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Capítulo 2. Entre a aliança e desavença: a Inglaterra

2.3. A Inglaterra aliada

2.3.1. Um baluarte da independência nacional: a Guerra Fantástica e as Invasões Francesas

2.3.1.3. O testemunho de José Acúrsio das Neves

As representações da Inglaterra na obra de José Acúrsio das Neves dialogam e contrastam com as representações negativas da França. Apesar de ser na História geral da invasão dos franceses e da restauração deste Reino (1810-1811) que encontramos de forma mais concentrada a imagem luminosa da Inglaterra, as mesmas representações são replicadas noutros escritos do autor, nomeadamente no Manifesto da razão contra as usurpações francezas. Offerecido à Nação Portugueza, aos soberanos, e aos póvos (1808)607, em O

despertador dos soberanos, e dos póvos, offerecido á humanidade (1808)608, em A

generosidade de Jorge III e a ambição de Bonaparte. Wellesley e os generaes francezes

Britanica nestes Reinos, e pelo excellentissimo senhor Guilherme Carr Beresford, Tenente General, e Commandante em Chefe dos exercitos portugueses por sua Alteza Real o Principe Regente Nosso Senhor, oferecido aos mesmos excelentíssimos generaes pela voz da Nação Portugueza em signal do mais generoso agradecimento (1809) é um exemplo da receção que teve a intervenção inglesa aquando, neste caso, da segunda

invasão francesa. As estrofes V, VI e XI, que a seguir transcrevemos, são as mais representativas: «Que um Wellesley potente / O Ceo lhes manda a castigar seus crimes, / Que em sangue vai lavar vingando a afronta. //

N’outra falange em vivo fogo ardente / De Furias escoltado / Morte lhes lança Beresford constante / Em chuveiros de sangue desatadas; / Já chega, já accommette / Em vão o Galo resistir forceja, / Que á fúria cede do cruento Marte. // [...] // Eia, ó Lusos, prossegui constantes / Vaidosos imitando / Dos Britanos leaes Filhos de Marte / Eximio coração, valor ousado, / E gloria ambiciando / Perenne luz de imensos resplendores / Dourará vossa fama em toda a idade» (pp. 5-7). Mas muitos outros exemplos existem, nomeadamente entre a literatura panfletária, como o escrito anónimo Parabens a Portugal manifestamente expressados nas festas, e

contentamento universal com que a cidade de Lisboa solemnizou a entrada da esquadra, e exercito da Grã- Bretanha, e conseguido por seu auxilio a derrota e expulsão total dos francezes, Lisboa, Na Impressão de

Alcobia, 1808; Desgraças que os Francezes nos trouxerão, com a sua vinda a Portugal; e felicidade que nos

fazem gozar a Gram-Bretanha, com a sua vinda a Portugal, Lisboa, Na Oficina Nunesiana, 1808; ou Carta de respeitosa gratidão, que sobre a Restauração de Portugal dirige ao Augusto Rei da Grã-Bretanha o Senhor Jorge III, Lisboa, Na Oficina Nunesiana, 1808. Parecem ter sido mais comuns as manifestações encomiásticas

dirigidas a Arthur Wellesley (ou general Wellington), de que é exemplo uma composição de José Agostinho de Macedo intitulada Ao invicto Wellington, Ode (Lisboa, Impressão Régia, 1813). Maria do Rosário Lupi Belo apresenta-nos as imagens de Wellington em composições poéticas produzidas com o objetivo de prestar louvor àquele que era tido como o herói, salvador e restaurador do reino, em «Imagem de Wellington na Guerra Peninsular: a poesia encomiástica como tributo a literatura à história», in Carlos Ceia, Isabel Lousada e Maria João da Rocha Afonso (coord.), Estudos anglo-portugueses: livro de homenagem a Maria Leonor Machado

de Sousa, Lisboa, Colibri, 2003, pp. 59-71. Este tema foi desenvolvido pela autora em tese de mestrado, com

o título sugestivo de Wellington na poesia portuguesa — Guerra Peninsular, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1990).

607 José Acúrsio das Neves, Manifesto da razão contra as usurpações francezas. Offerecido á Nação

Portugueza, aos soberanos, e aos póvos, Lisboa, Na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1808.

608 José Acúrsio das Neves, O despertador dos soberanos, e dos póvos, offerecido á humanidade, Lisboa, Na

(1809) 609 e na Memoria sobre os meios de melhorar a industria portugueza, considerada

nos seus differentes ramos (1820)610, apenas para referir alguns.

José Acúrsio das Neves, na introdução à História geral da invasão dos franceses, estabelece o fio orientador do seu estudo. Obedece, este, a um desígnio específico, que é o de «seguir a marcha dos invasores», os seus «hostis procedimentos» e «actos de opressão e espoliação»611. À partida, está identificado o inimigo: os franceses. O herói, a Inglaterra, é

apresentado no decorrer da narrativa, apesar de o intuirmos nas páginas iniciais da História, quando o autor revela o «sistema continental» de Napoleão, ou seja, qual foi o objetivo estratégico das invasões por ele comandadas: «destruir a Inglaterra, como o mais poderoso baluarte da liberdade do continente, para assegurar a escravidão da Europa»612. O mesmo

«sistema» explica a invasão de Portugal, cuja posição geográfica privilegiada dos seus portos, associada a uma antiga e firme aliança com a Inglaterra, constituíam um poderoso obstáculo às pretensões napoleónicas.

A imagem que Acúrsio das Neves projeta da Inglaterra constrói-se, fundamentalmente, numa relação de contraposição com a imagem negra da França, surgindo a primeira como representante do Bem e a segunda do Mal: a Inglaterra é a única força capaz de resgatar a Europa das «cadeias da França»613 e os franceses são comparados a harpias que

pretendem «devorar Portugal»614. O mesmo método é utilizado para contrapor Wellington e

Bonaparte: o general inglês é apresentado pelo autor como «o homem grande» que tem salvado Portugal «do jugo tirânico que vinham impor-lhe estes bebedores de sangue», o «restaurador da Europa»615; já o imperador francês é «o tirano [...] por nós detestado como

inimigo da religião, dos soberanos e dos direitos mais sagrados»616, o usurpador.

609 José Acúrsio das Neves, A generosidade de Jorge III e a ambição de Bonaparte. Wellesley, e os generaes

francezes, Lisboa, Na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1809.

610 José Acúrsio das Neves, Memoria sobre os meios de melhorar a industria portugueza, considerada nos

seus differentes ramos, Lisboa, Na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1820.

611 José Acúrsio das Neves, Historia geral da invasão dos francezes em Portugal, e da restauração deste reino,

t. I, Lisboa, Na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1810, p. 12.

612 Idem, ibidem, p. 48. No último tomo da sua História, Acúrsio das Neves retoma o assunto para explicar que

a rivalidade entre a França e a Inglaterra, especialmente exaltada depois da Revolução Francesa, decorre não só de questões nacionalistas mas também de um ressentimento do próprio Napoleão Bonaparte, porque «não via na Grã-Bretanha senão uma fortíssima barreira aos seus desígnios; e apenas elevado ao poder supremo, conheceu que enquanto existisse o império Britânico, o seu não podia adquirir solidez, e por isso tentou destruí- lo, não omitindo para este fim meio algum, que estivesse em suas mãos» (t. V, 1811, p. 5).

613 Idem, ibidem, p. 82. 614 Idem, ibidem, p. 63. 615 Idem, ibidem, t. III, p. 63.

616 Idem, ibidem, p. 87. Também a este respeito, é bastante interessante o seu opúsculo com o título sugestivo

Não deixa se ser significativo o diferente uso que Acúrsio das Neves faz do vocábulo «estrangeiro», quando associado aos ingleses ou aos franceses. Reportando-se à cedência do governo português à causa continental de França, como única forma de evitar a invasão, e à consequente deliberação de fazer sair de Portugal as famílias britânicas aqui estabelecidas, o autor releva que estas, apesar de estrangeiras, eram tidas como «compatriotas, pela sua longa habitação e pelas suas relações que tinham contraído neste reino» e porque «se achavam ligadas aos portugueses pelos vínculos da mais estreita aliança, e dos interesses recíprocos»; os franceses, pelo contrário, são o «usurpador estrangeiro».617 Divisamos, nesta

diferenciação, as origens semânticas remotas do vocábulo «estrangeiro», hospes e hostis, que derivaram nos adjetivos «hóspede» e «hostil» — seguindo esta linha de raciocínio, os ingleses são o «estrangeiro-hóspede» enquanto os franceses são o «estrangeiro-hostil».

O último tomo da História geral da invasão dos franceses reserva um caloroso elogio à Inglaterra, cujo «poder colossal» se revelava fundamental para o restabelecimento do equilíbrio europeu e para a libertação dos povos da Península Ibérica, «oprimidos, e esmagados» pela França.618 E contra aqueles que acusam a Inglaterra de agir apenas segundo

interesses particulares e não pelo bem de Portugal, responde o autor:

A Inglaterra tem mandado para a peninsula maior número de tropas do que já mais mandou para outra alguma parte do continente, e mais thesouros, do que nunca poderá ajuntar o conquistador em seus cofres. A peninsula era escrava, a Inglaterra tem resgatado huma parte, e forceja por resgatar o resto, procurando tambem por este meio livrar-se dos ferros, que querem lançar-lhe. Eis-aqui o verdadeiro ponto de vista, em que deve olhar-se a politica Ingleza; e he por ella que ainda temos patria, que as nossas familias se tem livrado da ignominia, e da morte, que semeamos os nossos campos com a esperança de recolhermos os frutos, que temos a doce consolação de respirar no clima, que nos viu nascer, e de podermos hum dia misturar os nossos ossos com os dos nossos pais.619

Bastavam, pois, estas linhas para apreender que imagem da Inglaterra Acúrsio das Neves pretendeu desenhar: a de uma Inglaterra libertadora e nobre. A mesma representação está

uma exaltação à Inglaterra, a Jorge III e ao general Arthur Wellesley e uma condenação geral de Napoleão, de quem traça um retrato negro. Este escrito está contemplado no vol. 5 das Obras Completas de José Acúrsio

das Neves, Porto, Edições Afrontamento, s. d., pp. 155-167.

617 Historia geral da invasão dos francezes em Portugal, e da restauração deste reino, t. I, ed. cit., pp. 129-

130.

618 Idem, ibidem, t. V, p. 11. 619 Idem, ibidem, pp. 14-15.

presente noutros escritos do autor, também redigidos no momento de maior zelo nacional e fervor antinapoleónico, ou seja, enquanto decorriam as invasões francesas. No opúsculo Manifesto da razão contra as usurpações francezas. Offerecido á Nação Portugueza, aos soberanos, e aos póvos, a Inglaterra assoma como «baluarte da Liberdade da Europa», «generosa nação», «nação heroica».620 Por outro lado, em O despertador dos soberanos, e

dos póvos offerecido á Humanidade, a Inglaterra é apresentada como modelo de nação, por se ter mantido apartada do ímpeto revolucionário e por não se ter deixado subjugar pelas forças napoleónicas:

E que tirou a Inglaterra de ficar constante no seu systema no meio de todos os perigos, e ameaças, e da inconstancia dos seus alliados? Tirou a independencia do seu Governo, e da sua Nação, hum augmento prodigioso da sua Marinha, das suas Colonias, e do seu poder, e huma gloria, que passará de geração em geração até aos seculos mais remotos.621

O escrito A generosidade de Jorge III e a ambição de Bonaparte. Wellesley, e os generaes francezes, como sugere o título, evoca a superioridade da Inglaterra, a honra e justiça do seu rei e a glória do general Arthur Wellesley, em oposição a Bonaparte e aos seus generais, conforme patenteiam as seguintes linhas:

O nome de Wellesley, todo coberto de gloria, passará á Posteridade entre os Nomes mais famosos; e ficarão entretanto cobertos de horror, e de infâmia os desses Generaes [...]. Hum e outro [Junot e Soult] vierão buscar ao nosso paiz, não só o sustento, e vestuário para as suas tropas, mas até as armas, para nos subjugarem. Que contraste com o Vencedor do Vimeiro, e seu Exército, que tudo trazem, e só vem buscar os trabalhos, e a gloria!622

Somente na Memoria sobre os meios de melhorar a industria portugueza, considerada nos seus differentes ramos, datada de 1820, encontramos uma imagem mais desapaixonada da Inglaterra, até porque a redação deste opúsculo obedece a objetivos diversos. Apesar de não deixar de compreender as invasões francesas como causa do

620 José Acúrsio das Neves, Manifesto da razão contra as usurpações francezas. Offerecido á Nação

Portugueza, aos soberanos, e aos póvos, ed. cit., pp. 16-17.

621 José Acúrsio das Neves, O despertador dos soberanos, e dos póvos, offerecido á humanidade, ed. cit., p.

24.

622 José Acúrsio das Neves, A generosidade de Jorge III e a ambição de Bonaparte. Wellesley, e os generaes

abatimento industrial e comercial de Portugal, salienta as consequências nocivas do Tratado de Comércio e Navegação de 19 de fevereiro de 1810, celebrado com a Grã-Bretanha. O autor não responsabiliza, todavia, os termos do Tratado, mas a sua execução, mais prejudicial do que o próprio Tratado de Methuen porque engloba praticamente todos os géneros de manufaturas, e não somente os lanifícios.623 Além disso, admite que parte

substancial da responsabilidade pelo estado lastimoso do comércio e indústria nacionais cabe aos próprios portugueses, pelo «desmazelo de nos não termos posto em estado de sustentar a concorrência dos estrangeiros, tendo para isso grandes faculdades naturais» e porque ainda «fazemos tudo á força de braços, e de animaes, em quanto nos outros paizes a força dos elementos quasi dispensa a mão do homem nos trabalhos mais pezados, e augmenta prodigiosamente os fructos da industria»624. Acúrsio das Neves acaba por louvar a

supremacia britânica, concluindo que «sem os socorros desta potência, Portugal e toda a Europa ainda hoje estariam gemendo debaixo do pesado jugo de um usurpador; mas ela não espalhou os seus tesouros e o sangue dos soldados sem exigir alguns sacrifícios; e desgraçada a nação que para sustentar a sua independência precisa de auxílio estrangeiro».625

Apesar de a Inglaterra figurar ordinariamente na cultura portuguesa como modelo a seguir, José Acúrsio das Neves aparece-nos como o autor que de forma mais consistente enaltece o seu papel como nação-libertadora de Portugal. Pelo contrário, e como veremos, os autores que de forma mais ou menos aprofundada dedicaram algumas páginas dos seus escritos a enaltecer a Inglaterra, fazem-no sobretudo para evidenciar a superioridade daquela contra a menoridade de Portugal.