Assim como os outros tipos de capital, o cultural apresentaria duas faces: do estoque de ativos e do fluxo de serviços vinculados. Em outro texto dedicado a discutir os vários tipos de valores vinculados ao patrimônio cultural, Throsby expõe o mal-estar de pesquisadores desse campo de estudos à insensibilidade de economistas que se concentravam apenas nas análises de mensuração financeira dos bens do patrimônio cultural. O autor diferencia vários tipos de valores, a exemplo dos individuais em oposição aos coletivos, os valores privados e os públicos, além dos valores referentes à análise econômica do patrimônio cultural e os valores financeiros.

Além disso, Throsby (2007, p. 4) reconhece a existência de ativos econômicos vinculados ao patrimônio cultural imaterial. O autor considera habilidades artesanais tradicionais enquanto ativos de valor cultural. Sendo ativos do capital cultural também invocam a ideia de estoque e fluxos (THROSBY, 2019, p. 200).

No caso dos ofícios da construção tradicional, um conjunto de 150 mil tijolos numa olaria, a exemplo do estoque de produtos disponível na olaria de Fedegosos, em Morro do Chapéu, em meados de 2019, pode ser considerado um estoque do patrimônio de valor cultural. A comercialização dos produtos promove um fluxo cuja representação financeira seria da ordem de R$42 mil na época, mobilizado a partir do emprego dos conhecimentos tradicionais do ofício de oleiro transmitidos geracionalmente. Ao considerar o ofício parte do patrimônio cultural, a atividade envolve muitos outros valores simbólicos, a exemplo das relações nas dimensões familiares e de interações sociais que acontecem no espaço de trabalho.

Para Throsby, propor um conceito de valor que não seja financeiramente mensurável "requer uma ampliação de perspectivas entre os economistas instruídos na rigorosa tradição neoclássica" (THROSBY, 2019, p. 200, p. 200-201). O autor afirma que mesmo supondo-se que o consumidor esteja apto a captar todas as dimensões subjacentes ao produto, talvez seja possível convencer um tradicionalista conservador "a contemplar outras formas de valor se for possível demonstrar que, independentemente dos efeitos financeiros, esses valores alternativos afetam as escolhas das pessoas e, portanto, a alocação de recursos" (THROSBY, 2019, p. 201). Isso explicaria a opção dos consumidores que optam por materiais de obra artesanais para a construção a partir de

preferências estéticas ou para favorecer produtores locais e as economias das comunidades, por exemplo.

O pesquisador australiano ainda define três categorias de valores econômicos do patrimônio cultural: os valores de uso, não-uso e de externalidades benéficas. A primeira categoria constaria nos "processos de mercado e podem ser observados em várias transações financeiras" (THROSBY, 2019, p. 201). A segunda se vincularia aos bens públicos e, mesmo sendo experimentado por indivíduos, não se refletiria em processo de mercado. A terceira categoria promoveria "algum tipo de prazer transitório" (THROSBY, 2019, p. 201) na observação da estética ou das qualidades históricas, a exemplo dos centros urbanos tombados.

Para a avaliação do valor cultural na economia do patrimônio cultural, dado o caráter multidimensional dos bens, Throsby (2019, p. 203) sugere a desconstrução dos elementos constituintes, a exemplo de "propriedades estéticas, simbólicas, sociais, históricas, educacionais e componentes científicos" . A categorização das dimensões do valor cultural se assemelharia aos critérios de julgamento de edifícios ou locais em processo de tombamento ou nomeação para a lista do patrimônio mundial sugerido por meio da publicação da Carta Burra, do ICOMOS da Austrália para Locais de Significado Cultural.

O desafio da iniciativa se daria pelo fato de que "um julgamento quanto ao grau de relevância cultural ou o nível de valor cultural de um item do patrimônio é inevitavelmente subjetivo" (THROSBY, 2019, p. 203). Seria necessário inventar meios de avaliação para oferecer um padrão comum de avaliação para os avaliadores. Throsby ainda reconhece as concentrações de bens patrimoniais derivados da arquitetura de vilas e cidades nos países em desenvolvimento e a permanência de atividades tradicionais relacionadas aos espaços. A exemplo da Chapada Diamantina, estes espaços resguardam núcleos históricos que compreendem "uma maior ou menor homogeneidade [para a] aglomeração de patrimônios culturais tangíveis e intangíveis" (THROSBY, 2019, p. 205).

Após a caracterização da importância do campo da economia do patrimônio cultural, os professores Hierro e Fernandez por meio de análise dos dados da Conta Satélite de Cultura – modelo de gestão do orçamento – espanhola analisam a representatividade do setor para o desenvolvimento do país europeu. Os autores avaliaram que, apesar da limitação dos dados disponíveis, o aspecto econômico relacionado ao patrimônio cultural, acionado por meio das iniciativas do turismo cultural, gera impactos positivos. Para eles, "o patrimônio, assim considerado capital cultural, dá origem a um importante fluxo de retornos econômicos, o que (...) compensa com muito o esforço que se realiza em preservá-lo" (THROSBY, 2019, p. 205). O patrimônio cultural seria um ativo cuja valorização pública e privada promove rentabilidade social e econômica.

Compreendemos que a investigação do potencial do uso turístico do patrimônio cultural seria importante de ser utilizada no caso da Chapada Diamantina, dado que seria possível considerar que parte representativa do turismo realizado em parte do território é feita a partir dos serviços concentrados nos centros históricos tombados, o que poderia caracterizá-la enquanto turismo cultural. No entanto, compreendemos que as localidades turísticas da Chapada Diamantina são comercializadas enquanto atrativos do ecoturismo, apesar de haver grande demanda para atrativos culturais que foram pouco aproveitados pelas iniciativas de divulgação dos atrativos turísticos nas últimas décadas. Além disso, apesar da disponibilidade de informações sobre os investimentos realizados por programas de restauração de conjuntos arquitetônicos tombados haveria problemas por conta da ausência de dados territorializados vinculados ao desempenho econômico, impedindo a medição do impacto dos investimentos.

Compreendemos que as informações disponíveis por meio da pesquisa realizada pela equipe do INRC-CD apresentam a perspectiva de dados econômicos em nível territorial mais qualificada já apurada. Por outro lado, consideramos que a ausência de uma análise econômica dedicada no INRC-CD quanto aos ofícios e ações praticadas por mestres e trabalhadores da atividade representa uma oportunidade de realização de um estudo relacionado à economia do patrimônio cultural imaterial no território. Possivelmente, a pespectiva é mais promissora que qualquer outra iniciativa que busque a identificação deste segmento econômico no território, dado o volume de dados colhidos aptos a serem analisados. Temos em vista, no entanto, que por conta do aspecto econômico não ter sido um segmento priorizado pelo trabalho de pesquisa do inventário é necessário realçá-lo em meio a um volume significativo de informações, tarefa desafiadora.