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2. Contexto dos territórios da Chapada Diamantina e Morro do Chapéu

2.1 Primórdios da colonização em Morro do Chapéu

2.1.2 Origem histórica dos saberes e fazeres locais

É importante lembrar que toda a mão de obra que atualmente trabalha no território de identidade foi formada a partir de processos de maestria e aprendizagem e troca de experiências entre os mais e velhos e os mais jovens, através da oralidade. O acesso dos trabalhadores às novas técnicas construtivas, seja na atuação em grandes obras que passaram a ser realizadas no território de identidade a partir do século XX, seja por meio da migração de muitos trabalhadores e o acesso às técnicas em canteiros de obras nos centros urbanos das regiões metropolitanas da Bahia e de outros estados, só foi possível pois já havia a experiência laboral baseada nas técnicas tradicionais desenvolvida devido os processos históricos ocorridos no território de identidade.

Este acúmulo de experiências no espaço está representado hoje pelo território da construção tradicional na Chapada Diamantina, no qual a estrutura simbólica ainda é protagonista. Historicamente, sem a evolução das dinâmicas deste território, consideramos que não seria possível que a atividade econômica da construção civil na Chapada Diamantina se desenvolvesse da forma como hoje pode ser observada. O estudo pondera que a energia empregada pelos trabalhadores a partir das práticas baseadas nos conhecimentos tradicionais é o principal mecanismo para o desenvolvimento do território de identidade.

Em verdade, deve-se deixar claro aqui que a totalidade da estrutura simbólica da construção tradicional no território de identidade, assim como daquelas estruturas relacionadas às demais atividades econômicas fundadoras do território na sua atual composição, deve a origem aos valores e significados que se desenvolveram a partir do esforço das pessoas escravizadas. Neste sentido, houve tanto a presença de indivíduos das nações originais que foram combatidos e escravizados durante as guerras promovidas pelos atores colonizadores quanto aqueles trazidos à força do continente africano em função de um dos principais processos mercantis realizados pelos representantes da burguesia da época.

O professor pleno da UEFS, Erivaldo F. Neves (2015a, p. 36), contradiz o que denomina de “historiografia tradicional, fundamentada em relatos de cronistas coloniais”. De acordo com Neves, a pecuária que se desenvolveu no sertão da Bahia também se utilizou da escravidão para ocupar o território do interior do Estado20. Neves (2015a, p. 36) afirma que foram ignoradas

20 Neves refere-se à obra de Luiz Vianna Filho (1946, p. 126), para quem “o sertão não foi hostil ao Negro. A sua

organização econômica, no entanto, repeliu o escravo negro. (…) dentro da economia rudimentar das caatingas e dos campos de criação, foi um elemento deslocado”. Entre os fatores para os quais Vianna justifica isso era “o alto preço” do escravo negro, “em desacordo com a pobreza das explorações da região. (…) a própria natureza dos serviços locais, reclamando apenas limitado número de trabalhadores afeitos ao conhecimento geográfico dos taboleiros sem fim, e destinados a uma constante mobilidade no rastro dos animais tresmalhados. Por último a impossibilidade duma severa fiscalização, como a que exerciam nos canaviais e nas minas, os feitores atentos. Tudo conspirava contra o regime da escravidão negra. Caro, ignorando a região, sempre disposto à fuga o negro não

“particularidades da evolução do sistema escravista e a sua capacidade de adaptação às circunstâncias de uma policultura que associava o trabalho escravo à meação e ao campesinato nas caatingas e serrados do semiárido e de uma pecuária escravista”.

No sertão da Bahia, “os plantéis de escravos eram, em geral, pequenos, comparados aos do Recôncavo”(NEVES, 2015a, p. 36). “O trabalho escravo constituíra a principal força de trabalho, empregada na mineração, na policultura, na pecuária, no comércio, no transporte de mercadorias e nos ofícios mecânicos (ferreiro, carpinteiro, sapateiro, alfaiate, barbeiro, músico), em Rio de Contas” (NEVES, 2015a, p. 37).

Para Neves, de acordo com os inventários de fazendeiros, todas as atividades econômicas e domésticas no sertão da Bahia eram realizadas por meio de mão de obra escravizada. Baseado nesta fonte de dados, o autor contradiz parte da historiografia tradicional que insiste na tese do emprego de mão de obra de descendentes de indígenas livres realizando a pecuária nos sertões para a ocupação. Neste caso, o autor confirma a tentativa de invisibilizar os massacres de tribos indígenas que já haviam sido impelidas a migrar para o interior após a conquista da faixa litorânea pelos colonizadores.

É importante considerar que dos 27 territórios de identidade do Estado, a Chapada Diamantina e o contíguo de Irecê reúnem, aproximadamente, 30% do número de comunidades quilombolas de descendentes de africanos escravizados e comercializados na Bahia certificadas pela organização responsável. A escravidão teria sido amplamente utilizada para a ocupação e desenvolvimento do sertão da Bahia. O processo de transformação do modelo de produção escravagista para a exploração campesina ou de trabalhador autônomo livre é muito mais recente e pode ter se desenvolvido apenas após a proibição do tráfico de pessoas e de maneira mais intensiva a partir da segunda metade do século 20, com o fracionamento das propriedades a partir de processos de sucessão hereditária.

Consideramos que somente a partir daí passou a haver uma alteração significativa no padrão da relação de trabalho, elemento fundamental para a compreensão das estruturas das economias das culturas tradicionais relacionadas especificamente à agricultura, cuja dimensão também rebate diretamente nos demais ofícios necessários para a ocupação e fixação no território. “Essa frequência aumentou, na proporção em que se fracionaram as unidades produtoras e definiu

oferecia no sertão, as mesmas vantagens que dêle fizeram trabalhador indispensável no litoral. Excetuadas as regiões auríferas e diamantíferas, a cuja exploração se adaptava perfeitamente, não houve para êle um lugar na vida sertaneja. Um ou outro existia (…). Nas demais atividades, o precioso colaborador do branco foi o índio, e depois, ao se alastrar a miscigenação, o mameluco ou curiboca. Êstes foram os que fizeram o sertão, integrando-se na sua vida, (…) A pobreza e o isolamento enrijaram a fibra do sertanejo. (…) Adaptou a sua vida às pequenas margens de ganho. Trocou o fausto pelo prazer do mando. Dêsse sertão de economia modesta, de hábitos simples (…)” (VIANNA FILHO, 1946, p. 126).

para a região um perfil minifundiário” (NEVES, 2015a, p. 37).

Considerando as limitações climáticas conhecidas para a efetivação de qualquer modelo produtivo intensivo, é de se imaginar as condições nas quais eram obrigados a permanecer na terra os trabalhadores e administradores das grandes fazendas. Não seria difícil concluir que a condição de vida das famílias cujos integrantes atuavam em regime de servidão dos senhores e eram obrigados a resistir aos prolongados períodos de seca na mesma terra que era cativeiro, sem recursos. Conforme relatos de ensaios de autores do território, até meados do século XX ainda era comum encontrar na beira das estradas cadáveres de pessoas que sucumbiam durante os processos migratórios por causa da escassez de chuvas.

Estas formas de pessoas e caminhos associados às funções estabelecidas, em geral, mercantis, das nações e povos colonizadores, promoviam os fluxos nas dimensões que se desenvolviam no espaço. Consideramos que estes fluxos ainda são influentes nas dinâmicas atuais, em especial, a econômica, que, hoje, podemos analisar enquanto campo da cultura e do patrimônio imaterial. São eles que determinaram a situação nas quais resistem os trabalhadores detentores dos conhecimentos tradicionais relacionados à construção no território. Para a observação do território, os efeitos das realizações políticas históricas também são determinantes para tentar verificar como a totalidade se dá na Chapada Diamantina.

Conforme os processos sucessórios subdividiram as camadas da dimensão da propriedade privada vinculada aos espaços de terra, a mão de obra empregada também manteve-se escrava e em alguns casos de trabalhadores diaristas, articulando escravidão, meação e campesinato. Apesar de ser menos frequente e menos evidente, ainda existem trabalhadores em condições de trabalho análogas às da escravidão no território21. Apesar disso, é mais frequente que os trabalhadores que vivem na Chapada Diamantina tenham contato com este tipo de relação de abuso quando precisam migrar para tentar algum trabalho em regiões nas quais a presença de órgãos fiscalizadores é menos atuante.

Já o sistema de meação ainda é frequente no território e no município de Morro do Chapéu. Durante a pesquisa de mestrado do pesquisador, diversos relatos davam conta da ocorrência de divisão da produção obtida pelo produtor arrendatário da área com o proprietário, no caso daqueles trabalhadores que não tinham a propriedade da terra ou que arrendavam terras para produzir mais. É possível afirmar que o sistema gera sensação de prejuízo para os trabalhadores, que se responsabilizam por todo o processo de produção e ainda têm que dividir o resultado do

21 Em visita a um lote rural na divisa dos municípios de Lençóis e Lajedinho, em meados de 2013, o posseiro explicou

que pagava o mínimo possível ao rapaz que mantinha trabalhando na área. Este sujeito vivia desde criança nas redondezas da localidade e se responsabilizava pela única atividade econômica que estava sendo realizada no lote na ocasião, trabalhando dentro do forno para a produção de carvão com as últimas árvores que restavam da área de aproximadamente 40 hectares. Na época, a remuneração mensal do trabalhador era pouco mais de R$200.

trabalho e do processo de gestação da safra com aquele que não fez nenhum esforço para obter metade do que fora produzido.

O campesinato é uma categoria que julgamos representativa para compreender a situação dos trabalhadores aqui reconhecidos como portadores dos conhecimentos relativos aos saberes e fazeres do patrimônio agrícola, por exemplo, parte estratégica da economia dos saberes tradicionais do território. A atividade também é complementar à rotina dos trabalhadores da construção civil tradicional identificados pelo INRC, não apenas para garantir a subsistência, mas como atividade dinâmica. Em tempos de chuva, os trabalhadores se dedicam ao plantio. Em tempos de seca, a dedicação é à construção e ao manuseio do barro.

Detendo a propriedade da terra – mesmo que por vezes isto não seja necessário para satisfazer as necessidades básicas da unidade familiar e que o trabalhador se veja obrigado a vender o dia de trabalho para outros proprietários –, o nível potencial de organização dos agricultores familiares é mais qualificado.

Possuir a propriedade do meio de produção oferece uma garantia maior de que o trabalhador não terá que deixar de utilizar os conhecimentos ancestrais que detém para obter remuneração em outros tipos de trabalhos, como pode ser o caso do trabalhador que atua no sistema de “meia”. Nos períodos em que as condições climáticas não exigem que os proprietários de terra remunerem outros trabalhadores por diárias para conseguirem realizar a produção, os trabalhadores autônomos que também não são proprietários necessariamente se veem obrigados a buscar trabalhos em outras áreas, seja no centro urbano mais próximos ou em cidades mais distantes, tendo que migrar para satisfazer esta necessidade. Em muitos casos, o emprego no setor da construção, a partir de outros conhecimentos adquiridos durante a vida a partir de processos de maestria e aprendizagem, em geral, é que oferecerá as condições mínimas de resistência.

Em virtude da importância do campesinato, é importante considerarmos que a agricultura é a atividade na qual houve menos atuação dos órgãos públicos relacionados ao reconhecimento do patrimônio na Chapada Diamantina.