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2. Contexto dos territórios da Chapada Diamantina e Morro do Chapéu

2.3 Localidades de Morro do Chapéu em função da construção tradicional

É importante evidenciar que seria um desafio grandioso estabelecer o território da construção civil no município sem a contribuição dos produtos do INRC-CD. Mesmo assim, a complexidade de elementos e relações que envolvem a atividade, que acontece em fusão com outras atividades essen- ciais para a reprodução da vida sertaneja, exigiu a delimitação dos ofícios que utilizam o barro como forma de facilitar a representação de um nicho da atividade geral. Assim, foi possível detalhar os elementos da estrutura física, mas também os valores das dimensões simbólicas da construção tradicional em Morro do Chapéu.

As localidades citadas são tomadas pelo fato de historicamente serem lugares de produção de materiais construtivos artesanais feito a partir do barro. Mas de forma ampla, toda edificação ou conjunto urbano e cada forma construída por meio de alguma técnica entre aquelas do campo da construção poderiam ser consideradas como parte da estrutura física da atividade. Isso é, produto da evolução técnica ao longo dos séculos de ocupação. É importante considerar também que a estrutu- ra material resultante da execução das técnicas da construção se envolvem diretamente com as de- mais estruturas simbólicas relacionadas à atividade, entre elas as estruturas de valores e significa- dos.

Assim, qualquer forma edificada, independente da função que representa na configuração es- pacial do território de Morro do Chapéu, também é uma forma da estrutura da construção civil do município. Ainda é possível dizer que a maior parte das formas que existe na atualidade foi direta- mente originada a partir da construção civil tradicional, ou derivada dela. Assim, todas as localida-

des e edificações são “nós” e fazem parte da rede estabelecida a partir da execução dos saberes e fa- zeres ligados à construção no município. Obviamente, cada edificação atende uma necessidade es- pecífica e adquire a função dedicada pelo idealizador, ou outra função estabelecida a partir do inte- resse de dado ator em certo momento da história.

As maiores obras edificadas no município, no geral, foram realizadas a partir do interesse político de dados grupos de atores que exerceram influência ao longo dos séculos de ocupação no território o qual hoje é compreendido como o município de Morro do Chapéu. No entanto, a estrutu- ra operacional da atividade da construção civil está toda concentrada e pulverizada nos conhecimen- tos e disposição dos trabalhadores do segmento. A história de formação e a consequente falta de or- ganização da categoria são fatores que determinam a fragilidade dos trabalhadores enquanto unida- de. Apesar de as empresas que executaram grandes obras terem agrupado de maneira formal con- juntos de trabalhadores em alguns momentos da formação territorial do município, a principal ca- racterística da categoria é justamente o fato de, praticamente, qualquer indivíduo em condição ativa poder exercer a função de construtor, seja homem ou mulher, de forma permanente ou temporária, em benefício próprio ou privado.

A territorialidade do construtor confunde-se com as demais identidades forjadas pelas vidas de labuta dos trabalhadores. Quase a totalidade dos mestres que atuam com o barro identificados pelo INRC da Chapada Diamantina afirmaram trabalhar em roças próprias, por exemplo, produzin- do culturas agrícolas em espaços limitados e criando pequenas quantidades de animais para possibi- litar um nível maior de autonomia para a sobrevivência da unidade familiar. Isso se torna estratégico considerando a limitação da renda obtida com a função de construtor, em especial, daqueles que atuam nas olarias, localizadas na zona rural dos municípios. Além disso, o exercício da função de trabalhador rural também contribui para obterem aposentadoria específica para a categoria de traba- lhadores rurais autônomos, dado que as funções relacionadas à construção civil, mesmo que às ve- zes tenham sido a principal função exercida pelos trabalhadores durante a totalidade da vida, não possibilitam a mesma garantia.

Por isso, o interesse da pesquisa em também caracterizar, mesmo que de maneira breve as condições de trabalho complementar na produção agrícola por parte dos trabalhadores da constru- ção civil. Da mesma forma que a maior parte da população ativa que habita a região é capaz de exercer funções da atividade da construção, a exemplo do serviço de adobeiro, ou mesmo ajudante geral, muitas atividades da agricultura são realizadas pelos moradores das comunidades rurais em geral. Por conta do elemento do acesso à aposentadoria, muitos trabalhadores autônomos que exer- cem funções em diversas atividades na lógica da vida no campo, identificam-se enquanto agriculto-

res familiares, por exemplo, dada a característica das propriedades rurais demandarem os esforços de todos os indivíduos do núcleo da família.

As condições de vida do conjunto de familiares depende muito da ocupação de cada inte- grante, do tipo de unidade rural do qual o grupo é proprietário, posseiro, arrendatário, ou na qual eventualmente vende a força de trabalho, entre outros fatores. São elementos que afetam o nível de trabalho, as condições financeiras e a situação social da família. De maneira geral, é importante considerar que são pessoas que vivem em condições que exigem grande mobilidade dentro das fun- ções de trabalho disponíveis, a depender daquela que permite maior fonte de renda ou a adoção de função estratégica para assegurar a execução de determinada tarefa e assegurar o equilíbrio da situa- ção familiar em determinada conjuntura.

Em resumo, é importante considerar os trabalhadores da construção enquanto indivíduos que vivem na mobilidade de territorialidades vinculadas ao ofício que executam, por vezes, o da cons- trução, em outras, a agricultura, entre outros, a depender da possibilidade de outras tarefas que per- mitam complementar a renda familiar. Múltiplos fatores poderiam promover a instabilidade do indi- víduo, grupo ou coletivo – no caso do sertão baiano, a questão climática é uma das mais significati- vas, podendo promover a desestruturação quase completa da organização espacial.

Uma série de dispositivos de ordem familiar e comunitária contribuíram para a permanência dos grupos que vivem historicamente na zona rural da região e do município de Morro do Chapéu nos períodos de restrição. Nas últimas décadas a garantia de uma série de elementos possibilitou uma convivência menos insegura de trabalhadores e famílias, a exemplo dos programas públicos que garantiam a construção de reservatórios de água e minimizaram a fragilidade da estrutura social camponesa às limitações climáticas.

Um conjunto de iniciativas que restringia a suscetibilidade da população aos períodos de cri- se climática promoveu a maior fixação do homem no campo em Morro do Chapéu. No entanto, é importante reconhecer que os programas públicos do tipo são, em maior parte, oriundos da ação de um dos principais atores responsáveis pela evolução econômica do Nordeste nas últimas décadas, o Estado, e jogarmos luz a algumas etapas deste processo. O economista Celso Furtado (1998, p. 52) é um dos especialistas que identifica as práticas políticas conservadoras, as quais caracterizam o “atraso político”, como a principal razão para o “atraso da economia nordestina na comparação com outras regiões do país”.

Conforme vimos anteriormente, a estrutura de elementos estabelecidos em dada localidade determina a influência das dinâmicas dos elementos entre si e de elementos de fora sobre aqueles existentes no espaço em questão. Assim, a configuração territorial de cada lugar é caracterizada pe- los fluxos que aconteceram e continuam ocorrendo. Se o conjunto de atores políticos que exerce in-

fluência sobre os elementos daquela localidade atuar em prejuízo das possibilidades de desenvolvi- mento econômico e social, consequentemente, os lugares sofrerão as consequências das decisões, dinâmica particular de uma série de localidades do território de identidade.

De acordo com Celso Furtado, entre as características que mais marcaram a economia nor- destina, em geral, até meados do século XX, a exemplo de Morro do Chapéu, estava a concentração das elites proprietárias de terras nos centros urbanos da região. No caso do município, a aquisição das grandes extensões de terras e boiadas dos coronéis pecuaristas pelos coronéis dos garimpos se dava, sobretudo, pois a população continuava a manifestar admiração pelos valores simbólicos das posses. Era a manutenção da manifestação do poder de uma ordem anterior pelos novos coronéis.

As alterações nos padrões de vida e a redução dos índices de miserabilidade no sertão nor- destino apurados no início do século XXI não são mérito de efeitos de iniciativas tomados de forma isolada. Compreendemos que o conjunto de medidas adotadas pelas diferentes instâncias do poder público, a partir do alinhamento de projetos políticos federais, do governo estadual, no caso da Ba- hia, e de organizações da sociedade civil organizada que atuam nas localidades do sertão resultaram na intensificação daquilo que o geógrafo Milton Santos (2009, p. 238) chamou de meio técnico- científico-informacional. O processo de crescimento econômico promovido, em especial, no Nor- deste, durante a primeira década do século XXI, inseriu a economia da região de forma mais intensa na lógica do mercado global e de maneira mais dependente dos atores transnacionais de mercado.

2.3.1 Territórios normativos do patrimônio cultural na Chapada Diamantina

Consideramos o condicionamento dos usos das técnicas, a produção dos objetos técnicos e as relações sociais derivadas (ANTAS JR, 2005, p. 39) e compreendemos as dinâmicas destes elementos enquanto o território entendido como norma. Tomando a esfera política como influente na criação e implementação de objetos técnicos no território, podemos considerar o conjunto das normas de uso e demandas sociais por regulação como “densidade normativa” (ANTAS JR, 2005, p. 39), considerada imensurável, uma das dimensões que envolvem a economia da cultura.

O nível de interação entre espaço geográfico e normas de interesse da pesquisa se dá na relação entre as limitações ambientais, que restringem os ofícios tradicionais, e as restrições de uso urbano, que protegem os resultados do acúmulo de conhecimentos da construção tradicional. Esperamos que as informações do INRC da atividade na Chapada Diamantina representem uma seleção apropriada e conhecimentos históricos (ANTAS JR, 2005, p. 69) suficientes para uma

análise dos níveis mais detalhados da aplicação destas normas e outras forças simbólicas que afetam as estruturas da economia dos ofícios do barro.

Conforme já vimos, as formas espaciais funcionalizam processos (SANTOS, 1985, p. 2). Assim, conseguimos identificar a relação entre formas e normas e os mecanismos de controle envolvidos, ou a regulação econômica, mas também social ou política (ANTAS JR, 2005, p. 55) as quais os ofícios da construção estão vinculados. A possibilidade de avaliarmos a economia relativa à construção civil se dá para podermos compreender qual a atual situação da atividade, tendo em vista que não atende da mesma forma os impulsos originais que promoveram seu desenvolvimento. Hoje, estão vinculadas também aos novos consumidores, num nível de competição na qual as dinâmicas e as normas do capitalismo internacional influenciam diretamente as condições de produção.

Da mesma forma, novos processos de formação territorial passaram a se desenvolver quando as normas e ações de políticas públicas produziram estímulos próprios. Essas dinâmicas, possivel- mente, também provocaram novas normas morais em escala local. É o caso das políticas culturais e a execução de programas e ações relacionadas à valorização do patrimônio material na Chapada Di- amantina. A preservação visual e estética dos centros urbanos do território, por exemplo, cuja defi- nição de parâmetros foi internalizada nos espaços de discussão e decisão dos órgãos do patrimônio, por vezes excludentes da participação da sociedade, é um exemplo promotor de novas dinâmicas.

De maneira preliminar, podemos considerar que estas normas instituídas pelo Estado provo- caram diversos efeitos físicos para a espacialidade destes lugares. A valorização de uma pretensa es- tética “original” dos centros urbanos faz com que a adoção de novos valores estéticos que emanam da influência de novas técnicas construtivas, produtos comercializados ou valores simbólicos propa- gados seja limitada. Isso restringe em parte a influência arquitetônica externa à localidade.

A sobrevalorização das edificações em detrimento dos conhecimentos de mestres de obras e trabalhadores responsáveis pela manutenção e restauro das construções e detalhes estilísticos que passaram a caracterizar a estética tradicional é elemento da contradição da execução das políticas do patrimônio na Chapada Diamantina. Mais de 30 anos após as primeiras intervenções normativas que restringiram os usos e atribuições do conjunto urbano das cidades tombadas é que se iniciou o traba- lho de reconhecimento dos saberes dos trabalhadores, que é utilizado aqui para aprofundar os senti- dos econômicos da atividade da construção tradicional no território e no município de Morro do Chapéu.

O processo de como se deu a intensificação das ações dos órgãos públicos responsáveis pelo patrimônio material na Chapada Diamantina foi organizado e pode ser apreciado mais à frente. A tentativa é a de compreender quais atores promoveram as mobilizações visando o tombamento dos sítios urbanos do território e quais interesses eram atendidos enquanto isso acontecia. Da mesma

forma, tentou-se identificar os pressupostos que permitiram a realização do INRC da construção tra- dicional no sítio da Chapada Diamantina. Abordamos como as discussões relacionadas à política pública para a valorização do patrimônio material evoluíram até que houvesse substância suficiente para que os valores imateriais e os saberes das categorias menos favorecidas nas estruturas de poder local, regional e nacional pudessem começar a ser valorizados.

No caso de Morro do Chapéu, é importante considerarmos os fatores políticos que influenci- aram a configuração social e como a classe dos trabalhadores está representada em meio às demais. A análise da formação das estruturas políticas local e regional auxilia também a compreensão de como estas influenciaram a construção do poder formal político federal e, consequentemente, as po- líticas públicas dos governos, entre elas os programas de preservação e proteção do patrimônio na- cional e estadual.