• Nenhum resultado encontrado

3. Política do patrimônio cultural e ambiental na Chapada Diamantina e economia

3.1 A ação pública e as políticas culturais de tombamento

3.1.1 O patrimônio cultural nacional a partir da Constituição de 1988

A Constituição Federal de 1988 definiria duas ordens de valores que tratam da cultura. Uma seria o sistema de significações da norma jurídica em si e a outra a própria cultura, ou o patrimônio cultural nacional, enquanto matéria normatizada. “As ordens de valores se complementam e intera- gem necessariamente. Os direitos culturais são permanentemente repositório de valores e são anco- rados em um suporte que é o patrimônio cultural material ou imaterial” (SOARES, 2009, p. 104- 105). Por meio da normatização promovida pela Carta Magna de 1988, a ordem de valor de interes- se para o estudo do cuidado jurídico com o patrimônio cultural é aquela que trata da vertente dinâ- mica da cultura, isto é, “a cultura normatizada, especialmente o significado jurídico do patrimônio cultural e as relações deste com outros bens e interesses” (SOARES, 2009, p. 106).

No caso da produção de inventários vinculados aos sítios urbanos, além do valor histórico e artístico dos bens e da racionalidade econômica e social da intervenção, “é possível que os inven- tários deixem de fora a dimensão simbólica daquele espaço para seus habitantes, necessariamente plural e diversificada” (FONSECA, 2006, p. 86). Comparamos dois inventários realizados de forma distinta na Chapada Diamantina utilizando os exemplos do volume do Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia que abrange a região (BAHIA, 1997), além do INRC realizado em Mucu- gê, em meados de 2009, como suporte ao tombamento da cidade.

O primeiro trabalho, organizado pelo arquiteto formado pela primeira turma da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, Paulo Ormindo David de Azevedo, se concentra nas princi- pais edificações dos principais centros urbanos históricos do território. Faltam, no entanto, referên- cias aos demais aspectos da cultura em geral, além de informações relacionadas aos aspectos sociais vinculados ao processo de construção das edificações. No caso do INRC de Mucugê, há dados rela- tivos às referências culturais em geral do município, mas também não há referências vinculadas aos ofícios tradicionais da construção, por exemplo.

Para Londres Fonseca (2006, p. 86), considerar somente os monumentos excepcionais reti- raria a vitalidade do espaço já que se deixaria “de apreender em toda a sua complexidade, a dinâmi- ca de ocupação e de uso daquele espaço”. No caso do território, ou do espaço produzido, o objetivo da preservação do patrimônio teria como resultado uma nova orientação quanto ao uso do solo. “Trata-se de levar em conta um ambiente, (…) a maneira como determinados sujeitos ocupam esse solo, utilizam e valorizam os recursos existentes, como constroem sua história, como produzem edi- ficações e objetos, usos e costumes” (FONSECA, 2006, p. 86).

O INRC da construção tradicional viria justamente para suprir a ausência de informações dos inventários anteriores realizados na região, principalmente, aquelas relacionadas aos fatores so- ciais que envolvem os processos construtivos. Seria uma forma de dar valor à principal ocupação responsável pela edificação dos bens mais valorizados pelo órgão nacional responsável pelo patri-

mônio. Podemos identificar como um dos benefícios preliminares dessa iniciativa a promoção de al- gum nível de valorização de uma categoria de trabalhadores historicamente oprimida e desvaloriza- da dentro da estrutura social. Muitas perspectivas podem se abrir a partir disso.

Referências culturais não se constituem, portanto, em objetos considerados em si mesmos, intrinsecamente valiosos [...]. Ao identificarem determinados elementos como particular- mente significativos, os grupos sociais operam uma ressemantização desses elementos, re- lacionando-os a uma representação coletiva, a que cada membro do grupo de algum modo se identifica. O ato de apreender “referências culturais” pressupõe não apenas a captação de determinadas representações simbólicas como também a elaboração de relações entre elas, e a construção de sistemas que “falem” daquele contexto cultural, no sentido de representá- lo (FONSECA, 2006, p. 87).

No caso do INRC-CD, o arquivo de resultados do inventário, que servira como suporte desta pesquisa, apresenta os padrões culturais dos trabalhadores da atividade no território, colhidos por meio de uma série de entrevistas e analisados neste estudo. Os registros fotográficos e sonoros e as gravações em vídeo realizadas durante o inventário e armazenados, da mesma forma, constituem traços materiais dos depoimentos e conhecimentos colhidos a respeito dos saberes.

Estes recursos podem ser compreendidos como iniciativas do poder público para apoiar a tutela das formas de expressão e produção intelectual dos trabalhadores da construção tradicional com base nas tecnologias disponíveis. Os registros permitem a seleção de referências intergeracio- nais numa tentativa de não permitir que a forma escolhida seja deteriorada rapidamente pela obso- lescência. No caso do INRC, um dos últimos produtos foi realizado a partir do uso da linguagem ci- nematográfica, um documentário produzido por uma das pesquisadoras que atuou na maior parte da etapa de identificação dos mestres. A linguagem audiovisual facilita a divulgação do bem cultural, pois a forma de apresentação não necessita de um nível elevado de instrução do expectador, ao con- trário dos materiais de divulgação escritos, ou pesquisas produzidas.

Em 1938, uma série de igrejas entre outras edificações foram tombadas na Bahia, especial- mente, em Salvador e Cachoeira, no Recôncavo. A inscrição no livro do Tombo Histórico da antiga Casa de Câmara e Cadeia, da casa natal de Abílio Cesar Borges, o barão de Macaúbas, além de mais uma edificação e duas igrejas, todas na cidade de Rio de Contas, entre 1958 e 1959, possivelmente, define os primeiros bens tombados no alto sertão baiano.

O tombamento do conjunto arquitetônico e paisagístico da cidade de Lençóis pelo Iphan somente seria realizado em 1973, a partir da inscrição do bem urbano no livro do tombo arqueológi- co, etnográfico e paisagístico. O conjunto arquitetônico e paisagístico da cidade de Mucugê teve a inscrição no mesmo livro do tombo realizada em 1980, enquanto no ano de 2000 o Iphan inscreveu o distrito de Igatu, do município vizinho de Andaraí, dado o conjunto arquitetônico, urbanístico, paisagístico e as habitações de pedra, utilizadas pelos antigos garimpeiros. O outro bem do território

inscrito no livro do tombo arqueológico, etnográfico e paisagístico, também em 2000, é o conjunto paisagístico do Morro do Pai Inácio, em Palmeiras. Estes são os principais bens tombados pela Uni- ão na Chapada Diamantina.

A partir da década de 2000, no âmbito estadual, uma série de bens do território foram tom- bados ou passaram a possuir tombamento provisório. Podemos sugerir que as diretrizes normativas inovadoras propostas pela Constituição favoreceram esta fase das políticas patrimoniais na Bahia. A alteração do conceito de bens pertencentes ao patrimônio cultural abrangendo valores mais abran- gentes contribuiu para a superação da referência anterior. A monumentalidade era o valor de refe- rência conceitual da tradição constitucional anterior e com a mudança, a partir de 1988, a cidadania cultural teria passado a ser mais valorizada.

No caso dos INRCs dos mestres artífices da construção tradicional, entre eles o da Chapada Diamantina, o que houve foi a realização da pesquisa enquanto elemento de proteção, mas ainda não ocorreram medidas para salvaguardar a ocupação desempenhada pelos mestres do segmento. Alguns casos que podem ser considerados neste sentido, em diferentes níveis do desenvolvimento da política do patrimônio imaterial, são o registro do ofício das baianas de acarajé e o registro do ofício dos mestres de capoeira, ambos realizados pelo Iphan, com vínculos diretos com a cultura baiana, e o registro do ofício do vaqueiro, realizado pelo Ipac.