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1. Poder e cultura: contradições da teoria e da prática

1.5 Movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização

Conforme visto, um dos pesquisadores que abordou a questão do território numa perspectiva integradora é o gaúcho Rogério Haesbaert da Costa. De acordo com o autor, a territorialidade seria o conceito mais adequado para “enfatizar as questões de ordem simbólico- cultural”; “a dimensão simbólica do território” (HAESBAERT, 2007, p.73), comparando o termo ao de identidade territorial (HAESBAERT, 2007, p. 74). Mesmo não sendo possível definir o território sem considerar também a dimensão material, econômica, as análises que utilizam a categoria

passaram a valorizar cada vez mais o caráter simbólico. Assim, o poder não envolveria apenas “as relações sociais concretas, mas também as representações que elas veiculam e (…) produzem” (HAESBAERT, 2007, p. 93).

Portanto, o território “resulta da interação diferenciada entre as múltiplas dimensões desse poder, desde sua natureza mais estritamente política até seu caráter mais propriamente simbólico, passando pelas relações dentro do chamado poder econômico, indissociáveis da esfera jurídico- política” (HAESBAERT, 2007, p. 93). Nos casos de conflitos de caráter étnico e religioso e cunho territorial a dimensão simbólico-cultural do poder seria a que se impõe com muita força, por exemplo. Do mesmo modo, o território também é fruto de relações de dominação e apropriação, que seguem padrões que variam do político-econômico ao mais cultural e simbólico, em dinâmicas complementares.

Haesbaert da Costa atribui aos estudos de Michel Foucault e de Giles Deleuze a diferenciação de como a dominação no mundo foi alternada na transição entre as sociedades disciplinares, ou modernas, para a “sociedade de controle”. De acordo com o primeiro, a dominação dos territórios-zonas, implicavam o controle sobre áreas, enquanto para Deleuze a dinâmica alterou- se para o controle sobre elementos como “fluxos, redes, conexões“ (HAESBAERT, 2007, p. 96). Territorializar-se significaria “criar mediações espaciais que nos proporcionem efetivo 'poder' sobre nossa reprodução enquanto grupos sociais (…), poder este que é sempre multiescalar e multidimensional, material e imaterial, de 'dominação' e 'apropriação' ao mesmo tempo” (HAESBAERT, 2007, p. 96-97).

Na tarefa de analisar as contribuições recíprocas entre o poder e a obra de Deleuze e Félix Guatarri, Haesbaert da Costa considera o emprego do conceito de desterritorialização, concentrando-se na valorização das relações simbólicas de poder. Para o autor, o pensamento filosófico dos autores se diferenciaria da ciência, pois, ao contrário desta, “que busca especificar e estabilizar domínio do real, os conceitos na filosofia intervêm em problemáticas para desestabilizar, criando novas conexões” (HAESBAERT, 2007, p. 110). A geografia, assim, tomaria um papel central no pensamento de Deleuze e Guatarri, “num movimento centrado no movimento, nas conexões” (HAESBAERT, 2007, p. 111). Tratar-se-ia da valorização dos devires – a “criação do novo” –, que seriam pertencentes à geografia, distinguindo-se da história.

Haesbaert da Costa ressalta ainda o modelo rizomático, das multiplicidades – que também caracterizaria parcialmente a sociedade –, com o qual Deleuze e Guatarri constroem o pensamento. O modelo também se relacionaria com o arborescente, característico dos centros de poder (HAESBAERT, 2007, p. 114), sendo, assim, complementares. Enquanto as relações nas sociedades primitivas são mais marcadas pelo modelo do rizoma, estas teriam também “núcleos de dureza, de

arborificação, que tanto antecipam o Estado quanto o conjuram. Inversamente, nossas sociedades continuam banhando num tecido flexível sem o qual os segmentos duros não vingariam” (DELEUZE; GUATARRI, 1996, p. 82). De acordo com os filósofos, os indivíduos seriam, então, atravessados pelas segmentaridades molar e molecular, que seriam distintas, mas inseparáveis. “Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica (DELEUZE; GUATARRI, 1996, p. 83).

As sociedades capitalistas modernas possuiriam “uma segmentaridade dura, onde a organização social é sobrecodificada por um aparelho despótico e transcendente de poder” (HAESBAERT, 2007, p. 135), em especial o Estado. Já as territorialidades pré-capitalistas possuem agenciamentos “maquínicos de corpos (…) e coletivos de enunciação” (HAESBAERT, 2007, p. 135) fixados na terra7. A partir da emergência do Estado e do poder do capital, processos de desterritorialização das identidades pré-capitalistas territorializadas passam a acontecer em dinâmicas mais intensas. Ou seja, a influência dos agentes estatais ou capitalistas passaram a suplantar de forma avançada as territorialidades, incluindo os valores simbólicos e a cultura, das comunidades consideradas tradicionais.

Além das dinâmicas de desterritorialização, haveriam ainda as de territorialização e reterritorialização (FERNANDES, 2005, p. 28), que, da mesma forma, apresentam movimentos de influência de atores aos territórios ao longo no tempo. No caso anteriormente citado do Estado, é possível considerar que este também se “reterritorializa no processo de sobrecodificação, ou seja, constrói novos agenciamentos, sobrecodifica os agenciamentos territoriais que constituíam as sociedades pré-capitalistas, configurando novos agenciamentos maquínicos de corpos e agenciamentos coletivos de enunciação” (HAESBAERT, 2007, p. 137-138), num movimento de mão dupla.

Passando a termos mais concretos, Haesbart da Costa (2007, p. 138) define que a “vida é um constante movimento de desterritorialização e reterritorialização (…), estamos sempre passando de um território para o outro, abandonando territórios, fundando novos”. O operário que se relaciona com os corpos maquínicos e os agenciamentos coletivos de enunciação do chão de fábrica, que, então, se desterritorializa, neste caso, sem destruir o território abandonado, para seguir ao território da família, no qual os corpos e os enunciados são outros.

De outro modo está o boia-fria reterritorializado na periferia da cidade. As diferentes ocupações que pode realizar, possivelmente, em caráter informal, fazem-no transitar por diferentes

7 “A unidade primitiva, selvagem, do desejo e da produção, é a terra. Porque a terra não é apenas o objecto múltiplo e

dividido do trabalho, mas também a entidade única indivisível, o corpo pleno que se rebate sobre as forças produtivas e se apropria delas como se fosse o seu pressuposto natural ou divino” (DELEUZE; GUATARRI, 2004, p. 144).

territórios simbólicos, até, enfim, ser desterritorializado da periferia urbana e reterritorializado na função de lavrador por meio do processo da colheita na zona rural, onde encontrará códigos e corpos já conhecidos e com os quais se relacionará de diferente modo que no meio urbano.

De maneira semelhante estão os profissionais da construção do território da Chapada Diamantina que migram temporariamente para áreas metropolitanas de todo o país para realizar serviços na área, retornando depois ao território de origem. Em alguns casos, o território do sertão é também o território original do construtor, no qual estabelece a maior parte das relações familiares e de afetividade e onde opera outras funções, como a de roceiro, criador, entre outras.

A complexidade dos desafios para o estudo das relações entre cultura e poder pode ser evidenciada pelas discussões que se dão ao redor do território e os processos relacionados a este, conforme citado. Na análise da desterritorialização numa perspectiva cultural, por exemplo, Haesbaert da Costa ressalta o exemplo da cidade de Tijuana, no México, utilizado pelo antropólogo argentino Néstor García Canclini8, para dar conta dos processos de “reterritorialização no hibridismo” (HAESBAERT, 2007, p. 224). A mistura entre os elementos culturais latinos e anglo- saxões do lugar seriam evidência de um caso de multiterritorialidade. As migrações também seriam um processo multidimensional a ser considerado, tendo em vista o potencial de des-re- territorialização das sociedades (HAESBAERT, 2007, p. 233). A multidimensionalidade e a multiterritorialidade de forma geral seriam temas estratégicos a serem analisados.

Além destes, o geógrafo relaciona como prioridades para os estudos sobre o território a atenção às dinâmicas da natureza e à questão ambiental. Visando questionar a visão antropocêntrica de que a desterritorialização é um processo humano, o autor recorda que nas sociedades tradicionais, entre elas as indígenas, algumas das relações sociais mais importantes são aquelas que se dão em relação à apropriação daquilo que denominamos natureza (HAESBAERT, 2007, p. 368). De modo semelhante, o autor indica que o amor é o que deveria estar no centro dos processos de territorialização, pela construção de espaços de apropriação e identificação social, reapropriação dos espaços, reterritorialização e apropriação prevalecendo sobre a dominação, com a valorização dos espaços “do prazer” (HAESBAERT, 2007, p. 369).

Por último, estaria o dilema da desproporção de ritmos e níveis de des-re-territorialização “entre a minoria com pleno acesso dos territórios-rede capitalistas globais, que asseguram sua multiterritorialidade” (HAESBAERT, 2007, p. 372), e a maioria das “pessoas que vivem na mais precária territorialização (…), na mais violenta exclusão e/ou reclusão socioespacial” (HAESBAERT, 2007, p. 372). Para o autor, a situação se justificaria, pois o que domina desde a passagem do século é “a complexidade das reterritorializações, numa multiplicidade de

territorialidades nunca antes vista, dos limites mais fechados e fixos da guetificação e dos neoterritorialismos aos mais flexíveis e efêmeros territórios-rede ou 'multiterritórios' da globalização” (HAESBAERT, 2007, p. 372). Será possível verificar mais à frente os fatores que tornam cada vez mais complexos os processos de des-re-territorialização do patrimônio na Chapada Diamantina.