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A Década Perdida e o Recrudescimento Neoliberal

Foto 5 – Uma das Famílias Entrevistadas

2.5 A Década Perdida e o Recrudescimento Neoliberal

As dificuldades que marcaram a década de 80, para o Brasil e demais países da América Latina (AL), resultaram, portanto, de estrangulamentos internos e externos, sendo crucial a questão do endividamento externo dos países que, na ânsia de buscar capital estrangeiro para financiar o desenvolvimento, contraíram empréstimos que extrapolaram sua capacidade de pagamento. A ingerência dos credores, com o aval do Fundo Monetário Internacional (FMI), no intuito de evitar a insolvência dos bancos credores e gerar saldos suficientes para honrar os compromissos com o serviço da dívida, submeteram a economia da região a políticas recessivas, alastrando no continente a pobreza e a miséria, demonstrando

que esse sistema é perverso em sua essência e que sua “tendência dominante é a concentração de riqueza e de poder.” (BRUM, 2005, p. 105).

A grande contradição interna atual dos novos Estados latino-americanos é que sob globalização têm impulsionado uma reforma que beneficia primordialmente a concentração de poder dos grupos econômicos transnacionalizados, combinadas com formas de relativa inclusão política e com políticas que procuram dar atenção, ainda que mínima, aos problemas que geram o aumento geométrico da pobreza. No anterior Estado desenvolvimentista, interventor do pós-guerra, o bloco de poder dominante se definia por um compromisso nacional de classes que obrigava à distribuição interna, ainda que mínima, do excedente. Sob o novo Estado do capitalismo globalizado, o bloco de poder quebra esse compromisso e exclui uma fração social numerosa de médios e pequenos capitalistas e a (sic) conjunto dos trabalhadores. (COSTILLA, 2003, p. 254).

O processo de redemocratização no Brasil, como em toda a América Latina, foi assim prejudicado pela coincidência com o auge do neoliberalismo, cujas diretrizes materializaram-se na agenda do chamado Consenso de Washington. A iniciativa dos centros geradores de ideias demonstra suas características de imposição e unilateralidade desde o convite, em que economistas da AL são chamados para relatar a experiência de seus respectivos países, num encontro de caráter acadêmico, com a finalidade de avaliar as “reformas” em andamento em vários países do continente.

Porém, na base do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, comportamento que pode ser muito bem ilustrado pela insistência dos EUA em manter elevados subsídios agrícolas, “os próprios países ricos não aplicam com tanto rigor as políticas que recomendam aos países periféricos.” (BRUM, 2005, p. 106). Isto vale para o tipo de prática democrática, abertura de mercados e tantas outras sutis imposições travestidas de estabilidade, governabilidade, sustentabilidade e outras criatividades próprias de um sistema que tenta se preservar, reinventar. “Ao remodelar-se, cria mecanismos para continuar a expandir-se, e controlar, direta ou indiretamente, todas as formas de atividades humanas: industriais, agrícolas, comerciais, financeiras, terciárias, multimídias, científicas, tecnológicas, culturais [...].” (BRUM, 2005, p. 71).

Tudo deve se processar em meio ao apoio popular e político, num clima de modernidade. Assim, segundo o autor, a partir do Chile, em 1982, um após o outro, cada país da América Latina foi se inserindo na nova ordem, discutida e aperfeiçoada em 1989, sob a agenda do aludido Consenso de Washington, compreendendo dez áreas principais: disciplina fiscal, priorização dos gastos públicos, reforma tributária, liberalização financeira e comercial, regime cambial, investimento direto estrangeiro, privatização, desregulação e propriedade intelectual.

Porém, se a estratégia atendeu a importantes objetivos, intensificando o processo de globalização, o comércio mundial e o fluxo de capitais, além da desregulamentação da economia, não conseguiu acelerar de modo satisfatório o crescimento econômico, tampouco atenuar a desigualdade social na América Latina, o que suscitou a revisão de seus pressupostos sete anos depois. Não porque fossem bonzinhos ou desejassem humanizar o processo, mas por uma questão de sobrevivência do próprio sistema. (BRUM, 2005).

No último artigo de Celso Furtado, publicado pelo Jornal do Brasil, em 2004, após a sua morte, o ilustre economista demonstrou a sua decepção com a natureza da inserção brasileira no cenário mundial:

Um país dotado de imensas reservas naturais e de mão-de-obra aplica uma política que se satisfaz com uma taxa de crescimento próxima de zero. Não é fácil descobrir as causas desse processo, mas devemos reconhecer que ele tem origem ou é reforçado pelo chamado Consenso de Washington, que não passou de um receituário neoliberal a serviço da consolidação da política imperial dos Estados Unidos. (SANTIAGO, 2005, p. 176).

Embora, pelas razões aqui expostas, a década de 80 tenha sido considerada perdida para o Brasil e a América Latina em geral, foram registrados avanços políticos extremamente relevantes, quais sejam: “a transição pacífica do regime autoritário para o democrático”, o fortalecimento das instituições democráticas e a retomada de um processo de organização da sociedade, preservando direitos individuais, políticos e sociais. (BRUM, 2005, p. 439)8.

O desmantelamento do socialismo, no final do século XX, simbolizado e marcado pela queda do muro de Berlim, em 1989, e o desmembramento da União Soviética, trouxeram, nesse cenário, novos desafios ao mundo capitalista.

O Estado-nação e todas as suas realidades são traspassadas por processos e estruturas que estão se desenvolvendo em escala planetária. Assim, a sociedade civil está mais sujeita às injunções impostas pela dinâmica da transnacionalização do que às questões domésticas, tornando-se um ente cada vez mais distante e dissociado do objeto de ação e proteção do aparelho estatal.

Nesse contexto, as grandes corporações transnacionais ganham força e poder, mantendo seu planejamento e realizando negócios em dimensão planetária, disputando mercados a despeito das nações e dos estados nacionais, o que aponta para um novo ciclo de

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Segundo Brum (2005), a Revolução de 1930 configurou-se como o primeiro movimento de âmbito nacional a contar com razoável apoio e participação popular.

globalização do capitalismo. A fuga instantânea de capitais por ocasião da crise em que submergiu o México, em 1982, é um exemplo emblemático do que pode acontecer no âmbito do movimento transnacional do capital, à revelia dos governos nacionais. Este novo ímpeto capitalista ganhou ainda mais fôlego com o descortinamento do mercado do antigo bloco socialista soviético, onde se expande a passos largos.

Nesse cenário em que, cada vez mais, é “a mídia que fala à Nação” com profundo papel político tendo em vista suas estratégias, surge uma cisão entre o Estado e a sociedade, gerando uma situação esdrúxula em que o Estado atenua sua ação perante a sociedade e abre espaço para a renúncia de conquistas sociais históricas, fazendo pensar no desenvolvimento de cada país mais como Estado-rede, e menos como Estado-nação.

Assim, segundo Ianni (1996, p. 8):

[...] a busca de alternativas em âmbito nacional depende de uma inteligência da maneira pela qual está se dando a globalização. E depende de uma inteligência das forças sociais que operam em âmbito nacional, mas combinadamente com as forças sociais que operam em âmbito transnacional.

O abandono do projeto nacional capitalista e a submissão crescente aos ditames do capitalismo transnacional, em ritmo acelerado, transformam o Brasil, depois de mais de 500 anos de seu nascimento como província do colonialismo, em província global. Como tal, passa a ser um modesto subsistema em perfeita dependência das elites mundiais dominantes “para as quais os governantes nacionais se revelam simples funcionários”. (IANNI, 2000, p. 51).

Referido processo tem sido apoiado por poderosos organismos multilaterais, a exemplo do Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BIRD) e Organização Mundial do Comércio (OMC). Ironicamente, até o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), criado como Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), em 1952, no segundo governo Vargas, para administrar o Fundo de Reaparelhamento Econômico como mais um instrumento de alavancagem do projeto nacional desenvolvimentista, tem-se alinhado ao receituário neoliberal de forma a favorecer a transnacionalização, ou seja, o desmonte do projeto de capitalismo nacional. Assim, as necessidades e anseios da população subalterna não se traduzem em compromissos e diretrizes dos governos, os quais passam a não enxergá-la devido à supremacia atribuída aos mercados, onde o consumo vira requisito de cidadania. (FONSECA, 1997).

A partir de 1983, enquanto os países capitalistas centrais retomavam o crescimento econômico em ritmo razoável, os países subdesenvolvidos endividados transformaram-se de receptores em transferidores líquidos de capital para o exterior, em função do pagamento do serviço da dívida. Ao mesmo tempo, sofriam acentuada queda nos investimentos produtivos e eram acometidos de estagnação ou recessão econômica, altas taxas de inflação e deterioração das condições de vida de suas populações. (BRUM, 2005, p. 37).

Com o declínio formal do socialismo, em 1989, e as transformações que ocorreram no leste europeu a partir de então, penetramos sempre mais no que podemos chamar de ditadura do mercado, modelo em que os espaços de discussão, consenso e dissenso cedem lugar a uma espécie de consenso unilateral, que introduz as novas ideias modernizantes como temas recorrentes de reflexão e debate. Nesse contexto, teve início o governo Collor, em 1990: “a defesa do livre mercado, o fim das reservas, o ataque às estatais e aos ‘marajás’ mostrava-se como uma ‘cruzada modernizante’ carregada de ações bombásticas”. Houve, assim, um processo acelerado de abertura do mercado e de privatizações. A política de Estado mínimo imposta pela onda neoliberal dessa década falava de reengenharia do setor público, preconizando a necessidade de ajustar as contas públicas e obter melhores produtos e serviços a custos menores. Em meados desse decênio, deu-se a quebra do monopólio estatal da Petrobras. “As propostas de reforma tinham um conteúdo anti-populista e uma orientação para o mercado, em contraposição ao modelo nacionalista da Era Vargas ou nacional- desenvolvimentismo dos períodos posteriores”. (RODRIGUES, 2004, p. 295).

Depois de 29 anos sem eleições diretas, Collor foi eleito pelo voto direto, em 1989, sendo afastado por impeachment antes de completar três anos de mandato. Seu governo ficou marcado pela acelerada adesão aos postulados neoliberais recém-consolidados no Consenso de Washington. Assim, todos os esforços governamentais direcionaram-se para promover a abertura do mercado, a desregulamentação da economia, a redução da presença do Estado e as privatizações. (BRUM, 2005).

O revigoramento capitalista da década de 1990 afetou em cheio a agricultura, haja vista que o período foi marcado

pelo desmonte dos organismos e dos marcos legais que compunham o arranjo institucional que dava suporte ao processo de modernização da agricultura. Essa desregulamentação do setor agrícola deu um fecho definitivo à política de redução do tamanho do Estado, principal elemento na agenda internacional e exigência básica dos organismos multilaterais. (BASTOS, 2006, p. 44).

Assim, os governos FHC (1994-2002) foram marcados pela abrupta entrada do país na nova ordem econômica mundial, o neoliberalismo, que acarretou intenso processo de

privatização e abertura do mercado interno. Em entrevista concedida em 2002, Celso Furtado enaltece a importância da política de controle inflacionário como um bom começo do governo em referência, a despeito dos equívocos desse processo como revés de importante fonte de financiamento do Estado e o comprometimento da capacidade de importar e exportar, face à pressão do mercado internacional. Chama ainda a atenção para o fato de que, à época, dois terços das exportações brasileiras eram direta ou indiretamente controlados por empresas estrangeiras, e conclui: “a política atual é suicida. Parece que ela foi planejada para mostrar a todos, mais cedo ou mais tarde, que o Brasil deve renunciar à sua autonomia monetária, à sua soberania, tornando-se uma província de um império maior.” (SANTIAGO, 2005, p. 176).

A reflexão sobre o Estado moderno evidencia a sua importância como base de sustentação do capitalismo, sobretudo a partir do momento em que o mercado, baseado nos princípios liberais, perdeu seu equilíbrio, originando as falhas de alocação e distribuição e recursos de acordo com suas intenções e buscando garantir a legitimidade do sistema capitalista.

Aliás, no capitalismo, a atuação de um Estado forte é indispensável haja vista ser este a única instituição capaz de reproduzir as duas condições necessárias ao seu pleno funcionamento: a acumulação e a legitimidade, sendo a acumulação necessária por ser o princípio básico da reprodução; enquanto a legitimidade é requisitada como forma de obter consenso da sociedade civil acerca de seus atos. (CARDOSO, 2007, p. 69).

O governo Lula que, ao assumir, chamou a atenção dos governantes do mundo para a problemática da fome, sendo um dos primeiros momentos desse alerta o Fórum Econômico Mundial, em Davos, em 2003, ampliou e aperfeiçoou programas sociais do seu antecessor sob o guarda-chuva da estratégia Fome Zero. (LULA..., 2008).

O Programa Bolsa-Família (PBF), destinado a unidades familiares que se encontram em situação de pobreza e pobreza extrema, foi criado em 2003, primeiro ano do governo Lula, pela medida provisória nº 132, convertida, em 09/01/2004, na Lei nº 10.832. De lá para cá foi aperfeiçoado por outros instrumentos, a exemplo a Lei nº 11.692, de 10/06/2008, que, entre outras melhorias, amplia a faixa etária de adolescentes beneficiados pelo programa de 15 para 17 anos. (BRASIL. LEI Nº 11.692, 2008).

Mais da metade das famílias que participaram desta pesquisa são beneficiárias do PBF. O estudo revela ainda o quanto o público-alvo do Pronaf Grupo B, os mais pobres entre os agricultores familiares, é sustentado pele referido benefício.