• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2. Entre a aliança e desavença: a Inglaterra

2.2. A Inglaterra desleal

2.2.1. O antibritanicismo pombalino: uma «política de emancipação» sob o signo de Methuen

2.2.2.2. O Tratado de Amizade, Comércio e Navegação de

No intervalo que mediou a segunda e a terceira invasões francesas, as Coroas de Portugal e de Inglaterra celebraram um tratado de amizade e aliança491 e outro de amizade,

487 Resumo Histórico da marcha e procedimento do General do Exército Português Bernardim Freire

d’Andrade na Ocasião da gloriosa tentativa para o desbarate dos Francezes e Restauração destes Reynos de Portugal. Aque se ajuntão exactas cópias dos documentos officiaes e authenticos que forão relativos atão alta e feliz empreza, in António Pedro Vicente, Um soldado da Guerra Peninsular — Bernardim Freire de Andrade e Castro, Lisboa, s. n., 1970, pp. 241-322.

488 Cf. «Memoria sobre os principais inconvenientes que se encontrão na Convenção ajustada entre os generaes

em Chefe do Exercito Inglez e Francez para a evacuação de Portugal; e do que lembra nestas circunstancias para minorar os que são mais prejudiciais a este paiz», in Idem, ibidem, pp. 299-301.

489 Ibidem, p. 299.

490 «O Exercito Britannico não se pode nem deve considerar neste paiz, senão como Exercito auxiliar: assim

foi que ele veio requerido pelo Governo Provisório do mesmo paiz, e assim lhe convém ser reputado, seja qual for a sua força, para não excitar desconfianças, que lhe vão empecer aos seus ulteriores projectos: nestas circunstâncias parece que qualquer Tratado, que se houvesse de ajustar com os Francezes, devia ser de acordo com o Governo do mesmo paiz, que o chamara ou pelo menos com a sua approvação particular [...]. Nada disto se praticou; antes pelo contrario se estipularão cousas, que não podem ser jamais da competência da authoridade militar, se não quando essa authoridade se acham em um paiz conquistado [...]» (Idem, ibidem, p. 300).

491 Neste tratado, entre outras disposições, reafirmava-se a «estrita e inviolável união» entre as coroas

portuguesa e inglesa e Jorge III renovava e confirmava o clausulado no artigo VII da convenção secreta acima referida, assumindo «no seu próprio nome e no de seus herdeiros e sucessores, de jamais reconhecer como Rei de Portugal outro algum príncipe que não seja o herdeiro e legítimo representante da Real Casa de Bragança». O artigo VII da Convenção Secreta de 1807, transposto para o artigo III do Tratado de aliança de 1810, ficou, assim, com a seguinte redação: «Estabelecendo-se no Brasil a sede da Monarquia Portuguesa, Sua Majestade Britânica promete, no seu próprio nome e no de seus herdeiros e sucessores, de jamais reconhecer como Rei de Portugal outro algum príncipe que não seja o herdeiro e legítimo representante da Real Casa de Bragança; e Sua Majestade também se obriga a renovar e manter com a regência (que Sua Alteza Real possa estabelecer

comércio e navegação, como havia sido «prometido» no artigo VII da Convenção Secreta de 22 de outubro de 1807.492 Assinados no Rio de Janeiro em 19 de fevereiro de 1810, em

especial o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação confirmaria a hegemonia marítima da Grã-Bretanha e a pressão que esta passaria a exercer sobre Portugal. Com a justificação de se pretender, por esta via, «consolidar, e estreitar a Antiga Amizade e boa intelligencia [...] entre as Duas Corôas» e «augmentar, e estender os benficos effeitos della em mutua vantagem dos seus respectivos Vassallos», através da adoção de um «Systema Liberal de Commercio fundado sobre as Bases de Reciprocidade, e mutua Conveniencia»493, o Tratado

de Amizade, Comércio e Navegação de 1810 viria a inscrever-se na memória histórica, à semelhança do Tratado de Methuen, como uma das causas da derrapagem económica e comercial de Portugal e da sua dependência face à Inglaterra.

Além de uma «sincera e perpetua Amizade entre Sua Magestade Britannica, e Sua Alteza Real o Principe Regente de Portugal» e respetivos sucessores e vassalos, e da recíproca liberdade de comércio e navegação, circulação e residência «em todos, e cada hum dos Territorios, e Dominios» de qualquer das partes, pelo Tratado de Comércio e Navegação

em Portugal) as relações de amizade que há tanto tempo têm unido as coroas da Grã Bretanha e de Portugal» («Tratado de 1810», in Eduardo Brazão, op. cit., pp. 149-150). No restante articulado deste tratado, as duas partes renovavam os artigos adicionais à convenção secreta, assinados em Londres em 16 de março de 1808, relativos à ilha da Madeira (artigo III); D. João confirmava e renovava o acordo que garantia a indemnização dos vassalos ingleses pelas perdas de propriedade sofridas «em consequência das diferentes medidas que a corte de Portugal foi constrangida a tomar no mês de Novembro de 1807» (artigo IV); Jorge III, por sua vez, assumia a compensação, mediante prova, dos prejuízos causados aos vassalos portugueses aquando da «amigável ocupação de Goa pelas tropas de Sua Majestade Britânica» (artigo V); como agradecimento e prova de reconhecimento pelo auxílio prestado pela marinha real inglesa, o príncipe regente concedia ao rei de Inglaterra o privilégio exclusivo de «fazer comprar e cortar madeiras para construção de navios de guerra nos bosques, florestas e matas do Brasil», mediante aviso prévio à corte portuguesa (artigo VI); ambas as partes se obrigavam, a expensas próprias, a prover de «carne fresca, vegetais e lenha» a esquadra ou navios de guerra enviados por uma das partes contratantes em socorro da outra (artigo VII); D. João assegurava que o Tribunal do Santo Ofício não seria estabelecido «nos meridionais domínios americanos da coroa de Portugal» (artigo IX); e aceitava «cooperar com Sua Majestade Britânica na causa da humanidade e justiça, adoptando os mais eficientes meios para conseguir em toda a extensão dos seus domínios uma gradual abolição do comércio de escravos», pelo que, neste sentido, o príncipe regente garantia a proibição do comércio de escravos em territórios do continente africano que não pertencessem à coroa portuguesa (artigo X). Pelos artigos secretos, o rei da Grã-Bretanha dispunha-se a promover a restituição do território de Olivença e Jerumenha a Portugal e o príncipe regente cedia à Inglaterra a plena soberania sobre os estabelecimentos de Bissão de Cacheu por cinquenta anos. Este tratado, contudo, viria a ser anulado pelo artigo III do chamado Tratado de Viena, assinado a 22 de janeiro de 1815, também conhecido por Tratado de Escravatura de 1815, por versar a abolição do tráfico de escravos (cf. «Tratado de 1815», in Eduardo Brazão, op. cit., 1955, p. 159).

492 De acordo com o artigo VII da referida convenção, quando o Governo português estivesse estabelecido no

Brasil proceder-se-ia à negociação de um tratado de auxílio e de comércio entre Portugal e a Inglaterra. Cf. «Convenção secreta de 1807», in José de Almada, A aliança inglesa. Subsídios para o seu estudo, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1946, p. 116.

493 Tratado de Amizade, Commercio, e Navegação entre o Principe Regente de Portugal e Sua Magestade

foram ajustados diversos aspetos reguladores das relações entre Portugal e a Inglaterra, não só comerciais como judiciais e religiosos. De uma forma geral, o tratado foi contestado no seu todo. Apesar da reciprocidade alegada em diversos artigos, uma parte significativa do articulado foi tida como lesiva para os interesses nacionais. Referenciamos, a título de exemplo, a quebra do regime de monopólio, o que implicava a perda de privilégios detidos pelos comerciantes portugueses (artigo VIII); a permissão concedida aos ingleses residentes em território português de serem julgados por magistrados ingleses (artigos IX e X); a liberdade de consciência, crença e prática religiosa garantida aos súbditos britânicos (artigo XII); a admissão de todo o género de produtos ingleses nos portos e territórios mediante uma taxa de 15% sobre o seu valor (artigo XV); a declaração dos portos de Santa Catarina e de Goa como portos francos (artigos XXI-XXIII); e a perpetuidade do tratado (artigo XXXII).494

Para o historiador Joaquim Veríssimo Serrão, o tratado de comércio então firmado foi nocivo para o sistema económico português porque provocou uma redução na produção de manufacturas e «o desemprego da sua massa artesanal». Na perspetiva deste historiador, são estas as «causas longínquas da revolução de 1820»495. Oliveira Lima, no longo estudo

sobre D. João VI no Brasil (1808-1821), dedica parte substancial de um capítulo aos tratados celebrados em 19 fevereiro de 1810. Procedendo a um exame dos termos de ambos, conclui que «o tratado de 1810 foi franca e inequivocamente favorável à Inglaterra» e que «a obra política do conde de Linhares foi portanto benéfica ao Brasil, mesmo em seus aspectos menos defensáveis, por avessos à equidade de um pacto internacional e aos exclusivos posto que legítimos interesses da metrópole».496 Maria de Fátima Bonifácio sugere que a

celebração do tratado nos termos em que foi negociado decorreu de um lapso de previsão, uma vez que, estando então Portugal sob o domínio napoleónico e encontrando-se o rei e a corte no Brasil, se julgou que a metrópole estaria irremediavelmente perdida, razão por que se tratou «de regular as relações comerciais entre o Brasil e a Inglaterra, e não entre esta e

494 Cf. ibidem. Veja-se a sinopse dos termos do tratado prestada por Joaquim Veríssimo Serrão em História de

Portugal, vol. VII: A Instauração do Liberalismo (1807-1832), ed. cit., pp. 126-127. Também o longo estudo levado a efeito por Valentim Alexandre sobre a questão colonial no Portugal do Antigo Regime constitui um valioso contributo para a compreensão do alcance e receção dos tratados de 1810 (cf. Valentim Alexandre, Os

sentidos do Império. Questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português, Porto, Edições

Afrontamento, 1993, pp. 209-232 e 261-278).

495 Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, vol. VII: A Instauração do Liberalismo (1807-1832), ed.

cit., pp. 126-127.

496 Cf. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil (1808-1821), s. l., ACD, Editores, 2008, pp. 241-264. Oliveira

Lima é tido como historiador de referência para a interpretação dos termos do tratado de comércio e navegação de 19 de fevereiro de 1810 e respetivo impacto no comércio do Brasil.

Portugal». Acrescenta a historiadora que só depois da vitória anglo-lusa se tomara consciência de quão prejudicial era o tratado para Portugal.497 Jorge Borges de Macedo

apresenta-nos uma interpretação diversa. Apesar de considerar este tratado de comércio «extremamente oneroso para Portugal»498, o historiador procura desmitificar o seu impacto

negativo no sistema económico português ao demonstrar como o seu declínio foi anterior a 1810 e às próprias invasões francesas (embora reconhecendo que estas acentuaram o «afundamento da produção industrial»).499

Apesar da maior relevância dos dados avançados por Borges de Macedo para o apuramento do verdadeiro impacto do Tratado de 1810 na economia nacional, os mesmos, contudo, não medem a sua receção na mentalidade. Essa «avaliação» é-nos fornecida, por exemplo, por Luís de Oliveira Ramos, a partir de um manuscrito inédito de Fr. Francisco de S. Luís Saraiva (mais conhecido como Cardeal Saraiva), que nos informa do efeito produzido pelo tratado de 1810 em quem testemunhou a sua execução. Entre os princípios aduzidos pelo Cardeal Saraiva, que postulam uma reação e receção negativa do tratado, são relevados os seguintes: a) o tratado fora celebrado em circunstâncias muito adversas, quando Portugal estava civil e militarmente dependente da Inglaterra, quando o destino da monarquia portuguesa na Europa se revelava incerto e quando o comércio português se mostrava fragilizado pela abertura dos portos do Brasil a todas as nações, o que, associado ao facto de o tratado ter sido celebrado no Brasil, levou a que a sua validade tivesse sido posta em causa;500 b) o suposto princípio da reciprocidade sobre o qual o tratado se firmava

não se verificara;501 c) o tratado, na sua execução, fora sujeito a alterações introduzidas pela

497 Maria de Fátima Bonifácio, Seis estudos sobre o liberalismo português, ed. cit., p. 35.

498 Jorge Borges de Macedo, História diplomática portuguesa — Constantes e linhas de força. Estudo de

geopolítica, ed. cit., p. 412.

499 Depois de apresentar os dados relativos às manufaturas portuguesas exportadas para o ultramar, Borges de

Macedo conclui que «a produção industrial para exportação ultramarina revela uma descida que se desenha, com toda a segurança, a partir de 1802», sendo devedora da «entrada legal e clandestina de tecidos de algodão, lã, estamparias, ferro e quinquilharia inglesas numa concorrência que se tornava cada vez mais destruidora» (Jorge Borges de Macedo, Problemas de história da indústria portuguesa do século XVIII, ed. cit., p. 238).

500 Por carta régia de 28 de janeiro de 1808, o príncipe regente decretara a abertura dos portos do Brasil às

nações que estivessem «em paz e harmonia» com Portugal, o que levou a um crescimento da economia brasileira em detrimento da da metrópole («Carta Régia de 28 de Janeiro de 1808», in Colecção das leis do

Brazil de 1808, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1891, p. 1)

501 O Cardeal Saraiva refere-se, neste ponto particular, às notórias diferenças entre o poder naval britânico e o

português: «todo o mundo sabe que emquanto dous ou três navios portugueses navegão para Inglaterra, vem de lá duzentos ou trezentos» (citado por Luís A. de Oliveira Ramos, «Em torno do tratado de 1810», in AA.VV.,

Actas do Colóquio Comemorativo do VI Centenário do Tratado de Windsor, Porto, Faculdade de Letras do

Porto, Instituto de Estudos Ingleses, 1988, p. 337). Este aspeto é particularmente desenvolvido pelo historiador Oliveira Lima, op. cit., pp. 247-249.

Inglaterra que eram dolosas. 502 As ilações do Cardeal Saraiva constituem um exemplo das

repercussões do tratado de 1810 entre a intelectualidade oitocentista e correspondem, grosso modo, à versão que ficou inscrita na história sobre este período.503

2.2.2.3. «A força toda do Reino na mão de um general estrangeiro»504

Se por um lado os ingleses não deixaram de ser tidos como heróis e libertadores do jugo francês — situação corroborada pela produção literária de carácter encomiástico — por outro lado a paz que se seguiu a 1814/1815 também revelou a consciência da dependência extrema de Portugal relativamente à Inglaterra.505 Esta posição de tutela suscitou um

descontentamento generalizado, sentido não só em Portugal mas também na própria corte estabelecida no Rio de Janeiro, alimentado quer pelo estado de miséria em que país mergulhara,506 quer pela onda de patriotismo gerada na sequência da vitória das forças luso-

britânicas nas guerras napoleónicas, quer ainda pela longa ausência de D. João VI no Brasil. A elevação deste território a reino pela carta de lei de 16 de dezembro de 1815, com a

502 Cf. Luís A. de Oliveira Ramos, «Em torno do tratado de 1810», in AA.VV., Actas do Colóquio

Comemorativo do VI Centenário do Tratado de Windsor, ed. cit., pp. 336-337.

503 O Correio Brasiliense, impresso na Inglaterra, assomou neste período como meio difusor da censura ao

Tratado de Comércio e Navegação de 1810. Veja-se, particularmente, o artigo «Exame do Tractado de Commercio entre as Cortes do Brazil e da Inglaterra», nos seus números 27, 28 e 29, vol. V, de 1810 (Correio Braziliense ou Armazem Litterario, vol. V, Londres, W. Lewis, Paternoster-row, 1810, pp. 189-197, pp. 302- 312 e 397-406). Outro periódico publicado na Inglaterra que exerceu pressão sobre a corte portuguesa ao denunciar a falta de cumprimento do acordo pela Inglaterra foi O Investigador Português. Este jornal, como informa Valentim Alexandre, sendo «um jornal subsidiado pela embaixada portuguesa em Londres, que podia por isso fazer silenciar os comentários demasiado incómodos», exercia uma «pressão consentida» (Valentim Alexandre, op. cit., p. 265).

504 «Carta do Principal Sousa, Governador do Reino, a Dom João VI», in Marquês do Funchal, O conde de

Linhares: Dom Rodrigo Domingos Antonio de Sousa Coutinho, Lisboa, Edição de Autor, 1908, p. 349.

505 A forma como decorreram as negociações para a paz foi indiciadora. Portugal não teve representação

própria no acerto da paz, celebrado pelo Tratado de Paris em 30 de maio de 1814, e com muita dificuldade conseguiu ver-se representado no Congresso de Viena. Tal situação deveu-se não só ao distanciamento geográfico da corte portuguesa, mas sobretudo ao entendimento generalizado entre as potências intervenientes de que Portugal estava sob o protetorado britânico, não tendo por isso direito a voz própria. Apenas a perspicácia de Palmela, então ministro plenipotenciário e representante português no Congresso de Viena, conseguiu reverter a opinião e integrar Portugal na comissão restrita do Congresso, ao lado da Inglaterra, Áustria, Prússia, Rússia, Espanha, França e Suécia.

506 Portugal atravessava, então, uma grave crise económica, não só por causa da guerra (além das depredações

de que foi vítima, não nos esqueçamos, por exemplo, dos efeitos a longo prazo da estratégia defensiva da terra queimada), mas também, como referem Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa, pelo «fim do regime de exclusivo comercial, com a abertura dos portos do Brasil à navegação estrangeira, e da proteção às manufacturas, com o Tratado de 1810», que «representaram a breve prazo um desastre económico», pelo facto de os comerciantes portugueses perderem a capacidade de defrontar a concorrência britânica (Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa, D. João VI, o Clemente, col. Reis de Portugal, dir. de Roberto Carneiro, Lisboa, Temas e Debates, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2009, p. 228.

consequente formação do «Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algarves»,507 terá

constituído mais uma acha para a fogueira que se acendia, dando uma impressão de que Portugal passava, assim, ao estado de colónia. Assim, se no plano continental Portugal estava sujeito à Inglaterra, no plano atlântico via invertida a sua relação com o Brasil, que se tornara o centro do império português. No entanto, a própria insistência de D. João em permanecer no Brasil — contrariando os «arranjos» do embaixador britânico Lord Strangford —, poderá ser entendida como uma estratégia de autonomia política e libertação da monarquia portuguesa do domínio britânico. A nomeação de António Araújo de Azevedo, cuja oposição ao «partido inglês» era conhecida, para o cargo de ministro da Marinha e Ultramar e as instruções dadas à representação portuguesa no Congresso de Viena no sentido de «procurar junto da Rússia um contrapeso para a influência e a pressão da Grã-Bretanha» são indicadores de um desejo de mudança de direção na política externa portuguesa que cerceasse a primazia britânica em Portugal.

Na metrópole, a tensão gerada pelo estado de dependência perante a Inglaterra agudizara-se à medida da extensão dos poderes detidos por elementos britânicos, particularmente por William Carr Beresford. Comandante em chefe dos exércitos portugueses desde 1809, na sequência da reforma do Governo executada em 1810, Beresford recebeu a prerrogativa do direito de voto sobre questões militares, usada «de forma progressivamente discricionária e despótica»508. Também em 1810, o embaixador britânico

passou a integrar o Conselho de Regência.509 Uma vez terminada a campanha peninsular,

Beresford assumira o título de «marechal-general junto à pessoa do rei», o que lhe dava uma total independência e liberdade de ação face ao Conselho de Regência. Perante a inexistência de liberdade de expressão em Portugal, foram os periódicos portugueses publicados no estrangeiro, como o Investigador Português em Inglaterra, que deram voz ao descontentamento generalizado. Data deste período a divulgação por este jornal de três cartas de Sebastião José de Carvalho e Melo a William Pitt, lorde de Chatam, supostamente redigidas na sequência do ataque britânico a uma esquadra francesa na costa do Algarve e

507 O texto da Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815 está publicado no primeiro volume da Colecção das

Leis do Brazil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1890, pp. 62-63 e encontra-se disponível para consulta em

http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio (último acesso em 1 de junho de 2016).

508 Ana Cristina Araújo, «As invasões francesas e afirmação das ideias liberais», in José Mattoso (dir.), História

de Portugal, vol. V: O Liberalismo (1807-1890), ed. cit., p. 40.

509 Cf. Rui Ramos, «Invasões Francesas, tutela inglesa e monarquia brasileira», in Rui Ramos (coord.), História

que pretendem refletir o desapreço de Carvalho e Melo pelos ingleses.510 Nelas acusa a

Inglaterra de engrandecer aos ombros de Portugal, espoliando o seu tesouro, destruindo o seu comércio, arruinando a sua agricultura; mas também assinala a dependência inglesa em relação a Portugal: «se nós somos os que temos elevado ao maior grau de vossa grandeza, também nós somos os únicos que dele vos podemos derribar»511. Nestes documentos em

particular, encontramos um verdadeiro retrato negro da Inglaterra. A autoria atribuída ao conde de Oeiras pretenderia dar legitimação a um sentimento antibritânico recrudescente e, simultaneamente, mostrar a «via pombalina» para a libertação de Portugal da tutela inglesa:

Vós sabeis que Cromwell, em qualidade de protetor da república inglesa, fez morrer o irmão do embaixador de d’el-rei fidelíssimo: sem ser Cromwell eu me sinto também com poder de imitar o seu exemplo, em qualidade de ministro, protetor de Portugal. Fazei logo o que deveis, que eu não farei tudo quanto posso. 512

O descontentamento pelo domínio britânico viria a ganhar maiores contornos com a oposição às medidas que Beresford pretendia impor na esfera militar. Este facto, associado ao imobilismo de que era acusado o Governo, foi o mote para a Conspiração de 1817,