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3. A DINÂMICA DA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA EM KALECKI

3.3 DISTRIBUIÇÃO DE RENDA: A PARTICIPAÇÃO DOS SALÁRIOS NA RENDA

Para explicar sua teoria sobre a determinação da participação dos salários na renda, Kalecki (1983) irá considerar os salários conforme a noção de custos diretos utilizada em sua equação de fixação dos preços pela firma, demonstrando e relação existente entre a razão entre rendimentos e custos diretos e a parcela da renda apropriada pelos salários.

A sua demonstração parte de identidades que representam a decomposição do valor agregado num ramo da indústria (VA), sendo este os rendimentos totais obtidos com a venda da produção (RT) deduzidos os custos com matérias primas (M). Assim:

VA = RT – M

Pela ótica dos rendimentos, esse valor adicionado também pode ser obtido pela soma dos salários (W), lucros (P) e custos indiretos (CI), permitindo a seguinte equivalência:

W + P + CI = RT – M

Sendo k a razão entre o total de rendimentos e o total de custos diretos, que engloba salários e matérias primas, ou seja, k = RT / (W + M), ou, RT = k(W + M), será, portanto, o coeficiente que indica o grau de monopólio para determinado o ramo da indústria. Podemos fazer a seguinte substituição:

W + P + CI = k(W + M) – M Fazendo a seguinte manipulação algébrica, teremos:

P + CI = k(W+ M) – M – W => P + CI = kW + kM – M – W P + CI = (k – 1) (W + M)

Podemos representar a participação dos salários no valor agregado de cada ramo industrial por (w), sendo w = W / VA, ou, w = W / (W + P + CI). A equação acima permite a seguinte substituição:

w = W / [W + (k – 1) (W + M)]

Kalecki indica o coeficiente “j” como sendo a composição dos custos, isto é, a razão entre os custos de matérias primas e o custo de mão-de-obra , j = M/ W. Assim, dividindo por W o numerador e o denominador de w, teremos:

w = (W/W) / (W + (k – 1) (W + M)) / W = 1 / (W/W + ((k – 1) (W + M)) / W)

= 1 / [1+ (k – 1) (W/W + M / W)] w = 1 / [1 + (k – 1) (1 + j)]26

Portanto, como explica Kalecki (1983), a participação relativa dos salários na renda será determinada pelo grau de monopólio e pela razão entre custos com matérias-primas e os custos com salários. De acordo com a equação, a fração do salário na renda w guarda uma relação inversa com k e com j, de modo que,

Constante a relação matérias-primas (j), qualquer aumento no grau de monopólio expande proporcionalmente mais os lucros, fazendo cair a

26Kalecki (1983) também desenvolve outra equação para demonstrar a determinação da parcela relativa dos salários e ordenados (V) na renda do setor privado (Y), expressa por: (V/Y = αY + B/Y), sendo B > 0 e constante no curto prazo, e α< 1. Contudo, o modelo MKS, utilizado na metodologia desta dissertação e apresentado na próxima seção, não faz distinção (em termos de flutuação e valor da remuneração individual) entre salários e ordenados. Assim, a equação trabalhada na presente seção foi considerada a mais pertinente.

participação dos salários no valor gerado. Do mesmo modo, um acréscimo na relação matériasprimas/salários, constante o grau de monopólio, implica um aumento compensatório nos preços e na massa de lucros, reduzindo a participação dos salários na renda. (JOBIM, 1984, p. 35)

Para o total da indústria manufatureira, a parcela dos salários na renda será determinada de forma semelhante, contudo, os coeficientes k e j estão sujeitos também à importância relativa de cada ramo no total do setor. A influência das variações na importância relativa de cada ramo industrial sobre a distribuição de renda na indústria como um todo, é retirada por meio de um “ajuste” de k e de j, obtendo-se k‟ e j‟: w‟ = 1 / 1 + [(K‟ – 1) (1 + j‟)], e assim, a participação dos salários ajustada w‟:

(...) apresentará um desvio em comparação com a parcela relativa dos salários w, na medida de uma quantia que será devida a modificações na composição industrial do valor agregado (KALECKI, 1983, p. 22).

Não somente k‟ estará sujeito ao grau de monopólio no ramo da indústria, mas, levando em conta que o preço das matérias primas é afetado pelo custo dos salários nas primeiras etapas da produção, também j‟ sofrerá influência do grau de monopólio. Com isso, a conclusão de Kalecki (1983) é que a participação dos salários no valor agregado da indústria não estaria sujeito apenas à composição industrial do valor agregado, mas depende inversamente do grau de monopólio e da razão preço das matérias primas/ custo de salários por unidade, de modo que se o preço das matérias primas cresce mais do que cresce o custo com salários por unidade, cai a parcela relativa dos salários na renda, e o mesmo ocorre se houver aumento no grau de monopólio.

Estendendo o seu raciocínio à maioria dos setores, Kalecki (1983, p.22) diz que as mesmas relações de determinação também são aplicáveis à parcela relativa dos salários na renda bruta nacional setor privado. Assim, conclui-se que a participação dos salários na renda será determinada:

 Pelo grau de monopólio;

 Pela razão preço das matérias primas/custos de salários por unidade;  Pela composição industrial.

Kalecki (1983) diz que o grau de monopólio, por apresentar uma tendência geral a aumentar no longo prazo, concorre para deteriorar a participação do salário na renda. Contudo, como nada se pode afirmar acerca das tendências de longo prazo da razão entre o preço das matérias primas e os custos de salários por unidade, e da composição industrial, o efeito degenerativo da tendência de crescimento do grau de monopólio sobre “w” no longo prazo pode ser ultrapassado, anulado ou até mesmo reforçado pelos efeitos dos outros dois determinantes dependendo de que suas trajetórias no longo prazo tenham sido de crescimento ou queda. Sendo, a princípio, indeterminadas as tendências de 2) e 3), e, portanto, quais efeitos líquidos da influência dos seus três determinantes prevalecerá no longo prazo, não se pode afirmar a respeito de que a tendência de longo prazo da participação dos salários na renda seja de crescimento ou queda.

Segundo Piketty (2014) a estabilidade da divisão capital-trabalho27 foi por muito tempo apresentada como uma certeza, mas a partir dos anos 1990-2000 inúmeros estudos trataram do crescimento da participação dos lucros e do capital na renda nacional dos países ricos, em detrimento da participação dos salários e do trabalho a partir dos anos 70-80. Reforça ainda que, supondo que fosse válida, essa estabilidade:

(...) não garante a harmonia: ela pode perfeitamente se conjugar com desigualdade extrema e insustentável da propriedade do capital e da repartição das rendas. Ao contrário do que se acredita, a estabilidade da participação do capital na renda nacional não implica estabilidade na relação capital/renda, que pode assumir valores muito diferentes com o tempo(...). (PIKETTY, 2014, p. 214)

Desta forma, se por um lado as principais conclusões kaleckianas apontam que não há mecanismos endógenos que garantam a expansão da participação dos salários na renda, por outro, o papel de políticas que impactem os fatores de distribuição, no sentido de elevar a parcela relativa dos salários (e sem que isso repercuta em desestímulos aos investimentos) se torna crucial, pois:

27Piketty (2014) faz uma relação entre a razão entre o estoque de capital e o fluxo de renda (relação capital/renda) e a divisão da renda nacional entre renda do trabalho e renda do capital. A razão capital/ renda (β) no longo prazo depende de dois parâmetros macrossociais: da taxa de poupança (s) e da taxa de crescimento (g), relacionados na equação β= s/g. No exemplo do autor (p. 165) se a cada ano o país poupa 12% da renda nacional (s = 12%) e a taxa de crescimento dessa renda for de 2% (g = 2%), então, no longo prazo a razão capital /renda será de 600% (β = 600%), significando que o país terá acumulado o equivalente a seis anos de renda nacional em capital. A relação de β com a distribuição da renda nacional entre capital e trabalho se dá por meio da equação α = r * β, que permite associar o estoque de capital e seu fluxo de renda, onde α é a participação da renda do capital na renda nacional, e r é a taxa de remuneração do capital. No exemplo demonstrado (p. 196), se β = 6 e r = 5%, α = 30%, isto é, a participação da renda do capital na renda nacional é de 30%, consequentemente, a parcela da renda do trabalho na renda nacional é de 70%).

Dado que os lucros são determinados pelo consumo e investimento, dos capitalistas, é a renda dos trabalhadores (igual aqui ao consumo dos trabalhadores) que é determinada pelos “fatores de distribuição” (KALECKI, 1983, p.37)

Ainda, a tendência geral de aumento do grau de monopólio nas economias capitalistas no longo prazo (KALECKI, 1983, p.23) que implica em efeitos degenerativos na participação dos salários na renda, justifica que se pense em políticas que recuperem as possíveis perdas implícitas na tendência de queda da parcela relativa dos salários, caso os efeitos do aumento no grau de monopólio se dêem em intensidade suficiente para tal. Essas políticas devem estar presentes de modo a contrapor os efeitos de possíveis movimentos sistêmicos de ampliação das diferenças na distribuição funcional da renda, como o aumento do grau de monopólio, ou eventuais conjunturas que levem ao aumento na razão preço das matérias primas/custo de salários por unidade, tornando-se um problema.

Nesse sentido, a PVSM pode compor um conjunto de políticas de recuperação/ampliação da participação dos salários na renda, já que, pelas suas regras de reajuste, está “engatilhada” a incorporar uma parcela do crescimento do produto, caso haja. Assim, a PVSM, foco da nossa discussão, será aqui analisada não somente como política de geração/sustentação do emprego pelo crescimento da demanda agregada, mas também como política de redução das desigualdades entre capitalistas e trabalhadores por meio do aumento da participação dos salários na renda.

A partir da teoria da demanda efetiva construída em Keynes e em Kalecki, ficam comprometidas a orientação sugeridas pelo modelo neoclássico para recuperar o nível de emprego por meio de reduções salariais. Na ausência de uma teoria da demanda efetiva, a lógica implícita na teoria ortodoxa aponta a redução dos salários como solução contra o desemprego, uma vez que, negligenciada a demanda agregada, os efeitos da redução salarial incidem somente sobre os custos marginais. Tal lógica só pode ser aplicada na perspectiva de uma firma individual, que ao ver seus preços reduzidos como consequência do menor custo, elevaria sua produção. Contudo, no agregado, há de se considerar os efeitos remissivos dessa redução salarial sobre a demanda agregada. O que vimos em Keynes e Kalecki é que o nível de emprego reponde a estímulos pelo lado da oferta e pelo lado da demanda, mas é esta última quem o determina, a partir das decisões de gastos dos empresários, especialmente, os seus gastos em investimento, mas Jobim (1984) ainda enfatiza:

(...) a redução de salários proposta pela escola neoclássica não eleva o nível de renda e emprego devido à redução da demanda efetiva (Keynes e

Kalecki), mas age ainda no sentido contrário ao introduzirmos os conceitos de custos marginais constantes e o poder oligopólico de fixar os preços através do “grau de monopólio” (Kalecki) (JOBIM, 1984, p. 75)

A defesa aqui é a de que os efeitos de variações salariais sobre o emprego devem passar pelo cerne da discussão levantada em Keynes e Kalecki, que suscita uma questão central: como essas variações afetam as decisões de gastos de investimento dos capitalistas. Questão para qual a resposta em Keynes passa pelo espectro das expectativas, e em Kalecki, pelas relações interdepartamentais, e que conforme afetem as decisões de gastos dos empresários, geram resultados em igual sentido. Ambas as abordagens fornecem, portanto, a complementariedade necessária a essa pesquisa para analisar os efeitos do aumento salarial, a partir da PVSM sobre o nível de emprego e a distribuição de renda.

A seção seguinte tratará dos aspectos gerais do MKS, modelo escolhido como economia hipotética para a realização das simulações propostas nesta dissertação, e que usa princípios kaleckianos e pós-keynesianos na sua estrutura e dinâmica.