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3. A DINÂMICA DA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA EM KALECKI

3.2 A DETERMINAÇÃO DOS LUCROS E SALÁRIOS EM KALECKI

O grau de monopólio discutido na seção anterior tem papel de influência como fator de distribuição entre salários e lucros por meio da formação dos preços. Como conclusão de seu modelo, Kalecki (1954) explica que sendo os lucros dos capitalistas equivalentes às suas decisões de gastos (e determinados pregressamente por essas decisões, como veremos a seguir), a participação dos salários na renda será alterada apenas por ação de fatores de distribuição. Mais ainda, a participação dos salários na renda (revertida integralmente em consumo) seria capaz de mover as decisões de gastos dos capitalistas entre os setores da economia de modo a afetar o crescimento da produção e emprego totais.

Possas e Baltar (1981) sintetizam a relevância do modelo interdepartamental de Kalecki que permite expor a geração do gasto e da renda, assim como da produção e da demanda, numa construção simples que:

(...) consiste no desdobramento, em forma de matriz, do produto global da economia capitalista nos três macrossetores de produção integrada, correspondentes às suas categorias de demanda final, paralelamente à decomposição do mesmo, sob o formato de renda, entre lucros brutos e salários. (POSSAS & BALTAR, 1981, p. 153).

Assim, inicialmente para explicar não somente a determinação dos lucros, mas também a relação entre lucros e salários, e como isso afeta as decisões de gastos dos capitalistas de modo a, juntamente com os fatores distributivos, impactar o crescimento do emprego, produto e renda da economia, Kalecki (1954) irá propor um modelo de três departamentos que representam diferentes setores de uma economia. Para uma economia fechada e sem governo, o produto da economia será equivalente ao consumo mais o investimento.

Kalecki parte dos esquemas de reprodução de Marx, mas no propósito de abordar a dinâmica capitalista, na etapa monopolista desta, para explicar a demanda efetiva (Possas e Baltar, 1981). Assim, Kalecki divide os agentes em classes econômicas, onde o consumo total é subdividido entre consumo dos capitalistas e consumo dos trabalhadores, sendo a renda dos capitalistas os lucros brutos e a renda dos trabalhadores os salários e ordenados. No modelo os trabalhadores gastam tudo o que ganham, e como tudo o que ganham representa para os

24Esta seção está baseada em Kalecki (1954), contudo, para a dinâmica interdepartamental se fez uso de alguns elementos do modelo tridepartamental de Kalecki (1968).

capitalistas os custos com salários, resulta a implicação de que os lucros brutos (P) serão o equivalente a soma do investimento (I) e o consumo dos capitalistas (Cc).

P = I + Cc

Kalecki (1983) afirma que a relação de causalidade dessa equivalência se revela nas variáveis que estarão sob o poder de escolha dos capitalistas: o volume de gastos em consumo e investimento lhes são escolhas do período presente, o lucro desse mesmo período não pode ser alterado por decisão alguma, logo, os lucros presentes dos capitalistas são determinados pelas decisões passadas que se materializam em gastos presentes em consumo e investimento. Assim, a importância da exposição reside em facilitar a compreensão das relações de determinação implícitas, decorrentes da aplicação do princípio da demanda efetiva. (POSSAS & BALTAR, 1981)

As relações de determinação intrínsecas nessa conclusão são demonstradas por Kalecki através de uma dinâmica que integra três departamentos: o Departamento I (D1) é produtor de bens de capital, suprindo os demais departamentos. Toda a receita desse departamento é em função dos gastos com investimento em bens de capital, e essa receita é decomposta em salários e lucros; O Departamento II (D2) produz bens de consumo para os capitalistas, recebe, portanto, o montante que os capitalistas gastam em consumo; E por fim, o Departamento III (D3) cuida da produção de bens de consumo para os trabalhadores25, e todo o salário dos trabalhadores são gastos nesse setor. Assim, a economia está representada por esses departamentos integrados verticalmente, e para representa-los, será usada a matriz utilizada por Kalecki (1968), bem como algumas de suas equações, como é demonstrado na figura 2:

25No MKS, modelo utilizado para a realização das simulações propostas nesta dissertação, o consumo também é dividido entre capitalistas e trabalhadores, porém, aos bens de consumo específico de cada classe são dadas nomenclaturas diferentes do modelo kaleckiano: Os bens consumidos pelos capitalistas são chamados “bens supérfluos” e os trabalhadores consomem “bens de consumo básico”.

Fonte: Elaboração própria a partir de Kalecki (1977).

Uma vez que os trabalhadores não poupam, os custos com os salários pagos em D3 se revertem integralmente em consumo de parte dos bens produzidos nesse setor pelos próprios trabalhadores do setor, e o excedente é vendido para os trabalhadores de D1 e D2. Assim, os capitalistas do setor produtor de bens de consumo recebem de volta todo o salário que dispenderam, e seus lucros serão os salários pagos em D1 e D2, quando os trabalhadores desses dois últimos setores comprarem a parte dos bens de D3 que excede àquela comprada pelos seus próprios trabalhadores. Assim:

P3 = W1 + W2

O total de lucros desta economia será, portanto, a soma das rendas geradas em D1 e D2, isto é, os lucros somados de D1 e D2 mais os salários pagos aos trabalhadores desses dois departamentos. Temos então que o lucro da economia (P) equivale ao valor da produção dos setores de bens de capital (I) e de bens de consumo dos capitalistas (Cc),

P = I + Cc,

A equação confirma que os lucros dos capitalistas serão determinados pelas suas decisões de gastos com consumo e investimento, ou como na célebre frase “os capitalistas ganham o que gastam”. Isso significa que se os empresários diminuírem seus gastos, todos os departamentos serão afetados. Considerando constante a participação dos salários na renda, os gastos em consumo e investimento dos capitalistas determinam o consumo dos trabalhadores:

w1 = W1/I, w2= W2/Cc e w3 = W3/Cw

Como P3 = W1 + W2, podemos fazer:

(1 – w3)Cw = w1I + w2Cc => Cw = w1I + w2Cc

(1 – w3)

Kalecki demonstra, portanto, que a natureza que define e difere o consumo dos trabalhadores e o consumo dos capitalistas é hierárquica, uma vez que reserva a este primeiro uma relação de dependência com segundo. Ou seja, a decisão de consumo dos trabalhadores não lhes é autônoma, antes, depende das decisões de gastos dos capitalistas, o que inclui o próprio nível de consumo desses, que, portanto, lhes é autônomo. Assim, em relação ao consumo dos trabalhadores a partir dos seus salários, e o consumo dos capitalistas por meio dos lucros:

Whereas the former component of consumption is induced, the latter is an autonomous variable according to Kalecki since it is presumed to depend on lagged realized profits and influenced by expectations. (LAVOIE, 2014, p. 279)

Do consumo dos trabalhadores depende o lucro do D3, cujos empresários demandam bens de D1 e D2, assim, a produção de D3 será determinada pela produção de D1 e D2. Como a renda nacional, pela ótica da demanda, é a soma dos componentes de gasto considerados (consumo e investimento, para uma economia fechada e sem governo) tem-se:

Y = I+Cc + w1I +w2Cc

1-w3

Isto é, a renda nacional também é determinada unicamente pelo dispêndio capitalista, internalizando a trajetória da reprodução do sistema ao mercado intercapitalista (Young e

Silveira, 1988, p. 41). Podemos dizer que quando estabelecida esta relação de causalidade entre renda e gasto, o princípio da demanda efetiva em Kalecki já é manifesto de forma elementar, pois:

(...) tal princípio caracteriza-se fundamentalmente por acrescentar uma determinação causal unilateral à identidade contábil entre despesa, produção e renda, contrapondo-se à noção usual, particularmente cara aos neoclássicos (tanto quanto a J. B Say) de determinação simultânea daquelas variáveis. Assim, por exemplo, embora investimento, consumo e renda sejam simultaneamente magnitudes de gasto e de ganho, é a primeira característica e não a segunda a que admite um caráter determinante, de variável independente. (POSSAS & BALTAR, 1981,p. 109)

Conforme Young e Silveira (1988), o investimento e o consumo dos capitalistas resultam de decisões tomadas no passado, o investimento guardando uma defasagem temporal entre a encomenda e a entrega do equipamento, e o consumo dos capitalistas acompanhando adaptativamente as mudanças nos lucros. Se este acompanhamento ocorre em termos proporcionais podemos dizer que o consumo dos capitalistas tem uma relação estável com o investimento, de modo que Cc = f(I). Assim, à semelhança das considerações conclusivas do princípio da demanda efetiva em Keynes, o investimento tem papel central na determinação da demanda efetiva também em Kalecki.

Contudo, a finalidade aqui é a de chamar atenção para a diferença, em Kalecki, de dois aspectos não ressaltados por Keynes, e de extrema importância para a proposta desta dissertação: a importância dos efeitos macroeconômicos da distribuição de renda e da dinâmica interdepartamental. (YOUNG & SILVEIRA, 1988). Nesse aspecto, Jobim (1984) argumenta que sendo os lucros determinados exclusivamente por I + Cc, o papel dos fatores que afetam a distribuição de renda é apenas o de determinar a parcela e a massa de salários.

Como também a produção de D3 será determinada pela produção de D1 e D2 (já que para a produção destes últimos são empregados trabalhadores que consomem os bens produzidos em D3), pode-se dizer que a ampliação da produção de D3, estando condicionada aos salários de D1 e D2, só pode aumentar mediante o aumento desses salários. Ou seja, o emprego e a produção em D3 só crescerão “até o ponto onde o excedente dessa produção sobre o que os trabalhadores desse Departamento compram com os seus salários for igual aos salários dos Departamentos I e II” (KALECKY, 1954, p.36 e 37).

A relação de causalidade discutida anteriormente implica que se o nível global de lucros é determinado a cada período pela soma do investimento e consumo dos capitalistas, sua magnitude independe inteiramente da taxa de participação dos salários (Possas e Baltar, 1981).

Assim, Possas e Baltar (1981) entendem que a posição de Kalecki em face de alterações na distribuição de renda admite:

(...) a possibilidade de que os salários aumentem ampliando sua participação na renda global – com uma correspondente redução no grau de monopólio - desta forma ampliando sua participação na renda global, sem com isso afetar o nível de lucros, imediata ou remotamente, [o que é] um paradoxo angustiante para aqueles que encontram dificuldades de abandonar a Lei de Say (...). (YOUNG & SILVEIRA, 1981, p. 154)

Quais seriam então as repercussões intersetoriais e gerais de um aumento nos salários, dentro do plano analítico de Kalecki? Num primeiro instante os lucros de D1 e D2 iriam diminuir. Mas no D3, que produz bens de consumo para os trabalhadores, o lucro dos empresários será aumentado do mesmo montante em que se elevaram os salários de D1 e D2. O que houve, até então, foi uma transferência de renda dos capitalistas dos setores I e II para os capitalistas do setor III, já que os lucros de D3 são os custos dos empresários de D1 e D2 com os salários dos seus trabalhadores. Então, por hora, no conjunto a divisão entre lucros e salários não mudou.

Mas os acréscimos de salários elevarão a demanda por bens de consumo dos trabalhadores, que será atendida pelo D3. Sendo possível o aumento da produção de D3 (ou seja, supondo preço fixo e na presença de capacidade ociosa neste setor), este determinará a elevação da parcela dos salários na renda, dado que os lucros totais ainda permanecem no nível inicial, pois o investimento e consumo dos capitalistas não foi alterado até este momento.

Para que esse aumento nos salários repercuta sobre as decisões de investimento, de modo a expandir o emprego nos demais setores além de D3, são necessárias hipóteses comportamentais acerca da reação dos empresários à expansão da demanda e à redução da capacidade ociosa. Essas possibilidades teóricas serão discutidas no capítulo quatro, no âmbito do modelo MKS, e analisadas no capítulo seis a partir das simulações computacionais. Assim, Kalecki chama a atenção para a importância da distribuição funcional da renda e dos fatores que a afetam (“fatores de distribuição”) como o grau de monopólio. Este, ao afetar a participação dos salários na renda, leva a repercussões no consumo que impactam no

crescimento do emprego, produto e renda da economia, na medida em que variações da parcela dos salários na renda afetem as decisões de gastos dos capitalistas (Vazquez e Oliveira, 2009, p. 131).

As decisões de gastos dos capitalistas, então, são as determinantes não apenas dos lucros, mas, em conjunto com os fatores que promovam a distribuição entre lucros e salários, determinam o consumo dos trabalhadores, a ampliação do emprego, produto e renda da economia (KALECKI, 1983). Sabendo que a parcela relativa dos salários na renda é capaz de afetar a dinâmica capitalista e, conforme incentivem as decisões de gastos dos empresários, colaborar com o crescimento pelos efeitos em cadeia que o modelo interdepartamental de Kalecki permite prever, a próxima subseção tratará dos fatores que determinam a participação dos salários no total da renda gerada.

3.3 DISTRIBUIÇÃO DE RENDA: A PARTICIPAÇÃO DOS SALÁRIOS NA