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3. Política do patrimônio cultural e ambiental na Chapada Diamantina e economia

3.2 Tensões entre as perspectivas do patrimônio material e imaterial

Consideramos que fatores como a reterritorialização da influência dos produtos industrializados, a repressão policial para a aplicação de normas ambientais pouco conhecidas pela estrutura do exercício de saberes tradicionais e a interrupção de práticas de maestria e aprendizagem colocam em risco a transmissão dos conhecimentos e práticas das técnicas tradicionais.

Ao considerarmos os mestres da construção tradicional identificados pelo INRC-CD enquanto atores econômicos do setor e do campo do patrimônio cultural verificamos que uma das vertentes de participação destes atores nos contextos de seleção, na “tarefa de viabilizar o desenvolvimento cultural por meio de incentivos do estado, decorrentes de lei federal” (SOARES, 2009, p. 127), foi parcialmente atendida. A maior problemática da atividade da construção tradicional, no entanto, é na vertente ambiental, de acordo com a qual adota-se “o meio ambiente como princípio da ordem econômica e indica a obrigação de realização de estudos de impacto ambiental para empreendimentos potencialmente lesivos, atribuindo responsabilidade objetiva pelos

danos causados aos bens em decorrência de atividade pública ou privada” (SOARES, 2009, p. 127). No caso da atividade, estendida aos trabalhadores e praticantes da construção tradicional de uma maneira geral, atualmente na Chapada Diamantina é imposta a mesma exigência de cuidados ambientais que deveria valer para empreendimentos com dinâmicas de obtenção de lucros mais intensivas. No geral, estes elementos possuem estrutura para lidar com a burocracia pública.

Por outro lado, mesmo havendo dispositivos legais que resguardam a atividade de impacto ambiental mínimo, praticada por praticamente todos os extratores de materiais e trabalhadores da construção tradicional, a totalidade da mão de obra no território atua com o espectro do medo em ser alvo de operações policiais. Os órgãos públicos que poderiam resguardar a continuidade das atividades dos mestres e trabalhadores, garantindo a territorialização da influência e dos saberes praticados, até o momento, não realizaram atividade significativa em prol do patrimônio cultural representado. Por outro lado, uma série de operações de fiscalizações policiais foram realizadas no território, realizando autuações de pequena, média e grande escala.

A realização do INRC da construção tradicional ainda não representou também uma mudança significativa na postura do Ministério Público da Bahia no sentido de favorecer a valorização das dimensões simbólicas promovidas pelos mestres e trabalhadores da construção civil tradicional na Chapada Diamantina. A unidade do órgão instalada no território, o Núcleo de Defesa da Bacia do Rio Paraguaçu (NURP) é integrante do Centro de Apoio às Promotorias de Meio Ambiente e Urbanismo, organismo auxiliar aos órgãos de execução do MP, do qual também faz parte o Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (Nudephac).

A preocupação pela intensificação da territorialização dos saberes e fazeres relacionados à construção civil tradicional aos níveis anteriores aos dos processos de desterritorialização da prática e reterritorialização dos elementos industrializados não se dá apenas pela importância do nível de emprego e renda do segmento tradicional, com o qual lidamos nesta pesquisa. Com a realização do INRC da construção tradicional na Chapada Diamantina, torna-se uma obrigação pública e privada garantir a “perspectiva da equidade intergeracional” (SOARES, 2009, p. 127). A razão desta pesquisa integra este esforço, tendo em vista que “os estudos, a sistematização dos dados, a utilização dos instrumentos nominados ou não para a tutela dos bens e a indicação de valores de referência para bens culturais (...) devem (...) considerar a fruição imediata e o acesso e uso das gerações futuras” (SOARES, 2009, p. 127).

Buscar por meio das instituições de ensino os argumentos para expor o risco da perda da influência dos elementos do patrimônio cultural no território pode também fomentar a mobilização dos atores jurídicos que deveriam garantir a fruição da produção cultural em diferentes níveis. Compreendemos que o debate econômico inerente ao ofício dos mestres e trabalhadores do

segmento e às formas de apoio à produção cultural, via realização de relações financeiras para obtenção de renda, formas solidárias de busca de autonomia financeira ou promoção dos valores simbólicos, complementam a realização do INRC-CD a partir do estudo dos resultados da pesquisa. O debate é importante tendo em vista os riscos de desterritorialização total dos elementos da construção tradicional e reterritorialização dos elementos industrializados.

Consideramos ainda que a consolidação das atividades tradicionais da construção civil enquanto elementos do patrimônio cultural por meio do INRC-CD insere os saberes e atores humanos diretamente no foco das diretrizes constitucionais. Reconhecendo os saberes vinculados aos ofícios como propriedade dos mestres e trabalhadores e estes como detentores do conhecimento necessário para a continuidade das práticas e significados consagramos não só a defesa do meio ambiente, aspecto notável quando comparamos o padrão de consumo da atividade tradicional com aquela de espaços em que a territorialização dos elementos industrializados da construção civil é mais intensa. Atende-se também a demanda pela função social da propriedade como princípio “da ordem econômica, determinando que o Estado é o agente normativo e regulador das atividades econômicas” (SOARES, 2009, p. 128).

Conforme vimos, foi há menos de duas décadas que o patrimônio cultural imaterial passou a merecer a atenção do poder público federal brasileiro. A diferença do período de dedicação dos órgãos públicos dedicados ao patrimônio fez com que o país tenha relativamente poucos bens imateriais registrados na comparação com os bens tombados. Consequentemente, “o campo de disputas que compreende o patrimônio não permitiu que o país contemplasse de forma homogênea a diversidade cultural e histórica que compõe a realidade brasileira” (HORTA, 2014a, p. 68).

Nas primeiras décadas da política cultural, o patrimônio é especificamente eleito para um público em formação que passa a admirá-lo a partir da influência das normas recém-definidas. O público que tenta ser agraciado é o de “um homem novo, construído a partir do binômio educação e trabalho” (SANTOS, 1996, p. 80). O fato da gestão da recusa ao anteprojeto para o Sphan preparado por Mário de Andrade é, “em partes, a recusa do homem antigo, que habitava o Brasil antes de sua colonização, ou então do homem escravizado, trazido à força e desprovido de bens materiais, que carregou consigo apenas o que possuía de imaterial” (HORTA, 2014a, p. 69), tal qual os detentores dos saberes relacionados aos principais ofícios que contribuíram com a formação territorial do sertão, em especial, a construção tradicional.

E é nessa abrangência, que as figuras individuais, no momento da criação do organismo fe- deral de proteção ao patrimônio, agem para a criação do acervo nacional. Como campo de disputas, uma arena ideal para uma peleja sem testemunhas, onde o Estado impõe suas von- tades, sob a tutela de intelectuais oriundos de classes hegemônicas (HORTA, 2014a, p. 70).

Os tombamentos realizados em Rio de Contas integram a primeira fase de atuação do Sphan. A segunda fase representativa da política para o patrimônio cultural brasileiro só teria se desenvolvido entre as décadas de 1960 e 1980, ao qual pertence o tombamento de Lençóis. Este teria também sido o período de intensificação do uso do conceito de cultura popular pelo órgão, processo que coincidia com a ampliação da visão nacionalista pretendida durante o período do regime militar autoritário. Os bens tombados teriam feito parte dos pilares de edificação destes ideais.

No entanto, é importante ter atenção a esta periodização das fases consagradas da política patrimonial organizada por Maria Cecília Londres Fonseca (2009), adotada pelo próprio Iphan. Isso porque a definição tenderia “a ofuscar a presença de outros atores nos primórdios da preservação” (WILLIAMS, 1997, p. 375) do patrimônio.

Na organização proposta por Londres Fonseca, além da fase heroica, inicial, a política desempenhada pelo Iphan poderia ainda ser caracterizada pela fase moderna, pós Estado Novo, ambas dedicadas intensamente ao patrimônio material. Haveria ainda a fase dos tombamento realizados entre as décadas de 1970 e 1990.

A fase mais recente da política do patrimônio nacional teria acontecido a partir da década de 1990, já sob influência de diversas convenções internacionais realizadas sobre o tema nas décadas anteriores e os avanços já citados trazidos pela Constituição de 1988. O novo processo teria sido influenciado pelas reivindicações por novos modelos de salvaguarda que incluiriam o registro do patrimônio imaterial, dos bens intangíveis. Os estímulos à realização do registro do sistema tradicional agrícola do rio Negro e os inventários dos mestres da construção tradicional são evidências da mudança de postura do órgão responsável pelo patrimônio nacional. Seriam também estudos de saberes relativos à formação social e territorial do país e que passaram a ser valorizados enquanto patrimônio brasileiro.

Em texto inédito intitulado “O patrimônio cristalizado”, a pesquisadora do INRC-CD, Joana Horta, revela que as políticas de patrimônio cultural desta etapa estão inseridas no processo da mun- dialização da cultura como instância universal. No Brasil, contratos com o Banco Internacional de Desenvolvimento (BID) sustentam o programa Monumenta, de recuperação do patrimônio urbano, que atua em cidades históricas protegidas pelo Iphan, a exemplo de Lençóis, promovendo obras de restauração e recuperação dos bens tombados e edificações. A política patrimonial não teria se de- senvolvido caso novos modelos de salvaguarda do patrimônio não tivessem sido reivindicados.

A instituição da metodologia do INRC foi realizada em 2000, três anos antes da convenção da Unesco que tratava sobre o patrimônio imaterial. No Brasil, o campo teórico do patrimônio

imaterial teria suas bases na noção de referências culturais desenvolvida na década de 1970 pelo Centro Nacional de Referências Culturais (CNRC) e que, “posteriormente, com a criação da Fundação Pró-Memória, se constitui domínio específico do campo patrimonial” (HORTA, 2014a, p. 71). A tensão entre o movimento de defesa das referências culturais do CNRC e o movimento que privilegiava o patrimônio edificado em “pedra e cal” pautou a política do patrimônio imaterial no país (OLIVEIRA; FREIRE, 2005, p. 154).

Após a instituição do registro do patrimônio imaterial como instrumento de preservação, a chancela da paisagem cultural surge como um dos mais recentes instrumentos de preservação do patrimônio cultural. Entre outras ferramentas concebidas no desenvolvimento do campo patrimonial na transição para este século XXI, permite-se um olhar abrangente sobre o patrimônio. As ações, porém, continuam indissociáveis às relações com o Estado. Os planos de salvaguarda para o patrimônio imaterial são outra ação considerada avançada para as políticas para o patrimônio cultural.

Por meio do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), o Estado viabiliza projetos de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do patrimônio cultural. O programa foi criado pelo decreto nº 3.551, de 2000, e é considerado o principal instrumento para tornar possível o desenvolvimento das linhas de ação para o registro do patrimônio imaterial. O decreto “reconhece a face imaterial do patrimônio, institui o registro; o PNPI, que atua na identificação, inventário e valorização do patrimônio; e uma metodologia de inventário, o INRC, através de seu manual de aplicação, elaborado pelo departamento de identificação e documentação do Iphan” (HORTA, 2011, p. 12). Enquanto programa de fomento, o PNPI estabeleceria parcerias com órgãos governamentais, universidades – a exemplo do contrato com a UFBA para realização do INRC-CD –, ONGs, instituições privadas e agências de fomento (HORTA, 2011, p. 12).

De acordo com Horta (2011, p. 11), o patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, “é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana”.

O procedimento metodológico do INRC pressupõe uma etapa inicial do trabalho para a realização de pesquisas em fontes secundárias e em documentos oficiais e entrevistas para o mapeamento dos bens existentes nos sítios de estudo. A fase seguinte consiste na identificação e documentação por meio da aplicação de formulários estruturados, com o intuito de descrever e tipificar os bens selecionados; mapear as relações entre os itens identificados, assim como

identificar novos bens e práticas relevantes. “Identificam-se, portanto, os aspectos básicos dos processos de configuração da manifestação, seus executantes, mestres, aprendizes e público, assim como suas condições materiais de produção” (SANT'ANNA, 2003, p. 54).

Para Leonardo Castriota (2009, p. 208), a ampla abordagem a respeito do patrimônio imaterial dá margem a críticas: “o antropólogo Manuel João Ramos anota que uma concepção demasiado restritiva do conceito de 'patrimônio cultural' por parte da Unesco teria conduzido 'por reação de inversão' a uma questionável autonomização do patrimônio intangível”. A cristalização observada pelo português Manuel João Ramos não foge à reflexão sobre o papel do Estado na eleição do patrimônio, interpreta Castriota (2009, p. 208):

A seu ver, faltaria uma necessária discussão crítica multidisciplinar a respeito dessas ações, sendo o processo de discussão e aprovação dos mecanismos legislativos e de implementação de um programa de 'classificação patrimonial' promovido pela Unesco 'um misto de voluntarismo coletivo, de paternalismo politicamente correto e de tensão negocial entre duas fracções de representantes nacionais 'norte VS sul'.

Ao analisar a experiência mexicana para as políticas públicas de patrimônio cultural, no cenário da contemporaneidade, Néstor Canclini (1994) sugere uma nova postura frente a aspectos como o desenvolvimento urbano, a mercantilização, as indústrias culturais, para se pensar a reformulação do conceito de patrimônio cultural. “Que não só devemos aceitar, por serem as condições em que hoje os bens históricos existem, mas também porque contribuem para repensar o que devemos entender por patrimônio histórico e por identidade nacional” (CANCLINI, 1994, p. 95).

Para o autor, nesse novo contexto é fundamental que o patrimônio cultural seja observado e estudado do ponto de vista das “desigualdades sociais”. A existência de uma “hierarquia dos capitais culturais”, justifica inclusive a desigualdade ao acesso ao patrimônio preservado ou conservado. Entende-se, assim, que o patrimônio deve ser estudado como espaço de luta material e simbólica entre classes, etnias, grupos:

Os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais representativos da história local e mais adequados às necessidades presentes do grupo que os fabrica. Constituem, nesse sentido o seu próprio patrimônio. (...) Têm, no entanto, menor possibilidade de realizar várias operações indispensáveis para converterem esses produtos em patrimônios generalizados e amplamente reconhecido: acumulá-los historicamente (sobretudo quando sofrem de pobreza ou repressão), convertê-los numa base do saber objetivando expandi-los mediante uma educação institucional e perfeccioná-los através de uma investigação e experimentação sistemática (CANCLINI, 1994, p. 97-98).

Essas posições incitam a necessidade de se empreender estudos sobre o patrimônio, com uma nova orientação e a construção de políticas para a preservação e salvaguarda. A política cultural deve buscar resgatar objetos culturalmente representativos através de um olhar interdisciplinar. “Precisamos de novos instrumentos conceituais e metodológicos para analisar as interações atuais entre o popular e o de massa, o tradicional e o moderno, o público e o privado” (CANCLINI, 1994, p. 113).

Os mecanismos criados para identificar, difundir, proteger e conservar a cultura tradicional e popular do patrimônio imaterial podem ser compreendidos como avanços da política brasileira e internacional para o campo. Os dispositivos dos inventariados, de maior interesse da pesquisa, assim como os mapeamentos de referências culturais, “registros etnográficos e audiovisuais de divulgação e valorização dos saberes e produtos dessas manifestações” (SANT’ANNA, 2008, p. 7) contribuem para salvaguardar os bens relativos aos modos de fazer e às formas de sociabilidade, por exemplo. São iniciativas que atendem a necessidade de geração de “ações de produção de conhecimento, de documentação, de sensibilização da sociedade, de promoção e de apoio a condições sociais e materiais de existência” (SANT’ANNA, 2008, p. 7).

Neste caso tratam-se de bens culturais, de processos ou de bens "vivos", “cujo principal repositório é a mente, e cujo principal veículo é o corpo humano” (SANT’ANNA, 2008, p. 7), a exemplo do ofício da construção tradicional, mas também daqueles que consideramos fundadores da identidade sertaneja do alto sertão baiano.

Processos cuja existência depende diretamente dos indivíduos, grupos ou comunidades que são seus detentores ou portadores – e, com isso, qualquer possibilidade de fruição, de acesso ou de uso. A salvaguarda nesse campo deve portanto estar mais orientada para a valorização do ser humano e para o registro do seu saber do que para a preservação ou valorização de objetos e produtos (SANT’ANNA, 2008, p. 7).

O registro de bens imateriais pode ser compreendido como o dispositivo máximo de salvaguarda do patrimônio imaterial, o “instrumento que apoia uma nova política de seleção e preservação do patrimônio, que, ao focar o ser humano, tem que ser, por definição, inclusiva e democrática” (SANT’ANNA, 2008, p. 7). O registro legitima o reconhecimento dos bens culturais vivos enquanto patrimônio imaterial nacional e representa um dispositivo de preservação “adaptado à natureza dinâmica” (SANT’ANNA, 2008, p. 7) das manifestações. A divulgação do conhecimento relacionado aos bens é um dos principais objetivos do dispositivo e garantido a partir da elaboração de “dossiês de Registro” (SANT’ANNA, 2008, p. 7).

Num dos textos que trata das limitações do conceito de patrimônio que vigorou por décadas na atuação do órgão responsável pelo patrimônio no país, Maria Cecília Londres Fonseca

trata da falta de registros em geral dos atores que faziam parte da formação da época colonial no país, a exemplo dos trabalhadores em geral, “mercadores, escravos domésticos, negros de serviço e alforriados, enfim, da sociedade complexa e multifacetada” (FONSECA, 2009, p. 57). Quem costumava incluir os personagens “excluídos”, principalmente, em reproduções visuais produzidas, eram sobretudo “viajantes estrangeiros”, cujo olhar era movido “pelo interesse em documentar o que lhes parecia peculiar” (FONSECA, 2009, p. 57), a exemplo de Debret e Hildebrandt.

Citando o caso do período no qual o Rio de Janeiro foi a capital do país, a autora lembra que mesmo tendo sido “uma cidade quase africana durante a primeira metade do século XIX, essa informação não ficou registrada nos bens que ali são identificados como patrimônio cultural brasileiro, nem na leitura que deles fazem os órgãos de preservação” (FONSECA, 2009, p. 57). O cais do Valongo é um exemplo de sítio arqueológico identificado após intervenções urbanas na atual capital do Estado homônimo. Mesmo com a importância histórica verificada, só foi possível torná- lo parte do patrimônio da Unesco e evitar que fosse suprimido ou descaracterizado após intensa mobilização do movimento negro. Há outros casos de bens tombados do país que envolveriam dimensões simbólicas de modo protagonista, mas que tiveram selecionados apenas os aspectos materiais relacionados ao espaço de realização chancelado.

De acordo com a autora, a limitação da política cultural para o patrimônio aos processos de tombamento durante aproximadamente 60 anos, mesmo no caso de bens que evidenciavam valores simbólicos mais determinantes que o padrão estético material, imprimiu o ideal conservador e elitistas às políticas. “Os critérios adotados para o tombamento terminam por privilegiar bens que referem os grupos sociais de tradição europeia, que no Brasil, são aqueles identificados como as classes dominantes (FONSECA, 2009, p. 61-62).

Conforme aconteceu com manifestações culturais na Chapada Diamantina, é possível que diversos bens e práticas simbólicas tenham deixado de e no país durante o século XX sem que houvesse qualquer mecanismo de proteção e salvaguarda enquanto patrimônio. Isso aconteceria pois não havia como considerar o “valor excepcional” que representavam. Assim, a questão do patrimônio imaterial “é motivada pelo interesse em ampliar a noção de 'patrimônio histórico e artístico'" (FONSECA, 2009, p. 63). Para que a função protetora para um bem cultural seja cumprida, é necessário que seja antecedida de ações de identificação e documentação.

Além disso, é importante que a estas ações sigam iniciativas de promoção e difusão, “que viabilizam a reapropriação simbólica e, em alguns casos, econômica e funcional dos bens preservados” (FONSECA, 2009, p. 65). São ações que se encontrariam fundamentadas em critérios não apenas técnicos, mas também políticos, tendo em vista que a importância dos bens culturais seria essencial para que a função de patrimônio se desse de forma integral, a fim de fazer os grupos

da sociedade se reconhecerem no repertório.

É o caso do trabalho realizado pelo INRC-CD. Apesar de uma iniciativa do tipo exigir uma equipe interdisciplinar de pesquisadores, o núcleo duro do corpo técnico era composto por arquitetos, incluindo os dois coordenadores do trabalho. Mesmo que fossem sensíveis os aspectos imateriais vinculados à arquitetura e a outras referências culturais, seria de se esperar que a importância relativa às técnicas construtivas fosse mais evidente. A consultoria do trabalho, no entanto, foi realizada pela arquiteta Márcia Sant'anna, que dirigiu o departamento de patrimônio imaterial do extinto Ministério da Cultura.

A equipe de pesquisadores foi composta por duas arquitetas, uma especialista em patrimônio imaterial com atuação no território – a única da equipe que possuía trabalho acadêmico sobre o patrimônio na Chapada Velha – e apenas uma vaga foi ocupada por dois antropólogos que