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O Crédito Agrícola e a Modernização Conservadora

Foto 5 – Uma das Famílias Entrevistadas

2.6 O Crédito Agrícola e a Modernização Conservadora

O Banco do Brasil, criado em 12/10/1808, ainda no século XIX, passou a financiar o crédito agrícola com vistas a atender as necessidades do governo, que visava a compensar o prejuízo sofrido pelos grandes produtores de então com a abolição da escravatura, viabilizando a substituição da mão-de-obra escrava, bem como o assentamento de imigrantes europeus atraídos pelas perspectivas da florescente lavoura de café. Para tanto, foi criada, em 1937, no âmbito do Banco do Brasil, a Carteira Agrícola e Industrial (Creai), consolidando essa instituição como grande financiadora da agricultura, cuja expansão e disseminação para todo o país ocorreu sob a égide dos governos militares. Portanto, “um Banco do Brasil atuando para fomentar o desenvolvimento das regiões mais carentes do país, com financiamentos aos pequenos produtores agrícolas e às pequenas empresas, é, também, bastante recente”. (RODRIGUES, 2004, p. 202).

Em diversos momentos de sua história o Banco do Brasil atuou “como instrumento de negociação do governo”. (RODRIGUES, 2004, p. 297-299). No que se refere ao crédito agrícola, registram-se ocasiões em que chegou a cortá-lo para o setor agrícola, e outras em que cedeu à pressão dos ruralistas.

Delgado (1997) aborda, juntamente com outros autores, o comportamento da agricultura brasileira nos cinquenta anos compreendidos entre 1930 e 1980, à luz de importantes instrumentos legais do período e de estudos realizados por diversos pesquisadores. No meio século, entre 1930 e 1980, como já sabemos, caracterizado por acelerado processo de urbanização e industrialização, ocorreram significativas transformações no processo produtivo rural que, ao adaptar-se ao cenário mercantilista em expansão, favoreceu a “constituição e modernização de várias cadeias produtivas e complexas agroindústrias.” (DELGADO, 1997, p. 209).

Segundo o autor, após a superprodução cafeeira dos anos 30, verificou-se um processo de diversificação na agricultura brasileira em função, entre outros fatores, do aproveitamento dos recursos liberados pela cafeicultura em São Paulo, período em que emergiram a cotonicultura e as indústrias sucroalcooleiras, no extremo Sul, o trigo e o arroz. Esse processo foi favorecido por políticas de priorização da agricultura voltada para o mercado interno.

Até meados da década de 40, coincidindo com a forma centralizada do governo vigente, observou-se processo equivalente em relação às políticas agrícolas. Referida

centralização “protege e articula interesses agrários regionais”. Além da diversificação, o crescimento das culturas é superior ao incremento populacional. (DELGADO, 1997, p. 210- 211).

Nesse período, segundo o autor, com a derrota da reforma agrária nasceu o que se convencionou chamar “modernização conservadora”, integrando a agricultura com a economia urbana e industrial no contexto da expansão capitalista em curso. Esse processo, que no Brasil ocorreu somente nas décadas de 60 e 70, deu-se nos EUA e na Europa Ocidental no início do século XX. Referida modernização caracterizou-se pela integração técnica agricultura-indústria, com importante intervenção estatal por meio de incentivos fiscais e desoneração de produtos e preços. O processo de modernização da agricultura, com crédito rural subsidiado e orientado para a aquisição de insumos e bens de capital industriais, concentrou-se regional e socialmente nas regiões Sul e Sudeste e, anos depois, no Centro- Oeste. Diante dessa realidade, a agricultura tradicional passa a conviver com avançadas técnicas e sistemas agroindustriais, de forma que, ao iniciar a década de 80 “o empreendimento capitalista no setor rural já estava plenamente configurado” (DELAGADO, 1997, p. 218) tanto no campo das relações técnicas quanto sociais da produção. Assim, em 1980, 18,72% do valor total da produção agropecuária e florestal do país encontravam-se em pouco mais de 50 unidades centralizadoras do capital no campo.

Portanto, segundo este autor, o processo acelerado de industrialização e urbanização por que passou o país promoveu a transformação “técnico-econômica” da agricultura brasileira, que ocorreu principalmente entre 1965 e 1980, considerado o auge da modernização conservadora. Ele enfatiza, ainda, que essas mudanças se deram sob a influência das políticas governamentais do período, a exemplo da substituição das importações e dos esforços para a formação do mercado interno, estratégias amparadas num modelo centralizador de Estado. Para o autor, “ficou patente na construção do aparelho de Estado, desde Vargas até o Regime Militar, a predominância da associação entre o capital agrário e a grande propriedade, albergados nos favores fiscais e financeiros do Governo Federal”. Nesse cenário o caráter estadual da maioria das políticas agrícolas migra para um contexto centralizado e articulado às oligarquias rurais.

O estudo realizado por Szmrecsányi e Ramos (1997) aborda, entre outros aspectos, a importância de determinados instrumentos governamentais como a criação da Creai, precedida pelo Conselho Federal de Comércio Exterior (CFCE) e, posteriormente, em 1943, seguido pela criação da Comissão de Financiamento da Produção (CFP), que depois teria como uma de suas atribuições a implementação da política de preços mínimos.

Os autores lembram que tais mudanças aconteceram à revelia do Ministério da Agricultura de então, esvaziado, apesar da importante reforma administrativa que sofrera na década de 30. Não obstante essa dispersão de esforços, o autor afirma que referidas políticas conseguiram fazer com que o Estado, ao invés de voltar-se para a “defesa de um único produto ou de uma determinada região”, ampliasse e diversificasse a produção agropecuária como um todo, em especial “aquela destinada ao abastecimento de seu mercado interno”. Por estas razões, o autor enfatiza o pioneirismo da Creai como possibilidade de financiamento de longo prazo para atividades consideradas prioritárias, cerne de um sistema de desenvolvimento liderado pelo governo, sob a compreensão de que é papel do Estado estruturar e diversificar a produção, com vistas a reduzir o grau de dependência externa.

Assim, o crédito rural público propiciou aos agricultores três importantes vantagens: “1) a disponibilidade de recursos para o financiamento de suas atividades; 2) o estabelecimento de prazo e de outras condições adequadas à natureza específica dessas atividades; e, 3) a fixação de taxas de juros favorecidas”. (MUNHOZ, 1982 apud SZMRECSÁNYI; RAMOS, 1997, p. 230).

De acordo com o autor, essas medidas se reverteram em intenso crescimento do volume da produção agropecuária, contribuindo para a redução de custos financeiros operacionais, bem como daqueles decorrentes da intermediação de particulares no financiamento da agricultura. O autor lembra, no entanto, que referida substituição de intermediários não se completou, no período em estudo, por não ter atendido suficientemente a demanda dos pequenos agricultores, mormente os informais. O autor faz referências a estudos do Banco Mundial, na década de 70, que evidenciam um volume de transações informais ligeiramente superior ao do crédito rural ofertado pelas instituições.

No final do segundo governo Vargas a Creai foi reformulada, passando a oferecer crédito subsidiado aos agricultores. “Os resultados dessas medidas logo se fizeram sentir, com o número anual de contratos aumentando de 19 mil em 1950 para 68 mil, 143 mil e 410 mil em 1955, 1960 e 1965, respectivamente.” (SMITH, 1982 apud SZMRECSÁNYI; RAMOS, 1997, p. 237). Ressalta, ainda, que para o setor de máquinas e equipamentos houve um crescimento ainda maior, “com profundas implicações na modernização tecnológica da produção agropecuária.” (HOMEM DE MELO, 1979 apud SZMRECSÁNYI; RAMOS, 1997, p. 237).

Nos anos 50, no embalo do nacional desenvolvimentismo, com forte aporte de recursos estrangeiros, instalaram-se no país muitas indústrias produtoras de insumos para a agricultura, tais como adubos químicos, agrotóxicos, tratores e máquinas. Com essa estratégia

o Brasil vivenciou, nos anos seguintes, um período de expansão da produção agrícola, já experimentado por outros países, conhecido como “revolução verde”.

A partir dos anos 60, o Brasil começou a experimentar uma profunda modernização em sua agricultura, baseada no modelo então denominado ‘revolução verde’: sementes melhoradas que respondiam rapidamente ao uso de adubos químicos necessitavam da aplicação de agrotóxicos, e com operações geralmente mecanizadas. (GROSSI; SILVA, 2002, p. 7).

A tentativa de modernização da agricultura a partir do desenvolvimento de tecnologias agropecuárias e de políticas de crédito rural subsidiado, até o final dos anos 80, produziu, também, o aumento da pobreza rural, a concentração de renda e de terra, além de altos índices de inadimplência e serviços rurais ineficientes e com elevado custo operacional. (BITTENCOURT et al., 1998).

Nesse contexto, a política agrícola acabou por beneficiar os grandes produtores, ampliando o fosso existente entre eles e aqueles envolvidos com a pequena produção. Esse fenômeno ocorreu, principalmente, a partir de 1969, “período em que já havia mudado a equipe responsável pela política econômica do País, coincidindo tal constatação com o endurecimento do regime ditatorial.” (SZMRECSÁNYI; RAMOS, 1997, p. 238).

Além disso, foram suscitadas outras críticas no âmbito da política de crédito agrícola executada pela Creai: privilégio das exportações; influência na desproporcional expansão dos chamados insumos modernos na agricultura brasileira, tais como máquinas e equipamentos (“industrialização da agricultura”), exagerada utilização de insumos químicos; e privilégio, por parte do Banco do Brasil, de produtores de maior porte. Como agravante desse quadro, a falta de crédito para custeio de outros itens importantes, particularmente “para os pequenos e médios produtores”. Por fim, a constatação de que a política não proporcionou à agricultura resultados na proporção dos recursos investidos. Some-se a isso o descompasso verificado entre o crescimento da agricultura e da indústria a ela vinculada e outras questões essenciais como eletrificação e infraestrutura de comercialização e escoamento da produção. (DELGADO, 1997, p. 238-242).

2.7 O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar